“Para os que sobrevive na Selva de Pedra, a verdadeira guerra acontece todo dia. E aquele que não luta por um espaço, não tem vez.”
“Se sua mãe tivesse aqui hoje, jamais aprovaria esse tipo de conduta. E digo mais... Era capaz de morrer de desgosto de ter dado à luz a um filho tão ingrato que nem esse.”
As vozes ressoavam na mente como um eco distante, empurrando-o para caminhos que pareciam incertos.
As latas de spray, alinhadas na prateleira, que sempre foram a extensão de sua alma, haviam virado relíquias sem sentido.
Já não sabia se o talento era um caminho certo ou um erro. Não pela arte em si, e sim pelo desprezo dos que nunca viram valor em seu dom.
Diante daquele momento recluso em seu quarto, Iago pegou o caderno de esboços da mochila. Cada página era um pedaço de sua essência: ideias não finalizadas, projetos abandonados e visões de um futuro que ele pouco conseguia imaginar. O peso das críticas se misturava ao medo de continuar fracassando. A dúvida o consumia.
Talvez fosse hora de buscar uma melhor estabilidade, algo que o tirasse daquela espiral de incerteza.
— Tá com uma cara — insinuou Íris.
— Qual?
— Essa, de quem quer falar, e não diz nada por receio. Vai me fala o que houve.
— Só umas coisas que estão fundindo minhas ideias.
— E o que anda mexendo com essa cabecinha?
— Abrir mão de tudo... parar com a arte... com o grafite...
Íris parou no meio da calçada.
— Não pode — ela olhou pra ele chocada. — Isso seria um erro. A alma de um artista é sua arte. Se decidir abandonar, é o mesmo que desistir de tudo... de si mesmo.
— E de que adianta levar isso adiante? Continuar fingindo que as coisas vão mudar... se estabilizar... de uma hora pra outra?
— E desde quando liga para essas besteiras?
— Não sei. Acontece que já não sei se sou capaz de suportar essa situação... de ficar só esperando a vida passar...
*****
A cabeça trabalha melhor com a lata de spray na mão e, naquela noite ele saiu com a mochila nos ombros.
Concentrado nos seus rabiscos cheios de confusão, o chiado suave da latinha de spray transformava lentamente a superfície do muro em uma extensão de seus pensamentos. Como uma marca, uma confissão em cores e formas.
Guardou as latas e fechou o zíper da mochila, avaliando a criação com um olhar técnico, e se afastou rápido daquele pedaço.
Caminhou sem rumo pelas ruas até parar diante de um muro alto. Encarando-o por vários minutos como se fosse uma folha em branco. Lembrou de quando ainda na adolescência segurou uma lata de spray pela primeira vez... das palavras de Íris, que apesar de serem duras, naquela altura ainda faziam todo sentido. Se afastar da arte não era somente uma decisão como qualquer outra. Era um dilema. Um dilema que persistia: continuar significava ir contra tudo e todos, enquanto desistir significava virar as costas à si próprio. Abandonar seus costumes, sua lógica.
Diante da cristaleira cheia de enfeites, um retrato antigo, mostrava o pai em sua farda militar em uma pose imponente. Os traços sérios e a postura firme contrastava com a rebeldia que ele próprio herdara. Para o pai, a vida se resumia ao dever, disciplina e estabilidade. Para ele, era tudo sobre expressão, emoção e liberdade. E naquela hora, diante daquela imagem, por fim compreendeu os propósito que buscava dia após dia.
Com as ideias renovadas, Iago reuniu toda a coragem que precisava para enfrentar os tios.
Ele entrou e caminhou até o meio da sala ficando de frente para os dois.
Acostumados às reclamações e debates rápidos, não aquela conduta. Havia algo diferente na postura dele. Seus ombros não estavam tensos, e o olhar não era esquivo como de costume.
— Tia Fátima. Tio Bernardo. Tenho um comunicado a fazer, e quero que ouçam com atenção.
— Desembucha menino. Fala logo. Que foi que aconteceu? — a tia questionou aflita.
— O que aconteceu foi que... cansei de tentar provar o meu valor... De convencer as pessoas da importância daquilo que faço... de ser tratado como um fardo — falou.
— Tava demorando! — murmurou o tio calculista, já esperando por uma das discussão sem fim.
— Fiquei pensando... — Iago apontou —...talvez estejam certos. Talvez o certo fosse por a mão na consciência.
O tio franziu o cenho, roçando o queixo desconfiado.
— Tá falando sério?
— Cansei de argumentar, de tentar convencer, e ainda assim ser julgado. Então a resposta é sim. Estou. Estou disposto a rever minhas escolhas. A ir em busca de algo que me dê uma melhor perspectiva, dignidade. Como sempre quiseram.
