Capítulo oito - 8:2

1542 Words
Desde a adolescência a maior obsessão sempre fora o som pesado do metal, a barba por fazer, o jeans desbotado. Mas também o ronco potente de uma máquina envenenada. Diferente do talento natural para a musica, os carros era seu refúgio. A oficina, um santuário particular. O mundo fazia maior sentido quando envolto ao cheiro de gasolina, o tintilar metálico das chaves vibrando no chão de cimento. E, o som de um motor voltando à vida, era uma sinfonia quase tão bela quanto qualquer solo de guitarra. Costumava passar horas debaixo do conversível vermelho — uma raridade de colecionador — sujo de graxa até os cotovelos, lutando para ajustar a suspensão problemática e uma força invencível. O perfume doce, as carícias, os beijos molhados que ele e Nicole trocavam, ainda impregnava aquele lugar tanto quanto suas lembranças. O quarto era um reflexo vivo da desorganização que sentia por dentro. A chuva fina batia contra o vidro da janela, enquanto ele, Renato, ajustava o volume do pequeno amplificador. Era difícil determinar com clareza. Devia fazer quatro, talvez cinco semanas, que o vazio deixado pela ausência de Nicole parecia ressoar em cada nota. Um desentendimento como tantos que tiveram, mas a rejeição havia deixado no lugar do sentimento um vazio insubstituíveis, como se ela tivesse passado a ignorar sua própria existência. Os acordes ressoavam uma melodia tímida enquanto os dedos deslizavam automaticamente em busca de se reencontrar com a inspiração perdida. No fundo da alma sabia: o único meio fácil de tornar isso possível, era despir-se de todo orgulho e deixar que o sentimento reprimido cuidasse do resto. Ele se levantou e no impulso guiado por uma combinação de intuição e desespero, atravessou a chuva, sem se importar com os pingos que encharcava sua roupa. Contrariando as lembranças que iam e viam, ora trazendo imagens borradas, ora sensações que ele relutava para afastar, uma certeza cintilava como um lampejo de esperança. Havia decorado os detalhes da rotina dela como uma melodia que não se consegue esquecer, e agora sentia que essa lembrança era sua única chance de romper as barreiras que havia se fortalecido entre eles. Girou a chave da ignição, o motor do conversível demorou a engrenar e pegou no tranco. Nicole tinha o vício particular de ler acompanhada de uma boa dose de café e, isso o conduzia a pequena cafeteria a qual ela costumava frequentar especialmente nas tardes tempestuosas iguais aquela. O limpador de para-brisa arranhava o vidro, lutando para acompanhar a chuva que insistia em cair. Ele dirigia pelas ruas praticamente alagadas, as luzes dos postes se desfazendo em reflexos distorcidos sobre o asfalto molhado. Os batimentos se acelerava conforme ele se aproximava. A cafeteria ficava perto de um restaurante de frutos do mar, conjunto a entrada do parque com a avenida principal, a quinze minutos do centro. Um lugar charmoso e discreto que parecia ter saído de um livro antigo, com sua fachada de madeira e ambiente aconchegante, o qual era tão apreciado por Nicole. Renato encostou numa das vagas do café, forçando as vistas através do vidro embaçado pela água. As mãos ainda travadas segurando o volante com força em busca de encontrar a coragem. O céu desabava sobre sua cabeça. E ao cruzar a soleira da entrada, fora envolvido quase que instantaneamente por uma lufada de ar morno, carregando um aroma reconfortante de café fresco feito na hora. Seus olhos, urgentes e aflitos, percorrem lentamente o ambiente — até que por fim a encontrou. Sozinha em uma das mesas, delineada com delicadeza pela luz pálida da tarde nublada, Nicole girava a colher com movimentos lentos dentro da xícara fumegante. Havia algo de diferente nela. As roupas, justas e despojadas, modelava uma imagem distinta da Nicole que ele conhecia. Os cabelos, antes na altura dos ombros, estavam repicados e curtos, pigmentado com uma cor vibrante, ousada. Por um momento tudo pareceu suspenso. Renato deu um passo meticuloso de alguém que se agarra ao último fio de esperança. — Oi — disse inseguro. — Eu sei. Pode parecer confuso aparecer assim do nada. Principalmente com um tempo desse. Mas... se deixar, eu posso explicar... As botas umedecidas pela chuva formando pequenas poças no piso escuro polido, como o rastro de um náufrago. — Pensei que tinha ficado esclarecido que não tínhamos mais nada o que conversar — ela o questionou incisiva. — Sei disso, mas... pelo menos me escuta, e eu juro que não terá mais que olhar na minha cara. Nicole estatizou. O olhar perdido nos pingos de