Capítulo vinte

1561 Words
O skate corre fácil pelo asfalto áspero, vibrando sob os pés do skatista. Desafiando imperfeições, buracos, rachaduras, restos de brita que podem mandar qualquer um para o chão sem pensar muito. O que vale é a adrenalina. A energia que pulsa nas veias. A aceleração constante da descida. Com um leve pop, os pés ágeis mandam um Varial Flip e aterrissa suave. Sente o impacto duro do asfalto. Passa por uma sequência irregular de paralelepípedos. Levanta o nariz do skate e encaixa um Ollie limpo na avenida. Ao lado, um ônibus passa rasgando o vento, e ele, sem estresse, em demonstração de puro domínio dos movimentos e das emoções, desvia com suavidade e atenção essencial ao hábito de se aventurar nesse esporte radical. A volta, "a vida em si", continua apressada — mas naquele instante, ela se resumi ao barulho do skate riscando o chão, à adrenalina de arriscar tudo em cada manobra e ao prazer de desafiar o impossível. Em cima do skate, a cidade se transforma: os degraus em pistas, os corrimãos são nada menos que um convite as manobras, e as praças vazias nos primeiros raios depoentes do crepúsculo, verdadeiros templos a céu aberto. O rap das antigas rolando solto sem parar. Sempre com um cumprimento aqui outro ali. Linguagem de convivência local. Acenos rápidos em sinal de respeito a quebrada. Um skatista das antigas — apelidado de “22” — já estava lá a espera no mesmo ponto de encontro de sempre. Max deu um leve pop no skate. — Fala aí, 22, só na contenção? O grupo aos poucos começava a crescer. Mayra e Tico vinham no mesmo passo trocando uma ideia. — Bora pega a pista? — perguntou 22 com aquela atitude de quem já está preparado. Mayara ajustou o pé na base. — Só se for agora. A pista não era só uma decida. Era um ritual! O vento no rosto, o som das rodas riscando o asfalto fazia parte, as manobras executadas no escuro. Max foi o primeiro a se lançar. Ganhou velocidade com dois pushes fortes, o corpo relaxado, mas atento. Passou rente a uma mureta, mandando um Shuvit perfeito na sequência. 22 veio logo atrás, encaixando um Frontside 180 com precisão. A pista apareceu logo à frente, um espaço aberto, com corrimãos chamativos e banks a espera das manobras. Tico puxou um Ollie alto logo na entrada, aterrissando firme. 22 deslizou até a borda e mandou um Boardslide, arrancando suspiros apreensivos da galera a beira da pista. Mayra mexeu no cabelo e, com um impulso rápido, desceu em um Drop suave. Tico arriscou um Heelflip — por pouco não perdeu o equilíbrio, mas se recuperou no último segundo. ***** O fluxo acelerado da cidade seguia incessante. Semáforos se alternando entre sequências de cores em um ritmo impessoal, controlando o vai e vem do trânsito pesado nas avenidas. No horizonte cinza, arranha-céus lançam suas sombras alongadas sobre as ruas constantemente agitadas, enquanto nas andanças diárias, multidões se apressam imersos na rotina. Reuniões. Entrada e saída de escritórios. Estações e pontos de ônibus lotados. A semana segue. Avança. Presa em um ciclo autônomo. Puxada. Apressada. Não há trégua. Os dias são como mergulhar em um looping ínfimo de repetições. Avenidas congestionadas, estações de metrô transbordando de gente, escritórios em meio de expediente, reuniões intermináveis. A cidade respira um cansaço coletivo. O meio da semana trazia a sensação de um percurso ainda longo, um intervalo onde nada realmente começa ou termina. Apenas continua. Max desceu o escadão onde acompanhava Tico e Mayra debater sobre campeonatos profissionais de skates acontecendo ao redor do mundo. Nicole parou na rua e esperou, ouvindo um chamado. — Nick, oi. Dando uma volta? — perguntou Max despretensioso. — É. Por aí. — Faz muito bem. Pra aliviar o estresse. Mas claro que já sabia disso. Bom, e se não tiver com pressa como da outra vez, pensei que gostaria de passar um tempinho junto. Sei lá. Por o papo em dia — insistiu ele. — Claro. — Beleza. Então chega mais. Vem conhecer a galera. Ele foi na frente levando-a a presença dos colegas. — Esses são... — ...Mayra — ela se antecipou. — E esse aqui é o Tico. Somos namorados. — Melhor não dar em cima de mim na frente dela. É sério. Ela é louca — aconselhou Tico. — Oi. Como vai? Nicole forçou um sorriso. — Fica fria. O Tico tá só tirando uma onda. — Ele é sempre assim? — perguntou reservada. — Eu diria que noventa e nove por cento das vezes — Max riu fazendo um arredondamento. — Chegou quem faltava! Anunciou Mayra. — Tava se esquivando da galera. Qual que é? — checou ela. — No corre, atrás de resolver uns B.O sobre o meu pivete. Tô esperando sair a guarda compartilhada. Mas se depender da mãe dele... O prazer dela é dizer pra Deus o mundo que eu não tenho capacidade de sustentar um filho... que quando cresce, ele vai seguir o exemplo de um largado, irresponsável. Essas bobagens todas. 