Capítulo 5
JACARÉ NARRANDO 🐊
Não tem um segundo de paz.
Tava na laje, terminando de contar o dinheiro do corre do dia, quando o Tequinho apareceu no portão, ofegante.
Tequinho — Chefe… tem uma fita aqui que cê vai querer ver.
Nem levantei o rosto.
Jacaré — Fala logo, pörra.
Ele destravou o celular e colocou na minha frente.
E ali… o mundo girou.
Camila.
Com um playba do asfalto.
Encostado no carro, abrindo a porta pra ela. Com aquele jeitinho cavalheiro de quem nunca tomou um tapa da vida.
E ela… rindo. Leve. Solta. Como se nada tivesse peso. Como se o mundo fosse simples.
Sorvete na mão. Conversinha mole. Olhares trocados.
Fiquei parado, olhando o vídeo no celular, sentindo a raiva subir devagar, queimando igual pólvora.
Fechei a mão, com tanta força, que quase trinquei a tela.
Tequinho me olhou com receio, esperando alguma ordem.
Jacaré — Já tá de gracinha com outro…
As palavras saíram sozinhas. Baixo. Áspero.
Não porque eu achasse que ela não podia.
Ela é livre, né?
Cria do morro. Mulher feita. Não me deve nada.
Mas pörra…
Era pra ela ser minha.
Só minha.
Fechei os olhos. Tentei respirar. Mas a cena ficava se repetindo na minha cabeça, feito tortura.
Levantei da cadeira num pulo, empurrando tudo da mesa no chão. Dinheiro, rádio, papel… voou tudo.
Tequinho deu dois passos pra trás.
Tequinho — Eles estavam vindo sentido ao morro, quando estava na cola dela. — Quando ele falou isso meu rádio tocou e eu passei para o tequinho atender, tava sem cabeça.
Fiquei escutando a visão até que eu perguntei:
Jacaré — QUEM É ESSE COMÉDIA?
Tequinho — Tô vendo, chefe. Parece que é do asfalto. Veio deixar ela aqui hoje, pararam na barreira…
Jacaré — PARARAM?
Tequinho — Pararam sim. O vapor seguiu protocolo, pediu autorização…
Jacaré — E EU MANDEI LIBERAR ALGUM DESCONHECIDO PRA SUBIR O MORRO?
Tequinho — Não, chefe… o vapor negou.
Jacaré — Fez certo. Porque se tivesse deixado subir, eu quebrava ele no meio. — Falei e Tequinho desligou meu rádio me devolvendo.
Tequinho — Vou guiar chefe, qualquer coisa eu volto. — Eu apenas assenti.
Fui pra laje, acendi um cigarro, tentando esfriar a cabeça, mas a fumaça parecia sufocar ainda mais.
Até que meu celular vibrou um video...
O desgraçado teve a audácia de encostar a cara nela. Um beijo, ali, na bochecha. Como se tivesse marcado território.
Fiquei parado. O sangue sumiu do corpo e depois voltou, fervendo.
Mas nem tive tempo de assimilar meu rádio chamou...
Piloto...
Tava tendo churrasco na laje e eu tinha que comparecer mesmo sem vontade, nem atendi e apenas guiei.
Saí andando, com passos pesados, descendo sentido a laje direto bem pro miolo da quebrada. As crianças pararam de correr, os vapores se ajeitaram, todo mundo percebeu que eu tava diferente.
Cheguei na escadaria perto do ponto de vigia e puxei o rádio:
Jacaré — Tequinho, passa a visão: quem é esse moleque? Quero nome, CPF, onde mora, o que faz, quem são os pais… tudo.
Tequinho — Tá feito, chefe.
Desliguei.
Nem pensei.
Só senti.
E o pior… eu sabia que tava errado.
Que não tinha esse direito.
Que quem vacilou fui eu.
Mas também sabia…
Eu não vou perder a Camila pra ninguém.
Nem pra esse mauricinho de mërda, nem pra ninguém.
Tudo que eu conseguia pensar… era nela.
No jeito que ela tava linda hoje.
No sorriso que ela deu pra aquele ötário.
Rindo, se deixando cuidar, sendo tratada como mulher.
Como eu nunca consegui tratar.
Soltei a fumaça com força, frustrado.
O cigarro tremia na minha mão.
Fiquei aqui parado, encarando o alto do morro. Minha quebrada. Minha casa. O lugar onde Camila nasceu, cresceu, sofreu, resistiu… e agora tava levando homem pra conhecer?
Sem nem me consultar?
Sem me dar um sinal?
É isso?
Ela quer me esquecer assim?
Na base do sorvetinho e do carinho de almofadinha?
Puxei o cigarro, acendi com as mãos tremendo de raiva. Dei uma tragada funda, quase queimando o pulmão.
Olhei pro céu escurecendo…
E tudo que conseguia imaginar era ela… rindo daquele jeito que só eu fazia ela rir.
Era eu quem conhecia cada detalhe dela.
O jeito que ela franzia o nariz quando tava impaciente…
O olhar que ela lançava quando queria algo, mas não queria pedir…
Aquela mania de morder o canto do lábio quando ficava nervosa…
Aquele olhar de onça… que agora ela tava dando pra outro.
Me deu enjoo. Náusea. Um ódio que subiu com gosto de sangue.
Piloto apareceu na viela, descendo com a Bianca. Viu meu estado, falou algo para Bianca que foi embora e ele parou na minha frente.
