Capítulo dezenove - 19:2

682 Words
Morena passou os dedos desembaraçando os fios dos cabelo. O batom vermelho intenso contornando os lábios de veludo, a expressão decidida entregando o cuidado minucioso que dedica à própria aparência. Se vestiu com as roupas justas acentuando suas curvas sem esforço. O salto elevando levemente a postura. Na cozinha, o ruído baixo da panela de pressão chiava ao fogão, ditando o ritmo do dia. Gostava da avó materna. Das conversas longas na frente de casa. A avó com seu jeito tranquilo, confeccionava a mão uma peça de tricô na varanda. A tia estendia roupas no varal. Trazendo no vento a fragrância suave do sabão de ipê e amaciante de rosas. O primo, Tonico, praticamente já um homem feito aos 16 anos de idade, apareceu rápido na porta. — Acabou o açúcar! A mãe pediu para eu ir até o mercadinho. Quer que traga alguma coisa pra senhora? — Não meu filho, não precisa — respondeu a avó sem tirar os olhos do tricô. — O que tiver em falta, eu mesmo compro quando for a feira amanhã cedo. Morena estava distraída, mas sua expressão a entregava. — Que foi minha querida. A avó ergueu os olhos por trás dos óculos de leitura, cessando o movimentos ágeis com as agulhas. — O que anda afligindo essa minha neta? — Nada ué. Que pergunta! Morena desconversou pega de surpresa. — Pensa que me engana? Não me engana. Pensa que as vistas cansadas dessa velha impede ela de enxergar, mas não impede. Posso ser velha, mas sei muito bem quando estão tentando me fazer de boba. Disse a vó. As marcas profundas das linhas de expressão delineando o rosto convicto. — Para de coisa, vó. Que saco! Morena largou o tricô ignorando as palavras que soavam como uma advertência. Sentia prazer na liberdade de andar despreocupada, assuntar as conversas das pessoas nas esquinas. A noite chegava mansa enquanto ela caminhava pela calçada de paralelepípedos desgastados, desviando dos pés de jambeiro esparsos em todo meio-fio. Pequenos comércios ocupavam os dois lados da via: uma vendinha de secos e molhados com uma faixa desbotada dependurada na entrada, uma lanchonete com cartazes anunciando promoção a clientela. O frescor do entardecer acalmava seus pensamentos inquietos. Não esperava nenhuma surpresa. Menos ainda depois da atitude que teve. Descida a avenida principal, um motociclista afoito desacelerou e freou a um palmo da calçada. Ela recuou um passo atrás assustada. O condutor, Beto, retirou o capacete. — Não sabe que é perigoso moças indefesas ficar por aí sozinha uma hora dessa? — Agradeço o conselho. Mas o único perigo que eu vejo está bem na minha frente. Ele desmontou da moto bancando o provocador. — Então além convencido, também acha que ofereço algum perigo, é isso? — E quem garante que não? Morena retrucou estudando a possibilidade. — Se alguém desaparece sem dar satisfação ou tem um bom motivo ou tem algo a esconder. — Não te procurei pra brigar — disse ele. — Se te procurei foi porque tinha que tirar a prova. — Que prova? — ...de como fica aquela nossa ideia. Se ainda estamos numa boa ou se seria uma fantasia minha. — Bem que eu gostaria de acreditar que estávamos numa boa. O problema é que quando te olho, só o que vejo é alguém perdido, tentando se achar. — Quem sabe seja mesmo isso que eu quero. Mesmo que não consiga perceber. — Será mesmo? Ou será que é tudo um fingimento? — Eu não me daria ao trabalho de estar aqui se fosse por qualquer bobagem. — Se é assim então não me enrola. Me diz? Quem é ela? Aquela que te prende... que dita suas regras — definiu forçando uma resposta. Beto ainda abriu a boca fazendo uma menção de falar, mas não teve forças nem palavras. — Viu como minha intuição estava certa? Melhor ir. Não vai querer deixar ela esperando. Ele recolocou o capacete, ligou a moto e partiu arrancando pela avenida. Morena seguiu pela rua estreita. Não olhou para trás. Preferia deixar que o tempo e a distância falassem por si só.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD