Deitado na cama de madeira desgastada no quartinho dos fundos da casa, ele tirou o caderno da mochila criando a esmo alguns rabiscos que lhe vinha à cabeça. As linhas fluíam quase sem nenhum esforço. O tema é sombrio — figuras humanas curvadas sob um peso invisível, rostos sem expressão presos em muros altos. É como se estivesse tentando transformar a rejeição em algo tangível, algo que ele pudesse compreender.
— E aí, Iago? Vi sua arte na sorveteria. Ficou da hora, mano.
Elogiou Jonas, um grafiteiro local, conhecido por seus traços rápidos e mensagens curtas e impactantes.
— Valeu — disse Iago sem demonstrar entusiasmo.
Jonas, percebendo o desalento na voz dele, mudou de assunto.
— Então velho, deixa eu te falar um negócio. Tem um trampo novo no centro. Coisa grande. Se quiser é garantia certa — comentou deixando o convite em aberto.
Iago balançou a cabeça como uma promessa de que iria pensar no assunto.
O centro da cidade representava um território mais exposto, além de um novo desafio.
Enquanto a tensão em casa se acumulava, as esquinas onde os amigos do bairro se encontravam com frequência, passavam a se tornar o refúgio ideal.
O bar de costume era um lugar pouco espaçoso em meio à agitação da cidade. Com uma mesa de bilhar, ao som de um rádio sintonizado em alguma estação regional que toca um tipo de melodia popular.
Maurício estava de costas para entrada, mexendo distraído no celular com um copo ainda intocado de cerveja.
Iago pediu uma dose pura de cachaça e se sentou em uma das banquetas de madeira do balcão.
— E o Beto, cadê? Deu bolo de novo?
Perguntou sem rodeios.
Maurício levando o copo a boca tomou um gole lento.
— Disse que ia vir. Depois mandou mensagem dizendo que não ia poder porque tinha umas coisas pra resolver — contou.
— Aí tem — expressou Iago. — O pior é que conhecendo o Beto como eu conheço, coisa boa não pode ser.
— Estão falando do Beto? Aquele que, vez ou outra, aparece aqui com vocês.
Se intrometeu Jacaré com um pano de prato jogado no ombro.
Um sujeito baixo com olhos atentos e um jeito desconfiado.
Iago pegou o copo do balcão dando um gole na bebida. — E se for? — respondeu seco, não querendo alimentar a curiosidade do homem.
— Não por nada — desconversou o sujeito como se achasse graça. — Exceto que, o fato dele não ter dado as caras por esses dias, possa ser porque pode estar passando por uma fase um tanto complicada.
Era impossível esconder qualquer coisa de Jacaré. O homem passava o dia inteiro naquele bar, ouvindo conversas e quem sabe, mais do que deveria ouvir.
— Beto é jovem. E lá fora, o que não falta são facilitadores oferecendo oportunidades ao primeiro que passa pela frente. E sabe como é. Uma coisa leva a outra e... por aí vai...
Jacaré limpou o balcão com o pano, deixando-os com os miolos acesos cheios de interjeições e os nervos sobressaltados.
— Papo mais ardiloso. Não é à toa que o chamam de Jacaré — Iago balançou a cabeça matutando cabreiro a intriga. — Talvez o Beto esteja escondendo algo. Algo que não tenha coragem de dizer na nossa cara — murmurou indireto.
Sabia que, para entender o que estava acontecendo, precisaria ir além das mensagens ignoradas e das tentativas fracassadas de contato.
Entregue a intriga que haviam chegado até seus ouvidos, Iago se propôs a seguir o rastro de Beto. Ele subiu e desceu, atravessou vielas, o interior da feira onde o cheiro de fritura invadia os pulmões. Gritos rápido dos vendedores que atraem a clientela para as barracas, vendendo desde capinhas de celular à óculos de sol, relógios, além de uma variedade infinita de produtos com preços acessíveis. Beto vivia envolvido naquele movimento, mas em dissidência daquilo que era esperado, o amigo não deu nenhum sinal de que apareceria. O bairro de vista irregular repleto de casas atarracadas construídas sobre barrancos, banhadas pelo sol ainda alto no céu límpido, era um labirinto, um esconderijo perfeito.
