Pelos vidros embaçados da janela, descubro um universo onde a esperança é esquecida. Cada manhã, com seu manto de névoa e rostos perdidos em sonhos alheios, acorda a saudade de um tempo em que meu coração pulsava em comunhão com a alegria. No refúgio dos meus pensamentos, minha alma repousa na liberdade de vaguear sem amarras, construindo pontes invisíveis que me movem para longe do que me atormenta.
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Ao levantar-se, vestiu um jeans desbotado, uma camiseta cinza, amarrou o cabelo deixando algumas mexas displicentes ao redor do rosto e, desceu para o café. A cozinha estava tão quieta quanto ela. A casa vazia era como um refúgio onde podia ser invisível.
Mensagens das amigas chegavam constantemente, mas apenas lia e não se preocupava em respondê-las. As palavras pareciam incapazes de traduzir o que sentia internamente.
Parecia meses que as atitudes comprometedoras havia começado. Ligações suspeitas, saídas às pressas frequentes e, a falta de explicações convincentes, criaram um abismo entre ela e o namorado. Não tinha coragem de o confrontar diretamente, e por isso a dúvida corroía o pouco da confiança que restava. Ao longo do dia, sentia a ausência dele ao seu lado, também a distância, a dor que se instalou em seu peito.
Evitava interações que sugerisse encontros em grupo, inventando mil e uma desculpas com alegações de estar indisposta ou ocupada.
Preferia caminhar solitária. Passando por rostos alegres no parque. Tudo parecia desconectado, como se ela estivesse presa em outra frequência.
Renato ligava duas vezes a cada horário. Ela olhava o nome dele na tela e ignorava a chamada. Temia que a voz dele trouxesse perguntas que não podiam ser respondidas.
Ele costumava ser seu porto seguro, o motivo para seus sorrisos. Agora, ele era a fonte de todas as suas mágoas.
Toda via organizada, criava cronogramas detalhados. E ao contrário disso, a lista de tarefas pendentes se acumulavam. E só de pensar em tudo que não havia feito, sentia um desconforto nauseante. Cada vez que tentava se concentrar em algo diferente, uma onda de desânimo tomava conta, como se qualquer esforço de fugir daquilo fosse em vão. Cada vez que abria os cadernos pegando poeira em cima da mesa, lá estava o desalento, embaralhando as palavras, como se rejeitasse sua atenção.
Nicole encarou o rosto sobre a luz pálida do espelho no banheiro que refletia uma imagem irreconhecível. Olhos fundos, sem brilho, a expressão apática. Incomodada com o que via, sentiu um impulso que nem ela mesma compreendeu. Abriu a gaveta e pegou uma tesoura e, sem pensar muito, cortou uma mecha, depois boa parte do cabelo. Em seguida, usou uma tinta que havia comprado há meses por curiosidade, despejando o conteúdo de tom rosa por todo o cabelo. Quando terminou, viu um reflexo diferente. Ainda era ela, mas com algo novo, algo que destoava do vazio dos últimos meses.
Vestiu-se com um look que raramente usava: uma jaqueta de couro, calça rasgada e botas pretas. Como se quisesse moldar a própria imagem. O cabelo, as roupas e o visual não eram uma mudança de aparência, era um letreiro que dizia “MANTENHA DISTÂNCIA”.
Em uma das avenidas de movimento carregado no centro da metrópole paulistana, repleta de lojas e vitrines coloridas, avistou um casal saindo de uma boutique. Eles eram difíceis de ignorar: o homem, alto e de presença marcante, usava uma camisa de listra, calças brancas e óculos escuros. Ao lado dele, uma mulher com visual escandaloso – vestido vermelho justo e sapatos que ecoavam no piso.
Nicole parou por um instante, e sem dar muita importância continuou andando, mantendo o rosto neutro, como sempre. Porém, ao passar por eles, sentiu o olhar do homem cravar nela. Ele parou por um segundo, claramente distraído, enquanto a mulher o esperava no interior do carro de luxo estacionado a frente da loja, talvez não percebendo.
Como se o novo visual atraísse os olhares, em vez de afasta-los, como desejava, percebeu que o homem continuava a observa-la com um misto de surpresa e interesse. Os lábios entreabertos faziam mensão de dizer algo. E repensando a atitude, piscou algumas vezes antes de finalmente desviar o olhar.
Nicole, tentando se recompor, seguiu em frente. Não era a primeira vez que percebia olhares demorados em sua direção desde a mudança de visual, e com certeza não seria a última, aquilo, entretanto, não era exatamente o que esperava.
Enquanto dobrava outra esquina, se esforçando para afastar o desconforto, dizia a si mesma que havia sido só uma situação embaraçosa igual a qualquer outra. Porém, no fundo, não conseguia esquecer o jeito como aquele homem a olhava. Como parecia abalado. Como a presença dela tivera mexido com ele. Talvez tivesse fantasiado. E nada daquilo de fato tivera acontecido exceto em sua cabeça. Se convencendo disso, ela acelerou o passo.
Parou em um pequeno mercadinho para comprar um refrigerante que abriu no mesmo instante, bebendo enquanto se dirigia a uma banca de jornais logo adiante. As bancas sempre a atraiam, com suas capas coloridas e manchetes gritantes, apesar de que já fazia tempo que não se interessava de verdade por nada daquilo.
Abriu uma das revistas que costumava ler e começou a folhear distraidamente algumas páginas, sentindo o gosto doce e gaseificado da bebida. Não esperava encontrar nada que realmente chamasse sua atenção, até que seus olhos pousaram na capa de uma revista de negócios.
A imagem da mulher, destacada por um vestido de alta costura, e o homem que sorria posando ao lado dela, ilustrados pela caoa, eram os mesmo que haviam passado por ela há menos de três minutos.
O nome ainda estava fresco em sua memória: Bianca Morales, uma estilista conhecida no mundo da moda, alguém que ela costumava admirar quando os sonho de desfilar nas passarelas ainda era algo vivo dentro dela. O rosto de Bianca estampava inúmeras capas de revista, campanhas publicitárias, editoriais – era um ícone de estilo e elegância. Enquanto o homem, charmoso, que a olhava de canto de olho, ganhava destaque como um empresário conceituado no ramo imobiliário.
Nicole ficou estatizada com os olhos fixos na capa da revista em suas mãos.
— Vai levar ou ficar só olhando? — a voz ríspida, do jornaleiro lhe arrancou do transe. Um homem magro de bigode desalinhado com uma expressão impaciente.
— O quê?
Nicole piscou, voltando à realidade.
— A revista.
As pessoas ao redor não pareciam notar a cena, mas, para ela, era como se todos estivessem olhando.
— Desculpa. Tava só dando uma olhada — disse fechando a revista e a recolocando de volta no mesmo lugar do qual havia retirado.