A arte flui melhor quando nasce do momento, crua, quase indomável. Iago ajustou a máscara com cuidado, uma espécie de ritual antes de liberar o jato de tinta do spray na superfície lisa da parede. A primeira linha serpenteou pela parede, hesitante como um pensamento ainda recluso. Mesclando formas abstratas do grafite com traços que remetem ao cotidiano periférico.
Ele começou com uma linha sinuosa, que se desdobrava em formas complexas. O contorno de um rosto surgiu em sua mente. Não um rosto qualquer. Era o rosto de uma mulher com olhos profundos de quem encara de frente a luta pela sobrevivência. Uma mulher como muitas que ele conhecera em sua história. A vida na periferia nunca foi fácil; as oportunidades eram escassas, e a gratificação vinha de pequenos trabalhos. O importante era conseguir sobreviver com dignidade, ou ao menos experimentar a fugaz sensação de liberdade.
A figura começava a tomar forma, e ele se afastou para analisar o desenho. A passagem de pedestres permanecia constante. Uns até olhavam de relance com certa admiração, outros, seguiam alheios à complexidade oculta no processo de criação da arte que parecia querer saltar da parede.
O contratante, um homem de camisa vinho e cavanhaque, tirou os óculos de lentes escuras.
— Não sei — ele inclinou a cabeça de leve com uma expressão de crítico de arte, como se tentasse decifrar a imagem. — Tem certeza de que não tem nada faltando?
Iago limpou as mãos sujas com um pano velho.
— Pediu algo autêntico. Algo que falasse com a alma das pessoas, então, é desse jeito que a arte se comunica.
O sujeito vestiu os óculos escuros no rosto e saindo de perto, ele terminava os últimos retoques na pintura, quando uma moradora que estava de passagem, apontou curiosa para o mural.
— Você que fez? Ficou bonito. Bem bonito. Minha sorveteria anda com uma aparência meio caída. Queria dar uma valorizada.
Iago removeu a máscara e se virou para a mulher.
— E fica onde assim?
— Aqui perto. Sabe ali depois da padaria?
Ele levou a mão na altura da boca pensando na proposta.
— Se quiser posso dar uma passadinha lá amanhã — sugeriu.
A mulher agradeceu e o deixou outra vez a sós com a obra.
Não se tratava somente de tinta ou dinheiro; para ele, aquilo significava ampliar as chances de levar adiante a carreira de artista.
Logo depois de acordar, ele organizou os spray's na mochila, jogou a alça no ombro e seguiu para o local.
A mulher do dia anterior ao vê-lo a porta fez um sinal pedindo para que ele esperasse até que ela atendesse um dos fregueses.
Iago colocou a bolsa no chão perto das cadeiras na parte externa do estabelecimento.
A dona atendeu o cliente, e depois foi até ele para orientá-lo sobre o serviço que visava melhorar a fachada forrada de anúncios degradados, vítimas de meses e meses de tempestades e ventos intensos.
— Olha, a parede é essa aqui. É Iago né?
— Isso.
— Ester. Primeiro de tudo, Iago, queria que soubesse que é um talento muito raro esse que você tem. Também que gostei muito daquele seu desenho de ontem.
— Bom saber que tenha gostado dona, mas se for possível adiantar... É que a minha agenda anda um pouco cheia. E aí já viu.
Ele pegou o caderno surrado da mochila, começando a riscar um esboço.
— Então a dona teria assim uma base pro desenho?
A dona analisou a parede com toda paciência.
— Talvez... um pouco de natureza, cores vivas, pássaros, algo que inspire alegria, harmonia. Espero que com essas orientações seja capaz de criar uma imagem bem bacana.
— Quanto a isso a dona fique descansada. Em relação ao prazo, pode variar devido as condições do clima, a complexidade do desenho, mas de resto, acredito que dentro de uns 3 ou 4 dias, sem falta, estará pronto.
Iago ajeitou a mochila em um canto e abriu o zíper começando a organizar o material. E então os primeiros rabiscos, fundindo formas com a essência capturada ao redor, começaram a sair do papel.
Formas abstratas se encontravam, criando a base para algo maior. Aos poucos, figuras humanas começaram a emergir — trabalhadores, idosos e crianças.
O desenho ganhava vida, e o local se tornava o centro de algo novo, algo que renovava o que antes parecia degradado.
A rotina de um artista de rua, consiste em uma fusão de disciplina e improviso, um equilíbrio constante entre a necessidade de sobreviver e a paixão pela criação. A mochila cheia de latas de spray, máscaras e luvas, era seu kit de sobrevivência.
Chegava quando a brisa matinal ainda soprava, antes mesmo do movimento começar de verdade.
Nas primeiras horas do dia, a sombra do muro ajudava a evitar o calor que aumentava à medida que o sol subia. Ele se abaixava, subia e descia a escada, se esticava para alcançar os cantos de difícil alcance. Cada linha traçada era como as batidas de uma música que tocava somente em sua cabeça, um ritmo que só ele podia ouvir.
O despertador tocou de novo.
Iago se levantou. Mochila no ombro. spray, máscara, luvas.
Chegou cedo. As ruas ainda desertas. Mochila no chão. Zíper aberto. Lata de spray na mão.
A primeira cor: azul. Traços longos, preciso. Verde agora. Movimentos curtos. Vermelho. Mais profundidade. Pássaros, folhas, rostos. Troca de lata. Amarelo. Luz nas bordas. Mochila. Zíper. Pano na mão. Limpa. Respira. Observa. Mais uma camada. Mais detalhes. Mais cor...
A cada hora uma nova parada para limpeza das mãos, avaliar o trabalho — ajustar um traço espesso, uma cor que precisava ser intensificada, um detalhe que só fazia sentido quando visto de longe.
As pessoas passavam pela rua, algumas desacelerando para olhar, outras apenas seguindo em frente.
Quando o movimento se tornava menos intenso, ele recolhia as coisas e deixava o trabalho descansar. “A arte precisa respirar”. Dizia a si mesmo. Era nesses momentos que ele ia para casa — um quarto pequeno de favor nos fundos da casa do tio — onde passava algumas horas rabiscando ideias ou revendo fotos do mural tiradas com a câmera do celular.