4. Luna

1119 Words
O quarto é o mesmo. O cheiro, o mesmo. A parede manchada, o ventilador quebrado, o colchão afundado. Tudo igual. Inclusive ele. Rogério chega suado, o rosto vermelho de quem subiu o morro com pressa e medo ao mesmo tempo. Tira a camisa antes mesmo de fechar a porta, jogando sobre a cadeira de ferro enferrujada. Me encara com aquele olhar nojento, coberto de desejo e prepotência, como se eu fosse uma mercadoria exposta numa vitrine, algo que ele pode pagar, usar, e descartar. — Tava com saudade, Luna... — diz, com o sorriso torto, a voz arrastada. Eu não respondo. Apenas tiro a bolsa do ombro e deixo no chão. Descalço o salto. Ele já vem na minha direção, impaciente, o cheiro de cerveja e cigarro se misturando ao suor. As mãos dele são grandes, pesadas, e me tocam com pressa, como se o prazer dele não pudesse esperar um segundo sequer. Beija meu pescoço com força, morde o ombro, ri baixinho, achando graça da minha falta de reação. Meu corpo reage por instinto, mas a mente... vai embora. Fecho os olhos. Penso na Clara. Penso na comida que ainda tem na mesa. No caderno de capa de borboleta que ela ganhou hoje. Deixo ele me deitar de qualquer jeito, o colchão rangendo sob o peso dele. As mãos ásperas exploram o que não deveriam. Ele geme o meu nome como se isso fizesse de nós um casal, como se houvesse algo além de dinheiro entre nós. Quando enfia os dedos entre minhas pernas, eu apenas respiro fundo, forçando um sorriso treinado. — Hoje tá caladinha... que foi? Cansada? — pergunta, a voz carregada de provocação. Eu abro um meio sorriso. — Só aproveitando. — minto, a voz rouca, vazia. Ele ri, satisfeito, e me vira de lado. Puxa meu quadril com brutalidade, me encaixando como se fosse um objeto. A cama balança, o som abafado de estocadas preenche o quarto. Não há carinho. Nunca houve. Cada movimento dele é rápido, seco, impaciente. Ele geme alto, como se fosse um troféu arrancar prazer de quem não sente nada. Eu conto as rachaduras da parede pra não pensar. Uma. Duas. Três. Tento me distrair com o barulho do ventilador que range, com o som da rua que entra pela janela, com qualquer coisa que não seja o peso dele sobre mim. O orgasmo dele vem rápido. Um gemido rouco, curto. Goza, se joga pro lado, e respira fundo como se tivesse feito algo grandioso. — Porra... você é boa demais... — diz, passando a mão no rosto suado, o peito subindo e descendo. Eu fico deitada, imóvel, o olhar fixo no teto. Sinto o corpo quente, mas é só o cansaço. Quando o silêncio se alonga demais, levanto. No banheiro, a luz fraca pisca. Me olho no espelho e quase não reconheço a mulher ali. A pele marcada, o batom borrado, o olhar... morto. Esfrego o corpo com água fria, o sabão deslizando pelos braços, tentando tirar uma sujeira que não sai. Volto pro quarto. Ele já tá deitado, mexendo no celular. Nem me olha. — Dinheiro na mesa. — fala, seco. Pego as notas amassadas, enfio na bolsa e saio. Lá fora, o ar da noite me bate no rosto como um soco. A rua cheira a fumaça, cerveja e carne queimada. A lua m*l aparece, escondida atrás das nuvens. O coração ainda acelerado, não de prazer, mas de raiva. De nojo. Respiro fundo. Endireito o vestido, prendo o cabelo de novo e sigo o caminho de volta. Cada passo pesado, cada sombra parecendo maior. A rua tá cheia. Os becos vibram com o som das conversas, risadas e funk estourando dos barracos. Uns moleques jogam bola com uma garrafa pet. Outras meninas, como eu, encostam nos postes esperando a sorte da noite. Minhas pernas doem. A cabeça também. Mas o dinheiro ainda não fecha o mês. Preciso de mais. Sempre de mais. Encosto no poste, ajeito a alça do vestido e suspiro. Tento ignorar o gosto amargo na boca, o mesmo gosto que fica depois de cada programa. É quando eu vejo de longe. Dante. O andar dele é diferente. Calmo, firme, perigoso. O tipo de homem que não precisa abrir a boca pra dominar um lugar. A camiseta preta gruda no corpo largo. O cigarro queima entre os dedos. O olhar... escuro, profundo, como se enxergasse tudo. Mas ele não tá sozinho. Uma mulher caminha ao lado dele, colada, rindo de algo que ele disse. Cabelos longos, corpo moldado por cirurgia, short tão curto que m*l cobre a b***a. Blusa colada no peito, salto alto demais pro morro. Perfume doce e barato que chega antes dela. Eles passam perto. Perto o suficiente pra eu sentir o cheiro, pra ela me notar. A mulher me encara de cima a baixo, o olhar cheio de desprezo. E então solta, alto o bastante pra ecoar entre os becos: — Olha lá... a famosa. A p**a mais trabalhada do morro. A risada dela é aguda, venenosa. Meu sangue ferve. O olhar de Dante vai dela pra mim, rápido, avaliando. Mas ele não diz nada. Só observa. — p**a, sou mesmo. Mas pelo menos... não dou de graça. — digo, firme, o tom cortando o ar. O silêncio cai pesado. Alguns riem. Outros fingem que não ouviram. A mulher enrubesce. Abre a boca pra responder, mas Dante se adianta. Ele ri, uma risada curta, rouca, cheia de desdém. — Vamos embora. — diz, virando as costas pra ela. E seguem ladeira acima. Mas antes de sumir, ele olha pra trás. Rápido. Intenso. O olhar dele encontra o meu. Por um segundo, o barulho da rua some. Sinto o estômago revirar, o coração bater mais forte. Tem alguma coisa ali. Algo que eu não devia querer sentir. Mas sinto. O olhar dele me marca, mesmo à distância. E quando ele desaparece na curva, fico parada, imóvel, com a respiração presa. A madrugada já tomou conta. Eu tentei. Fiquei no ponto por mais horas, com o salto machucando o pé, o vento gelado batendo nas pernas. Nenhum cliente parou. Nenhum carro reduziu. Aquela cena queimou meu nome por hoje. Todo mundo viu. Todo mundo ouviu. Agora, até os que antes me olhavam com desejo só me observam de longe, cochichando. E eu ali, parada, encostada na parede descascada, o corpo doendo, a mente vazia. O dinheiro da noite não fechou. Mas eu não aguento mais. Respiro fundo, olho pro céu encoberto e começo a subir a ladeira de volta pra casa. A madrugada tá fria. As luzes piscam. O morro nunca dorme. E eu sigo em silêncio, sentindo o peso do mundo nas costas, e a certeza amarga de que amanhã tudo recomeça.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD