Capítulo 3. O Retrato na Parede

2126 Words
A luz da manhã atravessava as cortinas pesadas, transformando o quarto num tom pálido e frio. Elena acordou com a sensação de que algo a observava. O corpo ainda doía, e o cansaço pesava nas pálpebras — mas o instinto de sobrevivência a fez sentar na cama, os olhos varrendo o ambiente em busca de movimento. Nada. O espelho rachado permanecia encostado na parede, o reflexo difuso. As velas estavam consumidas até o fim, e o diário repousava fechado, mas com uma pequena mancha escura marcando a última página. Por um instante, Elena achou que o quarto cheirava a fumaça. Mas o ar logo se acalmou. Desceu as escadas devagar. O chão ainda guardava marcas da noite anterior — pegadas úmidas, quase secas, levando até o corredor principal. O relógio marcava sete e quinze. Depois de tantas horas presas em três e quarenta e dois, o tempo finalmente havia avançado. Mas a sensação era a de que nada ali realmente se movia. Na cozinha, Margaret preparava chá. Os olhos fundos, a pele pálida. Parecia não ter dormido. Quando percebeu a filha, apenas disse: — Você está viva. Elena parou na porta, sem saber se a frase era ironia, alívio ou medo. — O espelho… ele… — hesitou. — Ele se quebrou. Margaret a olhou com calma, mas os lábios tremiam. — Nada se quebra de verdade nesta casa. Elena franziu o cenho. — O que isso significa? A mãe apenas desviou o olhar. — Beba algo quente. O frio ainda está aqui. O silêncio entre as duas foi denso. O som da colher batendo na porcelana parecia alto demais. Elena sentou, mas não bebeu. O gosto metálico do ar lhe embrulhava o estômago. Margaret, sem encará-la, murmurou: — Hoje… não suba ao segundo andar. Elena a fitou. — Por quê? A mãe respirou fundo. — Porque ela está lá. Antes que pudesse perguntar quem, um barulho veio do andar de cima — um leve arranhar, seguido de um estalo de madeira. Margaret fechou os olhos, tensa. Elena se levantou imediatamente. — Eu preciso ver. — Elena, não! — A voz da mãe soou mais como um aviso do que uma proibição. Mas a filha já subia as escadas. O corredor estava banhado por uma luz mortiça. As janelas deixavam entrar um brilho branco, doentio, que tornava os retratos ainda mais vivos. Elena andou devagar, sentindo o olhar dos antepassados sobre ela. Todos os quadros pareciam ligeiramente diferentes. Rostos mais sombrios, expressões alteradas, sombras onde antes havia cor. Até que parou diante do retrato de Sarah Willon. O mesmo que pendia entre os quartos, emoldurado em madeira escura. O olhar de Sarah, outrora sereno, agora parecia seguir cada movimento de Elena. E havia algo novo: No canto da pintura, quase imperceptível, uma sombra n***a, como um manto, se insinuava por trás da figura retratada. Elena deu um passo mais perto. A tinta parecia fresca. Passou o dedo com cuidado — e o toque manchou. A pintura estava úmida. O ar ficou mais frio. O relógio da parede, que antes marcava sete e quinze, começou a girar ao contrário. O ponteiro se movia rápido, em círculos, até parar novamente em três e quarenta e dois. Um arrepio percorreu o corpo dela. O som de algo se movendo atrás veio logo em seguida — um farfalhar lento, como tecido arrastando no chão. Elena se virou. Nada. Mas o retrato agora parecia diferente. O rosto de Sarah não estava mais sereno. O sorriso havia mudado. Lábios entreabertos. Olhos fixos nela. E a sombra atrás — antes apenas um borrão — agora tinha forma. Um rosto indistinto, pálido, aproximando-se da figura principal da pintura. — Não… — Elena murmurou. O ar tremeu. Um som seco — como um suspiro saindo de dentro da parede. O quadro vibrou levemente. Elena recuou dois passos. A tinta parecia se mover. As cores se dissolviam como se o retrato respirasse. De dentro da moldura, o som de batidas. Três. Depois silêncio. E então, a voz. Baixa. Suave. Mas inconfundível. — Elena… A voz de Sarah. Elena congelou. Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Tia? — A voz saiu trêmula. — É você? Do retrato, os olhos pintados piscaram. A boca se abriu, e da f***a escura que era a pintura escorreu um fio de tinta n***a, grossa, descendo até o rodapé da parede. A mancha se expandiu no chão, tomando a forma de mãos. Mãos pintadas, líquidas, que começaram a se erguer. Elena recuou até bater nas tábuas frias da parede oposta. O quadro pulsava. O rosto de Sarah deformava-se, o sorriso tornando-se largo demais, antinatural. E atrás dela, a sombra ganhou olhos. Olhos brancos. A mulher de preto. Elena gritou, mas o som morreu no ar. Nenhum eco, nenhum ruído. Somente o bater lento do relógio, marcando novamente três e quarenta e dois. De dentro do quadro, a voz voltou. Agora era um sussurro múltiplo — como várias vozes falando ao mesmo tempo, cada uma vinda de um ponto diferente da casa: - O retrato guarda o que foi. - O retrato guarda o que virá. - O retrato guarda o que você viu. O vidro da moldura se trincou, e o estalo se espalhou como um tiro. O ar ficou pesado. O chão vibrou. E, então, algo atravessou a superfície da pintura. Uma mão. A mesma que Elena sentira em seu ombro na noite anterior. Saiu devagar, escorrendo tinta. A palma aberta, virada para ela. Elena caiu de joelhos, o coração descompassado. Queria correr, mas o corpo não respondia. A voz sussurrou uma última frase, grave, arrastada, vinda da pintura viva: - Você abriu a cela, Elena. - Agora, a casa é o espelho. O som cessou. O quadro ficou imóvel. A tinta parou de escorrer. Mas o olhar de Sarah permanecia vivo. Elena se levantou com dificuldade. O corredor estava mudo, mas a casa parecia pulsar sob o chão. O vento soprou pelas frestas e fez os retratos se moverem levemente. Todos os rostos agora pareciam observá-la. Todos. Quando virou para descer as escadas, percebeu uma coisa que a fez parar. A pintura de Sarah, atrás dela, já não mostrava mais a sombra da mulher de preto. Agora, mostrava duas figuras. Sarah — e Elena, pintada ao seu lado. De olhos abertos. E brancos. O coração de Elena gelou. O som do relógio voltou a ecoar pela casa, lento e preciso. Três e quarenta e três. O minuto seguinte. O minuto em que o retrato ganhou vida. Elena não conseguia desviar o olhar. A figura dela no quadro era perfeita. O mesmo cabelo, o mesmo colar, até o ferimento recente no pulso estava pintado — com uma precisão impossível. O retrato pulsava levemente, como se respirasse. O pigmento das cores tremia, misturando-se em tons escuros e profundos. E o olhar da versão pintada parecia seguir cada movimento seu. Um arrepio percorreu sua espinha. O som de algo arranhando a madeira veio de dentro da parede. Baixo, constante. Como unhas tentando sair. Elena deu um passo para trás. A madeira cedeu um pouco sob o peso dela, e um estalo ecoou no corredor silencioso. A pintura se moveu. A moldura girou milímetros, e um som de respiração escapou de trás da parede. Elena encostou a mão no quadro. O vidro estava morno. Por trás dele, parecia haver espaço — um vazio profundo, invisível, mas vivo. Então, a voz veio. Sutil. Sussurrada entre duas batidas do relógio. — Elena… Ela recuou, o coração disparado. Mas o som insistiu. Mais alto. Mais próximo. — Elena… — Elena… você me ouve? Era a voz de Sarah. Não havia dúvida. A mesma cadência, o mesmo tom calmo que ela lembrava da infância. As lágrimas surgiram nos olhos. — Tia? — chamou, a voz tremendo. — Onde você está? O retrato respondeu. Os lábios pintados se moveram lentamente, e as palavras pareceram sair do próprio ar: — Aqui. Atrás do tempo. O relógio parou. A casa ficou muda. O ar pareceu estagnar. O som da chuva cessou. Nada mais existia além do quadro e da voz. Sarah continuou: — Eu tentei fechá-la, Elena. Mas o espelho se abriu novamente. A sombra que vês não é apenas dela… É de todos nós. Elena se aproximou, sem perceber que chorava. — O que ela quer? A resposta veio com atraso, como se atravessasse um abismo. — O reflexo… quer corpo. Quer olhar através de olhos vivos. Elena encostou a testa no vidro. A superfície estava fria outra vez. Do outro lado, a imagem dela, pintada, piscou. Por um