Qual de vocês quase derrubou a minha aporta? — Não dei importância pela parada de fofoca que eles tinham feito. Mas eu notei.
Do que é que você tá falando? — Tarik disse, franzindo o cenho.
Algum engraçadinho bateu na minha porta — Falei apontando em sequência para Tarik e Micael — Falei para entrar duas vezes, mas ninguém o fez. Aí justo quando me aproximo, vocês batem com força na porta e me assustam! — Fiz uma expressão ironicamente assustada — Isso não é legal, gente. — Cruzei os braços e me encostei no corrimão da escada.
Eles entreolham-se, intrigados.
Prima, você bateu a cabeça? — Micael perguntou, arqueando a sobrancelha. Por um momento achei que fosse uma pergunta retórica, mas a expressão dele estava séria.
Não, por quê? — Eu disse.
Pois nenhum de nós fomos bater na sua porta. Aliás, por que iríamos fazer isso? — Disse Micael.
Pra me assustar, óbvio! — Falei dando uma risada em deboche.
Moça, juramos pra você que não foi nenhum deles. Eu não faria algo i****a assim. — Miguel disse.
Droga! Não o conheço, então não sei a capacidade dele em mentir. Mas ele parece estar sendo honesto.
Tá...— suspirei — Tomem cuidado, quem bateu na minha porta pode fazer o mesmo com vocês! — Falei soltando uma risada maléfica.
Você não deveria fazer graça com isso! — Tarik disse, com uma expressão assustada.
Amarelou? — Ri, incrédula.
Tarik mostrou o dedo do meio e me virei, dando uma risadinha como se tudo aquilo fosse uma bobagem. Eu volto pro meu quarto.
Tornei a fechar a porta e fui olhar pela janela. Já não chovia mais...Agora os dois balanços se movimentavam, em sintonia. Jurei que mais adiante vi alguém caminhar rapidamente em uma direção que não consegui avistar. Aquilo me deu calafrios...
Fechei as cortinas da janela, me deitei na cama, cobri até a cabeça e coloquei os fones.
***
Outro dia, 08:00 da manhã
Irina! Irina! O pai e a mãe disseram para você ir fazer compras! — Ele disse enquanto me arrancava do meu sono profundo. Meu corpo se balançava com os empurrões que ele me dava.
E por que você não vai? — Eu me virei e voltei a tentar dormir.
Não é óbvio?! Eles mandaram você, e não eu. — Tarik.
Acho que eles confundiram, porque o burro de carga aqui é você, e não eu. — Revidei.
Ui! — Micael e Miguel disseram em uníssono.
“De onde esses garotos saíram?!” - perguntei a mim mesma. Olhei em direção ao coral Tico e Teco, e eles estavam esgueirados na porta.
Eu posso ir com você, Iri? — Perguntou Mica, tímido.
Hmmm, até hoje você não desiste dela?! Cara, ela é sua prima! — Tarik disse fazendo careta de nojo.
- Não mencionei que desde crianças, Micael sempre foi afim de mim. Eu nunca dei muita importância a isso. Micael sempre foi como um irmão pra mim.
Seu i****a! Cala a boca! — Ele jogou uma revista de automóveis, do meu pai, em Tarik.
Mereço... — Miguel disse sarcástico, revirando os olhos.
Crianças... — Me levantei e segui até o banheiro.
Você tem a mesma idade que eu, sua retardada! — Tarik protestou.
Posso ter a mesma idade, mas a falta de senso e maturidade, te garanto que não tenho. — Eu disse enquanto colocava a pasta de dentes na escova.
Strike... — Micael deu uma risadinha vitoriosa.
Ei seus babacas...Vamos tomar café! — Tarik disse dando de ombros, marchando para fora do meu quarto. Ouvi o fechar da porta.
Terminei minhas higienes matinais e fui me arrumar. Vesti um macacão jeans surrado, uma blusa simples e um all star vermelho desbotado. Deixei meus cabelos soltos; coloquei meus óculos e desci. Os garotos faziam piadas obscenas sobre coisas aleatórias, enquanto Miguel ainda se mantinha sério.
Ao passar em frente a cozinha, ele me encarou. Senti um calafrio percorrer em minha espinha. Apertei os passos para me sentar, sem fitá-lo. Ele me deixa extremamente subjugada quando me olha dessa maneira.
