2. Luna

980 Words
Vou até a janela, abro um pouco pra entrar um vento. Meu corpo inteiro tá em alerta. A lembrança daquele olhar… o olhar de Dante ainda queimando na nuca. Por mais que eu esteja aqui, com esse homem ridículo atrás de mim, é como se eu ainda sentisse o peso dele me encarando lá na viela. Que merda foi aquela? Por que ele me olhou daquele jeito? E por que, droga... meu corpo inteiro ficou elétrico depois daquilo? — Vem cá, Luna... – Rogério chama, batendo na cama, como se eu fosse um animal de estimação. Vou. Claro que vou. Pego a camisinha na bolsa antes. Não abro mão disso. Já basta o risco que eu corro por existir nesse lugar. Ele tenta me deitar debaixo dele, como sempre faz. Eu deixo, mas minha cabeça vai longe. Enquanto ele respira pesado no meu pescoço, enfiando a mão por baixo do meu vestido, eu conto os minutos pra acabar. Penso na Clara. Penso no leite que ela pediu de manhã.Penso no caderno de desenho que ela viu na banca e pediu chorando porque queria desenhar as borboletas que sonhou. Cada gemido falso que eu solto é por ela. Cada toque que eu aguento é pra garantir que amanhã ela acorde com comida na mesa. Ele termina rápido, como sempre. Satisfação egoísta de homem pequeno. Eu me limpo no banheiro da pensão, olhando meu reflexo no espelho rachado. O batom tá borrado, o cabelo uma bagunça, o vestido amarrotado. Mas o olhar... o olhar segue o mesmo. Duro. Vazio. Treinado pra sobreviver. Quando volto pro quarto, ele já tá ajeitando a camisa, guardando o dinheiro no bolso. — Cê é fogo, Luna... Melhor investimento da minha semana. – Ele ri da própria piada de merda. Jogo a camisinha usada no lixo, pego minha bolsa e estendo a mão. — Meu pagamento. Ele conta as notas, com aquele sorriso safado. — Podia fazer um desconto hoje, hein? Quem sabe mais tarde a gente não repete? — Não tem desconto. Nem mais tarde. – Respondo seca, enfiando o dinheiro na bolsa. Saio dali antes que ele tenha tempo de tentar outra gracinha. O ar da rua me bate no rosto como um tapa. É sujo, poluído, pesado. Mas pelo menos é de graça. Meus olhos correm instintivamente pela viela. E por um segundo... só um segundo, acho que vejo a silhueta dele ali de novo. Encostado na parede, o cigarro na boca, o olhar cravado em mim. Mas quando olho direito. Nada. Só sombra. Respiro fundo. Aperto a alça da bolsa na mão e sigo de volta pra casa. (…) A porta range quando eu empurro com o ombro. Tranquei com duas voltas antes de sair, como sempre faço, mas mesmo assim, meu coração sempre dispara um pouco antes de entrar. É o medo de que um dia, eu volte e encontre tudo diferente. Arrombado. Vazio. Errado. Mas hoje, tá tudo como deixei. Clara tá deitada no colchão, dormindo de lado, abraçada no ursinho de pelúcia que eu encontrei no lixo de uma loja ano passado. Lavei, costurei o olho que faltava e dei pra ela como se fosse novo. Ela amou do mesmo jeito. A respiração dela tá tranquila, daquele jeito profundo de criança que gastou energia o dia todo e caiu no sono antes mesmo de ouvir minha despedida. Fecho a porta devagar. Largo a bolsa no canto. Me encosto na parede. E só, suspiro. O silêncio do quarto me abraça, mas não do jeito bom. É aquele tipo de silêncio que pesa nos ombros, que sufoca. Que te lembra que você tá sozinha, mesmo com alguém dormindo a poucos metros. Desço o zíper do vestido com pressa. Tiro o sutiã, a calcinha. Jogo tudo num canto qualquer. Vou até o banheiro minúsculo, onde o chuveiro pinga água gelada numa velocidade que me dá raiva. Abro a torneira. A água cai fina, fraca... mas é o que tem. Entro debaixo do fio gelado sem pensar duas vezes. O choque térmico faz meu corpo arrepiar inteiro, mas eu não recuo. Preciso... preciso tirar isso de mim. Esfrego o sabonete com força. Braços. Pernas. Pescoço. Entre as coxas. Esfrego como se pudesse apagar as mãos que me tocaram. Como se pudesse arrancar o cheiro de cerveja, de suor alheio, de sexo forçado e vazio. Minhas unhas arranham a pele, deixando vermelho. Mas não adianta. Nunca adianta. Porque a sujeira de verdade, não sai com água. Encosto a testa na parede de azulejo encardido. Fico ali respirando, deixando a água me bater nas costas enquanto meus olhos ardem. Não choro. Não posso. Se eu começar, não paro mais. Depois de alguns minutos, desligo o chuveiro. Me enrolo na toalha fina que já tá quase desfiando nas pontas. Vou até a cozinha. Abro a geladeira. Tem meio litro de leite. Um pote de margarina quase vazio. Dois ovos. Um restinho de arroz numa vasilha de plástico. Conto o dinheiro da noite. Já calculo de cabeça: Aluguel. Leite. Pão. O caderno de desenho que ela pediu, se sobrar, talvez eu consiga. Volto pro quarto. Sento ao lado da Clara no colchão. Fico olhando pra ela. Ela mexe a mãozinha no sono, como se sonhasse com alguma coisa boa. Talvez borboletas. Ela tem sonhado muito com isso ultimamente. Passo a mão de leve nos cabelos dela. — Prometo que um dia, a gente vai sair daqui, pequena... – murmuro, baixinho, mais pra mim mesma do que pra ela. Sei que é mentira. Ou, pelo menos, ainda é. Mas preciso acreditar, nem que seja só por hoje. Deito ao lado dela, de toalha e tudo, o cabelo ainda pingando. Fecho os olhos e por alguns minutos só escuto a respiração dela. Deixo o sono me vencer, com a pele ainda ardendo, com o cheiro do sabonete barato ainda grudado e com a certeza sufocante de que amanhã tudo recomeça.
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