Piloto — Que foi, Jacaré? Bianca não está se sentindo bem, ia levar ela em casa e voltar já que tu não apareceu e preciso dá atenção para os aliados.
Jacaré — Tão querendo me tirar de ötário, Piloto.
Piloto — Quem?
Jacaré — A Camila.
Ele arqueou a sobrancelha.
Piloto — A onça? Que que ela fez?
Mostrei o vídeo no celular. Ele viu calado, comendo as palavras.
Piloto — Na boa vou falar só uma vez, não faz merda nesse cäralho, vocês não tem nada e eu não quero problema com a Bianca. Então age na calma.
Jacaré — Calma é o cäralho! Eu tô aqui, sustentando essa pörra toda, cuidando de tudo, e a mulher que era pra ser minha tá saindo com mauricinho de sapatênis?
Piloto — Vocês não tem nada pörra!
Jacaré — Föda-se! Não precisa tá junto pra ser minha!
Falei alto, sem nem perceber.
Dois vapores do beco se olharam, fingindo que não ouviram.
Fiquei em silêncio, com o coração socando o peito, mais rápido que tiro em operação.
Piloto — Vai fazer o quê?
Jacaré — Primeiro vou descobrir quem é esse maluco. Depois… vou decidir se ele vai sair andando ou deitado.
Piloto — Se respingar em mim vai ser pouvas idéias, tô avisando.
Jacaré — Não vai, vou pra laje.
Piloto respirou fundo, sabendo que não adiantava argumentar.
Cheguei na laje.
A raiva não passava.
E quando achei que já tava no limite, a Mia apareceu.
Mia — Amor…
Jacaré — Já falei pra não me chamar assim!
Ela recuou, com a mão na barriga, os olhos assustados.
A barriga…
Fechei os olhos um segundo, tentando não descontar nela, mas já era tarde.
Respirei fundo, controlando o impulso de gritar com o mundo todo.
Jacaré — Que foi?
Mia — Só queria saber se quer comer…
Nem respondi.
Só balancei a cabeça, negando.
Ela foi embora, calada.
E eu… fiquei sozinho aqui.
Mais uma vez, com o mesmo pensamento martelando:
“Você ainda vai ser minha, onça.”
Mas dessa vez…
Não vou deixar escapar.
Nem que eu tenha que acabar com esse mundo.
Só que não adiantava tentar fingir que tava tranquilo.
Não tava.
Meu peito tava explodindo.
A mão coçava de vontade de dar um tiro, de mandar um recado, de mostrar pra esse filhinho de papai que aqui, no Juramento, quem manda sou eu.
Fui andando de um lado pro outro na laje, igual bicho enjaulado.
Um dos aliados até me olhou de canto, percebeu a tensão, mas não falou nada. Sabia que se falasse, eu ia morder.
Meu coração tava acelerado, igual nas guerras, mas agora não era o tráfico, não era disputa de território, não era tiro…
Era ela.
A Camila.
A minha onça braba… que agora tava se deixando domar por um almofadinha.
Soltei um riso de desprezo.
“Duvido que esse moleque saiba lidar com ela.”
Mas ao mesmo tempo…
Ele tava conseguindo fazer o que eu nunca consegui.
Tava conseguindo ser leve, ser doce, fazer ela sorrir sem medo.
Enquanto eu…
Eu só sei ser o Jacaré.
O sub do morro.
O que mete medo.
O que resolve tudo na força.
Na bala.
E nunca, nunca no carinho.
Bati com força na parede da laje, deixando a mão ralar, o sangue misturando com a raiva.
“Filha da püta… quem esse cara pensa que é?”
O rádio chiou:
Tequinho — Jacaré, pegamos a fita. O nome dele é Roger. Mora no asfalto, filho de advogada famosa. Estuda na federal. Nunca deu trampo, ficha limpa…
Fechei os olhos, respirando fundo.
Até nisso o infeliz era certinho.
Limpo.
Inofensivo.
O tipo de cara que qualquer mina ia querer apresentar pra mãe.
Mas…
Não combina com ela.
Não combina com o Juramento.
Não combina com o nosso mundo.
Puxei o rádio de novo:
Jacaré — Quero que vocês sigam ele discretamente. Sem botar pressão. Só quero saber onde ele vai, com quem anda… qualquer passo em falso, me avisa.
Tequinho — Tranquilo, chefe.
Desliguei.
Fiquei mais um tempo parado, olhando a lua subir entre os fios embolados dos barracos.
Meu peito ainda ardendo.
Minha cabeça a mil.
E um gosto amargo na boca, de quem sabe que tá perdendo…
Mas que não vai aceitar perder.
“Você é minha, Camila.”
“Mesmo que você ainda não saiba.”
Dei um último trago no cigarro, joguei a bituca longe e desci da laje, com o coração ainda pesado, mas a decisão tomada:
Esse playba não vai durar muito aqui.
E se ela quiser ele…
Vai ter que passar por cima de mim.
Ela pode espernear, gritar, bater o pé, tentar se enganar com esse idiöta do asfalto…
Mas no fundo, ela sabe.
Sabe que é minha.
E o que é meu, ninguém toca.
Nem que eu tenha que riscar o nome desse playba da cidade inteira.
Nem que eu tenha que fazer o infërno começar aqui no Juramento.
Você ainda vai ser minha, onça .
Nem que eu tenha que morrer por isso .