Tomei meu café da manhã, que foi apenas uma tigelinha de cereal com leite. Em momento algum desviei meu olhar da tigela.
Ao terminar, coloquei a louça na lavadeira e recolhi o dinheiro em cima do micro-ondas. Peguei meu celular e caminhei em direção à porta.
É para comprar comida, entendeu? — Tarik disse. Fiz sons agudos de “mimimi”, imitando-o.
E saí.
***
Irina pegou sua velha bicicleta amarela e seguiu seu caminho até a cidade. Mesmo com pequenos obstáculos e um caminho sinuoso, a garota pedalava alegremente, sem dar um pio de reclamação.
Era quase uma terapia sentir o ar puro vindo das grandes árvores de eucalipto. Era o aroma favorito de Irina. Involuntariamente, trazia lembranças da infância.
E há quem diga, ainda era a mesma garotinha de sempre.
***
Irina
Cheguei ao mercado, comprei só coisas básicas. Passei numa biblioteca e fui até a sessão de livros fictícios de terror — Eu não costumava ler esse gênero de livro, mas eu queria algo que me tirasse totalmente a atenção. Tinham vários títulos, com as mais variadas sinopses — mas tudo da moda.
Eu queria um bem antigo, pois a escrita é mais crua. Encontrei um denominado de “Anjos e Demônios – 1887” Peguei, fiz minha ficha e voltei para casa...Louca para poder lê-lo.
Cheguei na hora do almoço e quando deitei a sola do meu pé na madeira úmida da entrada da casa, o cheiro de bife acebolado percorreu em questão de segundos para minhas narinas. Meu estômago também sentiu, e em resposta, um ronco quase selvagem se fez.
Segui até a cozinha e os meninos estavam cozinhando...Quem mais fazia as coisas era o Miguel. Tirei meu livro da sacola, enquanto Tarik e Micael guardavam as compras.
Iniciei a leitura em meu “novo” livro... Era bem interessante... Nem vi a hora que os meninos terminaram de fazer a comida. Fiz meu prato e voltei a me sentar. Miguel não estava comendo.
Cara, se você continuar assim, vai ficar tão magro que quando pisar lá fora, vai sair voando.
— Os garotos deram um riso abafado, colocando a mão fechada em frente à boca, tapando-a. Seus ombros contraíram.
Eu não como comidas assim, na verdade. Sou vegano. — Ele disse serenamente. Não esboçou nenhuma expressão.
Mas não deveria só comer legumes, então? — Perguntei, franzindo o cenho.
Meio difícil de explicar. O que eu realmente posso comer, não tem aqui. — Ele suspirou, cedendo à minha impertinência.
Deixe-o em paz, Irina! — Tarik disse erguendo o rosto, olhando para o teto e arfando impaciente.
Revirei os olhos e fui para a sala. Realmente me intrometo demais em muitos assuntos, e reconheço. Mas na maioria das vezes, não faço por m*l.
Minha TV não tinha sinal, então deixei meu prato no sofá e fui até as fitas... Como quem não tivesse interesse, só estava ali por estar. Olhei fita por fita, com nomeações de filmes dos anos 90 e 2000 e desenhos animados estampados em uma espécie de fita branca na lateral do objeto. Fui me desanimando. — Mas uma fita em específico, tinha um título escrito aparentemente em Latim. Sua aparência era um pouco mais antiga que as demais.
Não entendi nada do que estava escrito, mas coloquei ela no videocassete e me sentei no sofá. Comecei a comer enquanto esperava qualquer imagem se fazer na tela. Por um momento, pensei ser um filme com conteúdo adulto de algum antigo morador — ou até mesmo do meu pai. Era antigo demais para ser do Tarik ou do Micael.
~
Um homem de cabelos grisalhos e um rosto ossudo apareceu na tela. As rugas em seu rosto eram nítidas e algumas até pareciam serem mais profundas. Seu olhar exausto e afável parecia saber que eu estava o vendo, e de alguma forma, parecia me consolar. Pude ver que ele usava uma roupa de...Padre? Mas sem batina ou algo assim. Era uma roupa social completamente preta, destacando apenas seu colarinho clerical sob a gola da camiseta social.