— Até parece — o tio deu de ombros descrente. — Quem não te conhece quem te compre.
— Graças meu deus! Graças! Até que enfim esse meu sobrinho resolveu tomar juízo nessa cabeça.
Disse a tia em um gesto de devoção e gratidão.
*****
A decisão foi um novo marco, colocá-la em prática, no entanto, exigiria um esforço ainda maior.
Passava os dias tirando dúvidas, pesquisando, se informando. Visitou sites oficiais, leu editais de concursos anteriores, assistiu vídeos que falavam sobre a trajetória. Por último, se perguntou se teria a disciplina e a resiliência necessárias para enfrentar um ambiente tão rígido e oposto à liberdade que tanto valorizava.
Decidido a tentar, Iago estruturou uma rotina de estudos:
Comprou apostilas para concurso, focadas em português, matemática, legislação, direitos humanos e conhecimentos gerais.
Reservou manhãs e noites para estudar, mantendo as tardes para uns b***s de carregar caixas na feira com o tio.
Além do estudo, incluiu treinos físicos como corrida e flexões para se preparar para o teste de aptidão física (TAF).
Para seguir nesse plano, ele teve de abdicar do tempo dedicado ao dom artístico. Guardou suas latas de spray no fundo do guarda-roupa, como se estivesse enterrando uma parte de si.
Os tios, surpresos e satisfeitos com a nova postura, resolveram ajudar com o custo das apostilas.
Iago logo percebeu o nível de dificuldade. A parte de matemática era, de um modo em particular, complicada de assimilar, e ainda tinha o nervosismo.
Nos testes de aptidão física, enfrentou o primeiro grande obstáculo: correr dois mil metros no tempo exigido. Não conseguiu na primeira tentativa. Humilhado, voltou para casa determinado a treinar incansavelmente. Comprou um tênis de corrida e passou a correr todos os dias pela manhã, mesmo debaixo de chuva.
Começava a compreender melhor o motivo de seu pai ter escolhido a vida militar. Ser um P.M. era disciplina, obediência, também sobre “proteger e servir”, algo que ressoava com seu próprio lado sensível e idealista.
No primeiro dia do mês de agosto, as mãos chegavam a suar de tanto nervosismo. Iago, com a aparência bem ajeitada, se viu em uma sala cheia. Muitos que, como ele próprio, estavam atrás de ingressar naquela carreia. Fez a prova sem esquecer os sacrifícios que teve que fazer.
Quando saiu o resultado, não podia nem acreditar: estava aprovado! Ainda havia etapas como exames médicos e entrevistas psicológicas, fora isso, o primeiro passo estava dado.
O tio o cumprimentou com um tapa nas costas. — O que eu falei? Quando para de se questionar e vai fundo, as coisas acontecem.
A tia, sempre emotiva, parecia não se conter de tanta felicidade.
Com Íris, na entanto sabia: não seria tão fácil. Especialmente por sustentar opiniões contrarias sobre a decisão dele abrir mão de algo que para ele, sempre foi tão importante.
Os dois se viram ao entardecer.
— Tenho uma novidade — anunciou ele cauteloso.— É sobre o resultado do concurso. Fui aprovado.
— Legal — disse ela sem que expressasse entusiasmo. — Fez por merecer. Chegou onde queria.
— E não ficou feliz? Por mim.
— Estou — Íris segurou as mãos dele — só que não é possível pra mim manter-se imparcial, sabendo o quanto a arte significa pra você.
— Podia pelo menos me apoiar.
Iago olhou pra ela.
— Entender que... a única forma de sentir que algo ainda fazia sentido, foi testar meus limites... me redescobrir por dentro — completou.
— Sentido pra quem? Por você mesmo ou sentir que faz parte da sociedade?
Iris interrogou como quem busca desvendar um mistério indecifrável.
O sol se punha atrás da cidade, pintando o céu de dourado.
Diante da fotografia do pai, Iago sentiu que havia encontrado uma direção. Talvez um pouco diferente daquilo que imaginava. Assim mesmo, uma chance de dar um novo rumo a sua vida.
Não era apenas a farda que vestia. No espelho, já não enxergava o garoto das ruas, o grafiteiro que desafiava paredes. Via um homem moldado pela disciplina, pelo código e pelas regras a serem seguidas.
A farda lhe dava autoridade. No lugar onde cresceu, percebia olhares. Alguns com respeito, outros com desconfiança.
Aos poucos, a estrutura rígida da corporação era enraizada dentro dele. O cumprimento, a hierarquia, o jeito de andar e falar. Tudo precisava ser calculado. A farda lhe dava estabilidade, um rumo. Ao mesmo tempo que moldava uma nova identidade, mesmo que para isso significasse deixar para trás uma parte de quem era.