instante, a versão pintada sorriu — e o sorriso não era o seu. O som das batidas voltou. Agora, vinham de dentro da parede. Três pancadas. Pausa. Três de novo. Um ritmo. Como uma chamada. Ela recuou, o corpo trêmulo. O quadro balançou. As molduras dos retratos vizinhos vibraram. E o corredor inteiro pareceu respirar, emitindo um som grave, baixo, como o de uma casa viva. De repente, todas as velas se acenderam sozinhas. A chama projetou sombras nas paredes — e as sombras se moveram. Passos ecoaram pelo piso superior. Lentos. Pesados. Como se alguém atravessasse o teto acima. Elena olhou para cima. As tábuas do forro rangiam. Poeira caiu sobre ela. O som vinha em direção à escada. Assustada, ela correu para o quarto, fechando a porta. Encostou as costas nela, tentando se acalmar. Mas o espelho rachado a esperava no canto. E o reflexo… O reflexo mostrava algo atrás dela. Ela se virou lentamente. A porta ainda estava fechada. Nada ali. Mas o som de passos parou do outro lado. E, então, uma batida seca. Depois outra. Depois mais uma. Ela segurou o diário de Sarah com força. O papel parecia quente. Quando o abriu, as páginas estavam em branco — exceto por uma frase recém-formada, escrita em tinta escura: “Não olhe para o retrato à meia-noite.” Ela levantou o olhar. O relógio marcava exatamente 11:59. O coração acelerou. O segundo ponteiro se moveu devagar, lento, arrastado. Quando alcançou o topo, o som de todas as badaladas ecoou pela casa — doze toques graves que pareciam vir de dentro das paredes. A luz apagou. O vento soprou. E no corredor, o retrato de Sarah começou a mudar novamente. As tintas se dissolveram, criando movimento. O rosto de Elena, o pintado, virou-se lentamente para fora da moldura. Os olhos brancos brilharam na escuridão. E a voz da mulher de preto, agora misturada à de Sarah, sussurrou do quadro: — O tempo recomeça, Elena. — E ele sempre termina em três e quarenta e dois. O relógio parou. A chama das velas se apagou. E o corredor inteiro ficou mergulhado em um silêncio antigo, o mesmo da cela. No escuro, o som de algo arranhando a parede voltou, mais alto desta vez. Não era tinta. Não era vento. Era unha. E vinha de dentro do retrato. Elena recuou, o corpo colado à parede. O som cessou abruptamente. Por um instante, silêncio. E então — três batidas suaves do outro lado da madeira. Toc. Toc. Toc. Elena fechou os olhos. Mas mesmo assim, viu. Não com os olhos. Com a mente. Sarah, presa atrás da pintura, com o rosto deformado, batendo para sair. E atrás dela — a mulher de preto. Sorrindo. Quando Elena abriu os olhos novamente, o corredor estava vazio. A pintura intacta. O relógio mudo. Mas no chão, uma única frase escrita com tinta escura secava lentamente: “Ela está quase livre.” O som cessou. A tinta, ainda brilhante há segundos, agora secava como se nunca tivesse se movido. O corredor mergulhou num silêncio denso, que parecia se estender além das paredes. Elena ficou parada, o olhar fixo na frase escrita no chão. As letras se desmanchavam devagar, absorvidas pela madeira antiga. Nenhum som, nenhum movimento. Apenas o tique quase imperceptível do relógio lá embaixo, lento, arrastado, tentando voltar à vida. Por um instante, a casa pareceu dormir. O ar esfriou. O vento cessou. E tudo o que restou foi a sensação de algo se movendo lá dentro — não em cima, nem embaixo, mas entre as paredes. Ela recuou até o quarto, o corpo trêmulo. Deitou-se com os olhos abertos, ouvindo a respiração da casa, o estalar da madeira, o leve roçar que vinha do outro lado da parede. O som era quase humano. Um suspiro. Um murmúrio. Virou-se de lado, tentando ignorar. Mas antes que o sono viesse, ouviu. Claro. Nítido. Próximo. Uma voz. Baixa. Feminina. — Elena… Ela prendeu a respiração. A voz repetiu, agora mais próxima. — Elena… você me ouve? O coração acelerou. Não era sonho. Não era lembrança. Vinha de dentro da parede. O relógio voltou a marcar três e quarenta e dois. E a casa, enfim, acordou.
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