Não entendi nada do que aquele homem falava... Então penas segui observando o vídeo. Era essa mesma casa que estávamos, no balanço havia duas crianças...E eram dois meninos. Um deles tinha um pouco da aparência do Miguel e o outro eu não fazia a ideia de quem seria. Eu ainda digeria mentalmente o ambiente e o que estava acontecendo, e como em um choque, processei completamente aquele lugar — Aquele balanço, é justamente o que havia no campo. É aquele que eu gosto de ficar! — Mas algo começou a mudar naquele vídeo; A imagem se distorcia com rapidez, como estáticas seguidas de imagens distorcidas. E mesmo assim, continuava a mostrar a casa, como se fosse uma excursão.
Mostrou todos os cômodos. Menos um deles, que ficava de frente pro meu quarto. Minha mãe sempre me disse que não era pra mim nem os meninos entrar lá, porque ali dentro morava o bicho-papão. Crianças sempre acreditam. — Mas até hoje, não tenho coragem de ir lá. Sou cética, mas há coisas que a descrença não se aplica.
Meus devaneios são interrompidos de repente, e a imagem na TV de tubo se congela. A cena parou justamente no corredor que fica o meu quarto e dos meninos. Em cada porta, uma luz fraca tentava escapar de suas frestas ao chão, mas a escuridão do corredor sugava a iluminação que não se estendia por mais que alguns centímetros da fresta da porta.
Mas a porta do meu quarto, era a única que não transmitia isso. Não havia iluminação tentando resistir à escuridão. Em frente à porta, havia uma sombra. Ela conseguia ser mais escura do que a própria escuridão mórbida do ambiente. Mas toda vez em que eu piscava, ela parecia ficar cada vez mais clara. Chegou a um ponto que ela se tornou quase invisível.
Com um baque ao ver o que vi logo após mais uma piscada de olhos, meu coração palpita. Sinto um frio correr, como se tivessem jogado um balde de água fria em mim. A sensação de frio tomou meus pés, pernas e barriga. Minha visão pareceu iluminar-se por milésimos. E o que eu vi, me congelou. A cena não estava parada. A sombra quem estava. Aquilo move a cabeça, com muita rapidez, que quase meus olhos não conseguem acompanhar os movimentos frenéticos para todos os lados. Era como se a cena estivesse sendo adiantada na velocidade “4x” do player de um filme. A sombra se levanta e começa a andar. Mostrou então seu corpo longo, e a silhueta esquelética dominou o ambiente que agora parecia estar claro demais em comparação àquela escuridão que era seu corpo magricela. Cada vez que eu piscava, ele chegava mais perto.
E quando pisquei pela quarta vez, o rosto dele tampou quase toda a tela. O tom daquela sombra se tornou um cinza fúnebre. Então, pude ver seus olhos... — estavam sem o globo ocular... Completamente negros, aros grandes e vazios. Saía sangue daquele espaço vazio, e sua boca formava um círculo. Como se seu maxilar antes no devido lugar, estava muito mais abaixo do que o comum em uma pessoa normal. Não se via dentes, e sim uma completa escuridão.
Consegui sair daquele transe — O pavor me consumia da mesma forma em que eu sentia que aquela escuridão em sua boca estava querendo me consumir. Então, meu corpo respondeu em um espasmo, um susto — e soltei involuntariamente um grunhido esganiçado.
Me levantei. Olhei em volta, vi armários, eletrodomésticos e uma iluminação amarelada irradiava em todo o cômodo. Por alguns segundos eu não fazia ideia de onde eu estava. Mas isto durou até eu retomar a consciência.
Quando me dou conta, eu havia dormido com a cabeça sobre a mesa e o livro estava a poucos centímetros de onde minha cabeça descansava. Olhei em volta e não vi os meninos. Procurei eles pela casa toda, mas nenhum sinal. Fui até lá fora e vi alguém — quase como um vulto, correr até o outro lado da pista que dava em uma floresta de eucaliptos e grama que ia até o tornozelo. Apertei os olhos, tentando reconhecer quem quer que tenha passado correndo para aquele lugar, naquele clima que já estava ameno. Por um momento, jurei que a pessoa parecia o Micael. Mesmo estando de costas, eu pude reconhecer o moletom vermelho do qual ele estava usando hoje... Eu o gritei pelo nome e ele parou, ainda de costas. Comecei a me aproximar rapidamente. Então, ele começou a correr novamente, e eu fui atrás.
Entramos na floresta quase juntos. Eu nem me importei, só queria saber por que o Micael corria de mim. Minhas tentativas de chamá-lo já estavam falhas. O ar gélido e refrescante dava a sensação de cortar os meus pulmões. Eu sentia como se minha garganta seca se rasgasse ao tentar engolir minha saliva, que parecia estar espessa demais para lubrificar minhas amígdalas e epiglote.
Com o cansaço, não consigo levantar o suficiente minhas pernas, que pesavam mais do que o normal. Acabo pisando em falso e escorrego, caindo em uma pequena ribanceira de folhas molhadas. Um barulho abafado do meu corpo contra o emaranhado de folhas mortas tomou conta dos meus ouvidos. Me levanto, e minha roupa está completamente suja de terra molhada e pequenos resquícios de lama. Olhei ao redor, mas não vi ninguém.
Eu estava ofegante e cansada.
Sozinha, falo a mim mesma:
Muito esperta você, Irina. — Falei arfando enquanto apoiava minhas mãos sobre as pernas, semi curvando minhas costas, tentando descansar o meu tronco — Vem pra uma floresta, atrás de um cara que você julga ser o seu primo...
Continuei andando, tentei subir aquela ribanceira do capiroto, mas sempre escorregava de novo. Minhas unhas estavam com tanta terra, que eu poderia levá-la para casa e rebocar as paredes.
Tomei outro caminho...Eu estava com a respiração acelerada, meu coração parecia pulsar até em meus rins. Escutei algo mexer nos arbustos ao meu lado, e não esperei acontecer de novo, e comecei a correr. Não olhei para trás e nem para os lados. Quando, por puro instinto e curiosidade, olho para trás. Sinto um baque, como um choque contra meu corpo, me fazendo cair sentada no chão lamacento. Senti minhas extremidades encharcarem-se. Era como se todo o meu corpo vibrasse com a dor e o latejo. Olhei de imediato para cima, sem entender nada do que acabara de acontecer.
Meus olhos se encontraram com aquele padre do videocassete. Me levanto, atônita, automaticamente me afastando. Ele me pega pelo pescoço com brutalidade, suas mãos gélidas envolvem meu pescoço. Quase sinto o choque térmico no contraste de temperaturas entre nossas peles. Quando o impacto da mão dele me atinge de fato... Em um piscar de olhos, sinto meu corpo em outro estado.
Eu acordei.
Eu estivera sonhando de novo? Dessa vez eu estava deitada na minha cama, com o livro na mão esquerda. Demasiadamente desnorteada, me levanto e caminho em direção à porta.
Vou até o quarto do Tarik, e ele não está lá. Nem Micael e nem Miguel.
Não quero que esse seja mais um sonho...! — Pensei comigo mesma.
Desci, e os meninos estavam brincando de futebol no campo há alguns metros de onde meu balanço ficava. Chamei-os e eles vieram até mim.
Quem me deitou na cama? — Perguntei tentando parecer brava, mas o medo assolou meu tom de voz. Senti meu lábio superior tremer no canto.
Você foi sozinha, ué! — Tarik respondeu sorrindo. Logo em seguida deu uma risada fraca e confusa.
Tarik, isso não tem graça! — Cruzei os braços.
Tá, se quiser, não acredita. — Ele deu de ombros e entrou para casa.
Mica...Me fala o que aconteceu, por favor! — Ok, dessa vez eu não consegui conter a súplica trêmula e chorosa.
Estávamos almoçando normalmente. E você terminou sua comida, colocou o prato na pia, pegou seu livro e foi pro quarto. — Mica respondeu, confuso.
Mas eu fui comer na sala e assistir um vídeo de uma fita cassete! Vocês todos viram eu me retirando da cozinha... — Protestei.
Me conta como era, e o que você fez depois de ter terminado? — Ele pareceu acreditar em mim.
Contei tudo, desde a hora que eu fui assistir até a que eu acordei dos dois sonhos.
Micael e Miguel se entreolharam, assustados.