No horário do expediente, o cenário era o mesmo: um prédio de concreto sem graça e trabalhadores que m*l o olhavam no rosto. O cheiro de poeira e cimento ainda estava no ar, mas as horas, longas e solitárias, já começavam sem hesitação.
Logo o supervisor reapareceu. — Mauricio, vem cá.
Maurício interrompeu o que fazia e sem questionar a autoridade do chefe, caminhou até ele.
— Preciso que tire toda essa sujeira da calçada — o supervisor entregou-lhe uma pá, apontando com uma expressão fechada para a lateral do prédio.
A princípio, o trabalho parecia leve. E logo ele viu o quanto seria complicado. O esforço exigia movimentos exatos da pá. O suor começou a escorrer pela testa, e ele teve que parar por um momento para respirar.
Foi quando alguém se aproximou.
Era Elias, aquele que lhe dera o conselho no primeiro dia. Ele carregava uma grande caixa de ferramentas, os passos ligeiros, e uma fisionomia avida estampada no rosto.
— Indo bem aí? — perguntou vendo-o com a pá em mãos.
— É... eu acho — respondeu Maurício se mantendo concentrado.
— Esse serviço exige paciência. Tem que ter as manhas.
Elias se encostou a sombra do muro, puxando o maço de cigarros do bolso da camisa.
— Fuma?
Maurício recusou a oferta. Não estava acostumado a esse tipo de proximidade, essa intervenção direta. Prestando atenção em Elias, Maurício percebeu haver uma complexidade maior no trabalho que simplesmente varrer e empurrar a sujeira.
O dia puxado se arrastava com a mesma rotina. Maurício limpava, carregava, empurrava e tentava acompanhar a velocidade dos outros. Quando o intervalo chegou, Elias, que havia começado a se mostrar disposto a conversa, sentou-se ao lado dele.
— Já trabalhou em construção civil antes? — perguntou garfando o marmitex.
— Não — Maurício respondeu. — Primeiro emprego. Só fazia uns b***s de entrega lá na vila.
— O trabalho aqui é desse jeito. O segredo é não deixar se perder, senão o ritmo te engole na primeira semana.
Maurício apenas concordou. Não tinha as respostas já armada na ponta da língua igual ele.
No fim do expediente o supervisor apreensivo pediu que ajudasse um dos operários no concerto do telhado.
Sem ter outra opção, ele buscou uma escada e subiu pelos degraus rangendo sob seus pés. Quando chegou ao telhado, o vento bateu forte contra seu rosto, e ele se sentiu desorientado. O trabalhador de cima, Casé, um homem já experiente, estava esperando com um sorriso irônico no rosto.
— Esquenta não novato, se cair daqui de cima, do chão não passa — alertou jogando-lhe uma das telhas.
Maurício balançou por um momento, e sem ter escolha, segurou com as mãos suadas a telha, sentindo o peso dela e a altura ameaçadora. O homem grisalho, com gestos ágeis e práticos, ajeitava as telhas, perfilando-as uma por vez até terminar de cobrir todo o telhado.
A sensação de estar no meio do vento e do barulho da cidade abaixo, fez com que pensasse no quão pequeno ele se sentia ali. O que antes era um trabalho comum, de repente havia passado a se mostrar maior do que ele imaginava.
Quando finalmente desceu, a adrenalina ainda pulsava em suas veias. O corpo estava extenuado, os braços doloridos.
Depois de um banho rápido para tirar o cimento e a poeira do corpo, ele vestiu uma camiseta limpa e desceu para a rua de baixo.
A esquina era um ponto de partida inevitável. Mauricio encontrou um dos amigos, Iago, sentados no meio-fio. Desta vez, em vez de ficarem por ali, decidiram caminhar até a praça. A rua estava calma com pouca circulação.
Ao chegar à praça — onde o movimento era típico — adolescentes em bicicletas, casais de mãos dada, carrinhos de pipoca, circulavam livremente. Maurício e Iago sentaram-se em um dos bancos. Foi quando avistaram de relance alguém vindo apressado, fazendo os dois estreitar as vistas.
— Beto? — murmurou Iago percebendo antes.
O rosto um pouco corado de quem caminhava afoito ou tivesse nervoso. Ele tirou o capuz da blusa e parou diante deles, olhando de um para o outro.
— O que foi, Beto? O gato comeu sua língua?
Iago perguntou com ar de deboche.
Beto moveu o olhar para Maurício, depois voltou para Iago. — Sei que vão tirar uma, pensando que é onda minha, mas se liga só na parada.
— É? E que parada? — Iago cruzou os braços
— Eu vinha vindo na moral, caminhando sem pressa como sempre, e daí quando dobrei a esquina ali perto do posto, sem mentira nenhuma, um carro. Um carro só não. Uma “Maquina” de respeito. Dessas que só se vê em exposição, passou bem na minha frente — ele enfatizou cheio de entusiasmo.
— Como é? Um carrão desses? Cê deve tá achando que tem algum o****o aqui de cair nessa — rebateu Iago provocativo.
— Baixa a bola Iago. Pelo menos vamos deixar ele terminar — intercedeu Maurício.
— Por mim tá branco. A parada é que pro meu juízo, essa ideiazinha dele aí tá me cheirando a papo-furado. Será que em vez disso, não estava sonhando ou delirando, não? Então, me explica. Como um carro desses padrões teria vindo parar logo aqui, num lugar como esse?
— Não faço ideia ó mano. o que sei é que as vezes fico pensando... Será que é sorte que alguns tem? Ou será um tipo de sina muitos ter a vida ganha, enquanto nós mesmos vivemos atolados em toda essa lama?
Maurício e Iago se entreolharam. Enquanto Beto, seguiu falando daquele jeito como se estivesse perdido.
— Ninguém aqui tem sonhos... se preocupa em ter uma vida melhor... conseguir o que quiser... uma condição melhor de vida?
— Se liga ô “Genio”. Vê se acorda — caçoou Iago, desvalorizando as ambições do amigo. — Facilidade igual a essa sem precisar ralar, só mesmo nascendo em berço de ouro.
— É porque a gente pensa pequeno. Se contenta com o que dá pra sobreviver e fim de papo. O que falta é versatilidade. Pensar fora da caixinha.
— Aí sou obrigado a concordar. Falou tudo e mais um pouco. — disse Maurício. — A questão é falar é fácil. Quero ver é fazer.
Era fácil entender a frustração de Beto. A vida no bairro era sufocante, e o dinheiro sempre foi uma miragem distante que propriamente uma certeza.