Alice Narrando
Meu nome é Alice Campos. Tenho 19 anos e sou do Pará. Nasci e cresci lá, no interior, cercada por montanhas, ruas de paralelepípedo, amo nossas comidas típicas. Sempre fui muito grudada na minha mãe. Nunca conheci meu pai, e até pouco tempo atrás, eu acreditava que ela também não sabia quem ele era. Foi o que ela me disse desde pequena.
— Foi só uma noite, filha. Não sei quem ele era. — ela repetia sempre que eu perguntava.
Eu cresci com essa história. E, pra ser sincera, não sentia falta de mais ninguém. Minha mãe foi tudo pra mim. Mãe, pai, amiga, conselheira, minha base.
Ela ralava muito pra me dar tudo do bom e do melhor. Trabalhava o dia inteiro e ainda chegava em casa com energia pra me ajudar nas coisas, perguntar do meu dia, assistir um filme comigo ou fazer meu prato preferido. Tive educação, comida na mesa, roupas boas, tudo certinho. Nunca me faltou nada.
Desde nova, eu me apaixonei por tecnologia. Sempre fui a esquisita do computador da escola. Enquanto todo mundo queria ir pra festa, eu queria aprender programação, montar redes, fuçar os sistemas. Fiz vários cursos online. Me formei em tudo que envolvia computador, rede, segurança, banco de dados. E sim, sei hackear. Não que eu faça isso por mäl, mas eu adoro o desafio. A sensação de invadir um sistema, entender o código, achar a brecha. Eu me sinto poderosa.
Meu computador era meu mundo. Meu melhor amigo. Montei ele peça por peça com meu dinheiro de mesada guardado. E minha mãe sempre me apoiou. Mesmo sem entender nada do que eu fazia, ela achava o máximo me ver mexendo nas telas, digitando sem parar.
Mas a vida tem dessas de virar tudo de cabeça pra baixo.
Uma semana depois que completei 19 anos, minha mãe voltou do hospital com os olhos inchados.
— Alice, preciso te contar uma coisa. — ela disse, com a voz falhada.
— Que foi, mãe? — perguntei, já com o coração apertado.
— Eu tô com câncer.
Eu congelei. Um câncer raro, agressivo. Começamos o tratamento no mesmo mês. Ela teve que sair do emprego, e o pouco que tinha guardado começou a sumir em exames, remédios e internações.
Vendi tudo que eu podia. Inclusive meu computador. Aquilo me destruiu, mas eu venderia mil vezes se fosse pra tentar salvar minha mãe. Só que nem isso foi o suficiente.
Ela definhava na minha frente. Os olhos ainda fortes, mas o corpo cada vez mais fraco. Foi na última visita ao hospital que ela me chamou, com a voz mais baixa que já ouvi.
— Alice, dentro da Bíblia, aquela debaixo do meu travesseiro, tem um papel escondido. É o endereço do seu pai.
Eu fiquei sem reação. Como assim meu pai? Ela não sabia quem era, não foi isso que disse a vida toda?
— Você, sempre disse que não sabia.
Ela virou o rosto, envergonhada.
— Eu menti pra te proteger. E porque eu tinha medo. Muito medo. Mas agora, se você quiser, tem o direito de saber. Só te peço uma coisa — ela apertou minha mão com força. — Se em algum momento você sentir que tá em perigo,foge. Não insiste. Foge.
Chorei tanto naquele dia que nem sei explicar. Horas depois, ela morreu.
E eu fiquei aqui. Com a dor de perder quem mais me amou nesse mundo e com um papel na mão, com um endereço no Rio de Janeiro. Um endereço que pode mudar tudo.
E eu preciso saber por quê. Por que ela mentiu? Por que tanto medo? Quem é esse homem que ela escondeu de mim?
Cheguei no morro com o coração na mão e a cara mais lavada do mundo. O endereço que minha mãe deixou era claro, mas eu não queria chegar chutando a porta e dizendo “oi, sou sua filha”. Queria entender o que ela tanto escondeu. Queria observar, sentir o lugar, as pessoas, descobrir quem era o tal do meu pai antes de revelar quem eu era.
Na vendinha perto da entrada, falei com um cara que me indicou um barraco pra alugar. Simples, dois cômodos, banheiro improvisado, cama de madeira com um colchão encardido. Mas pra mim, tava ótimo. Eu precisava de paz pra pensar. E internet, claro. Consegui puxar um sinalzinho com um roteador velho e já me senti em casa.
Fiquei ali quieta, andando pelo morro, conhecendo de leve, sem levantar muita poeira. Muita gente me olhava estranho. Sotaque de Minas, com cara de perdida, andando sozinha no meio do Dendê, era óbvio que eu chamava atenção.
Foi no terceiro dia que ele apareceu.
Tava sentada na frente do barraco, tomando um suco quente de caixinha, quando um cara veio descendo a viela com um boné virado, camisa regata, tatuagem no pescoço e um sorriso safado no canto da boca.
— E aí, mina, é tu que tá morando nesse barraco aqui?
Olhei pra ele com um pé atrás.
— Sou eu. Por quê?
Ele deu uma risadinha e encostou na parede, olhando direto nos meus olhos.
— Nada não, só achei diferente. Tu não tem cara de quem é daqui. Veio fazer o quê nesse pedaço?
— Vim morar. Só isso.
Ele arqueou a sobrancelha, desconfiado.
— Morar logo aqui no Dendê? Sozinha? Tem coragem, hein.
— Tenho mais do que parece.
Ele sorriu. Um sorriso cheio de malícia, mas ao mesmo tempo curioso.
— Sou o Teto. Cê é?
— Alice.
— Nome de patricinha.
— Não me diga.
Ele riu alto, meio debochado.
— Aí, gostei de tu. Já chegou no veneno. Mas fala aí, qual foi? Veio fugindo de quem?
— De ninguém.
— Sei, mina bonitinha, sozinha, de fora, se enfiando no morro, tá escondendo alguma coisa.
— Tá sendo muito, você é vidente?
Ele mordeu o canto do lábio, como se estivesse se divertindo com minha resposta. Depois fez que sim com a cabeça.
— Justo. Mas ó, o morro aqui não é pra qualquer um não. Se precisar de ajuda, sei lá, alguém mexer contigo, tu fala comigo.
— Tá se oferecendo como segurança?
— Não, pô, só achei tu interessante. Diferente da galera daqui. Quis trocar ideia, só isso. Sem maldade. Relaxa.
Ele deu um passo pra trás, como quem ia embora, mas ainda olhando pra mim.
— Cê é misteriosa, Alice. Mas eu gosto disso.
— E você é abusado.
— Tu ainda vai gostar de mim, cê vai ver.
E saiu andando, com aquela calma de quem sabe que vai voltar.
Fiquei olhando ele ir, tentando entender o que foi aquilo. Teto tinha um jeito perigoso de ser simpático. Ele chegou leve, mas deixou o ambiente pesado de tanta presença. E tinha algo nele que sei lá. Me despertou um alerta, mas também uma curiosidade.
Talvez fosse o jeito despretensioso. Talvez os olhos atentos. Ou o fato de que, mesmo sem querer, eu já tava pensando nele.
Mas eu não posso me distrair. Não agora. Eu tenho um pai pra descobrir. Um passado pra entender. E, pelo visto, um morro inteiro observando cada passo que eu dou.