Mais tarde ao receber um SMS de Maurício, ele se levantou do sofá e pegando a carteira na estante, saiu pela porta comprometendo-se a voltar logo.
O ar noturno era descompromissado. Os moradores da rua aproveitam o clima para socializar nas calçadas. Iago se encontrou com Maurício acompanhado das garotas, Manu e Íris.
Manu preferia uma pizzaria, entretanto Íris, com sua maneira audaciosa e animação de costume, divergiu:
— Tem uma danceteria nova lá no centro — disse Íris. — Podíamos ir lá.
— O que vocês acham? — Manu olhou para os dois.
— Sou mais um agito — apoiou Maurício repassando a decisão. — E aí Iago? O que vai ser?
— Por mim o que a maioria decidir tá decidido.
Iago determinou apenas por confirmação, sem muito interesse.
Com a eliminação do impasse, o passeio na companhia das duas garotas prometia ser agradável.
Já de cara na entrada da danceteria, o espaço apresentava as principais credenciais: área reservada com serviço vip; bar iluminado e decoração temática, adornado por elementos industriais, colunas esguias e estátuas brancas enfileiradas. As batidas musicais são envolventes. Todos se vestem com estilo — roupas justas, brilhos metálicos, cortes arrojados. Na parte superior do teto elevado, um strobo lança um jogo de luzes que piscam frenéticas sobre a pista de dança.
Em sincronia com a música, trocando as batidas frenéticas por um ritmo lento, luzes baixas, tons quentes, Manu e Maurício são parcialmente engolidos pelos flashs e a agitação, enquanto ao centro da pista, Íris se encarrega de Iago, que aos poucos cedia ao ritmo da balada.
— Porque não vai buscar umas bebidas.
Íris sussurrou com os lábios colado ao ouvido dele.
— Claro. Não se mexe.
Ele respondeu.
No entanto a descontração teve curta duração e, antes de chegar ao consenso de que tudo se desenrolaria como o pretendido, algo o fez parar atônito no meio da pista.
Parcialmente confuso em pensar ter sido Beto a quem havia visto em um dos assentos do sofá junto a parede, ele se espremeu para fora da pista, mas a tal figura se perdeu na penumbra, e então reaparecendo transitoriamente do lado de fora, abandonou o local em um hatch estiloso com vidros escuros.
O motor turbo roncou, e o veículo arrancou, deixando para trás uma nuvem branca de combustível incinerado e poeira.
— Vai fala. Por que esse olhar perdido?
Maurício se juntou a ele perto da proteção do mezanino com vista para a pista de dança.
— O Beto.
— O Beto? O que, viu ele por acaso? Ele está aqui?
— Correção: estava — corrigiu Iago enquanto ainda tentava processar o que acabara de ver. — Eu estava indo pegar umas bebidas, e aí quando me viu, ele sumiu.
— Sumiu, tipo evaporou? — exemplificou Maurício. — Tá. Agora deixa eu fazer uma perguntinha. Por que o Beto faria isso, hã? Por quê?
— Sinceramente? Eu sei lá porque. O Beto que eu conheço jamais teria uma atitude dessas para com as amizades.
— Vai ver ele se assustou ou estava com pressa.
— Ou vai ver eu estava certo — reafirmou Iago.
A noite de balada seguiu sem ser chegado a uma resolução convicta sobre o incidente. E no dia seguinte, a ressaca vinha acompanhada de algo além de uma simples dor de cabeça: deixou no ar uma pergunta. Se é que aquele era mesmo Beto: O que ele fazia lá naquela noite? E por que havia fugido a invés de esperar para desfazer o provável equívoco?