chuva em precipitação por de atrás dos vidros. — Tá. Fala. Mas se veio aqui esperando reencontrar aquela “garotinha” que conheceu, é bom que saiba: superei essa fase. Cansei de ser a ingênua, de me entregar cegamente e sempre me arrepender depois — entoou ela. — Estaria mentindo se dissesse que não esperava por isso. Aliás está ainda mais linda do que eu me lembrava. Renato salientou em intensão de descontrair. Não colou. Ele sentou e apertou as mãos em cima da mesa, como se fosse em um tribunal. — Reconheço, foi uma atitude precipitada aparecer assim. Uma entre tantas outras. Principalmente porque posso ter piorado as coisas. E não estou dizendo isso porque espero que entenda ou diga que tudo bem. Não. Estou dizendo porque o meu maior desejo é que tudo volte a ser como era antes. — Viu? É por isso que nunca vai dar certo. Pra você é tudo tão natural. É só vir aqui bancando o arrependido romântico, com esse discurso carregado de promessas vazias. Nicole engoliu o café como se o líquido fosse a âncora que a mantém firme. — Nunca teve haver com arrependimento. Tem haver com esse seu individualismo racional. Como sempre faz que eu me sinta quando estou com as minhas amigas. — Eu entendo e acho justo que se sinta dessa forma. Mas o que eu tenho que fazer? Subir num prédio de cem andares ou... me jogar do alto de uma ponte? Me diz? Por que se for, é só dizer. — A menos que esteja afim de impressionar alguém, não tem que fazer nada insano. Agora, se realmente se preocupa de verdade com o que eu quero, aprender a mudar, a valorizar as pessoas como elas merecem, já seria um bom começo. — Nick, Gatinha, presta atenção em mim — protestou Renato em tom baixo — Olha, se tiver que esperar até você se resolver, tudo bem, eu espero. Espero o quanto for necessário. Só me promete que vai pensar com calma. — Terminou? — Nicole deu de ombros. — Não estou disposta a sair disso magoada de novo. Não dessa vez — reforçou. Renato olhou para ela como se quisesse enxergar além de toda a mágoa e, do mesma maneira abrupta que havia entrado, saiu da cafeteria. A chuva continuava, borrando o brilho dos faróis que passavam na pista quase submersa. Nicole andava com os ombros curvados, os braços envolvendo o próprio corpo em vã tentativa de mantê-lo aquecido. Renato não pensou duas vezes. — Vai uma carona? — disse destravando a porta do conversível — É isso ou a hipotermia. Ela hesitou um segundo, dois, e então, cedendo a urgência da situação — fria e úmida — decidiu não recusar a oferta. — Fico te devendo — murmurou ajustando o cinto. — Disponha — respondeu Renato com um sorriso discreto. O carro deslizou pela pista encharcada, deixando para trás as luzes dos postes esparsos e o reflexo dourado dos faróis espelhado nas poças de água. A sensação de desconforto lentamente sendo desvanecida até que, em vez de seguir o caminho lógico, Renato girou o volante com firmeza, estacionando no meio-fio daquele trecho estreito e isolado da estrada, ladeada por árvores que se balançavam sob a força dos ventos. — O que aconteceu? Por que paramos? — questionou Nicole. — Espero que tenha uma boa explicação. — Porque... — disse Renato intermitente. O pisca alerta ligado. O limpador balançando no para-brisa. —...porque eu queria um minuto sem ninguém olhando. Porque, caramba, você significa tudo pra mim e, talvez essa seja a melhor chance que vou ter para expressar o que sinto. Não vou negar, fui um i****a. Por isso estou aqui. Porque tudo que eu preciso é ter você, Nicole — admitiu. As gotas de chuva continuava caindo em um ritmo incessante sobre a capota de lona, criando uma atmosfera tensa. Talvez fosse a química que os dois sempre tiveram, ou a sinceridade nos olhos dele que sempre a convencia. O rosto suavizando, e, antes que percebessem, os lábios se encontraram. Um beijo com um desejo voraz — selvagem, ardente. Não havia espaço para dúvidas, só o calor dos corpos que se desejavam enlouquecidamente. Nicole tirou a blusa, montando sobre ele, apoiando-se com os joelhos no banco. As mãos dele deslizando por sua cintura, apertando-a suavemente. Os dedos se perdendo por entre os fios dos cabelos úmidos. O interior apertado do conversível, tornava-se naquele momento o pequeno universo particular dos dois, onde nada além do prazer e os beijos entorpecidos, existia; o calor do contato físico; o ar úmido e frio que se infiltrava pelas frestas do carro, tornando o toque ainda mais intenso. Ao término, estavam ofegantes. Rostos colados, respiração entrecortada. Corações acelerados.
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