22 respondeu pensativo. — Às vezes tenho vontade de largar de mão — ele fez uma pausa frustrado. — mas se eu largar... melhor nem comentar. — O que importa é que tá fazendo sua parte. Buscando contar sua versão. Expressou Mayra. — Se fosse, tava bom. A questão é que qualquer juiz compra essa ideia. O negocio é levantar a cabeça e, seguir firme na luta sem se deixar abater. Tico foi o primeiro a pegar o skate, impulsionando-se com facilidade e deslizando pela rampa com manobras rápidas. Executando um kickflip preciso. Mayra foi logo em seguida, executando um ollie limpo que arrancou um assovio impressionado de Max. Nicole permaneceu no canto da pista, acompanhando os movimentos sem perder um mínimo detalhe que fosse. Max se impulsionou com força, ganhando velocidade antes de se arriscar em um grind na borda da pista e aterrissou com perfeição. Enquanto se preparava para a próxima, 22 que observava de fora, também entrou na pista desfechando com o show a parte, executando uma série surpreendente de manobras. Depois da rodada os ânimos relaxaram. O sol já havia se posto no horizonte e um após o outro, os refletores começavam a se acender. — A gente ia acender um pra relaxar. Tá afim? Max se aproximou de Nicole com um jeito cúmplice. — Já deu um pega antes? — Não, eu nunca — revelou Nicole. — Não tem nada demais, é só um peguinha. Anda, vai ser maneiro. Eles se reuniram com Mayra, Tico e 22 na borda da pista. Max riscou a chama do isqueiro, produzindo uma fumaça espessa conferindo um aroma herbal com notas de especiarias inclusas no processo de maturação da erva, passando para Mayra, que logo entregou para Nicole. Por um momento em dúvida antes de se decidir. Ela puxou a primeira tragada, sentindo um leve incomodo nas vias aéreas, e tossiu. Imediatamente dominada pela sensação de leveza prolongada, provocada em efeito durante o uso da substância. Se ajuntando a descontração das conversas jogadas ao vento, Nicole se acomodou no degrau, mexendo distraidamente na pulseira que usava no pulso esquerdo, enquanto Tico e Mayra e 22, permaneciam absortos na conversa sobre rampas e manobras. Max, por sua vez, sentou-se ao lado dela e, abrindo o zíper da mochila, sacou um bolinho desses em embalagem plástica. — Tá um pouco amassado, mas ainda dá pra comer. — Valeu. Nicole segurou o bolinho e continuando a vasculhar o interior da mochila, ele puxou uma latinha de refrigerante zero açúcar. Max abriu a latinha e deu um gole rápido e a colocou no chão entre os dois. — Então me conta... o que pensa sobre honestidade? — Honestidade como? Ser verdadeiro ou transparente? — É isso aí. — Ah, legal. As vezes. Assim, por ser uma qualidade, mesmo que algumas pessoas tenha certa dificuldade de se expressar dessa forma. — Na boa? Nicole murmuro um “sim” de boca cheia engolindo um pedaço do bolinho. — Certo. Então honestamente... como me via antigamente? Seja sincera. Ou vai parecer que nem havia reparado. Nicole franziu um pouco a testa. — Difícil definir com clareza... — ela deu um gole no refrigerante e limpou a boca com o dorso da mão. — Você tinha aquele jeito seguro de si, meio de quem vive se achando o insuperável. — Vai em frente. Pode me chamar de metido. — Naquela época. Nada haver hoje. Minimizou ela. — Agora vai lá. Responde. Como me achava? — Não dá pra aliviar? — Já dei meu feedback, então... nada mais justo. — Tá certo. Se não tem outro jeito — respondeu Max. — Te achava... meio diferente. — Diferente... em qual sentido? "Bom" ou "r**m"? — Um pouco dos dois. Assim, nem muito solta nem muito reservada. — Saquei. Tipo um meio termo — considerou Nicole. — Pelo menos era o que diziam os comentários. Enquanto os dois debatiam, conservando o ambiente relaxado, Tico se preparava para descer a rampa com algumas manobras solo. Ele apoiou o skate na beirada e desceu com velocidade, arriscando uma manobra ousada. Cravando uma aterrissagem perfeita entusiasmando a plateia. Max aplaudia com assovios. Desde a época da escola não haviam trocado nada além de olhares rápidos no corredor, mas no entanto, tanto um quanto o outro, estavam abertos a reconhecer as mudanças.
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