A luz da manhã atravessava as cortinas pesadas, transformando o quarto num tom pálido e frio.
Elena acordou com a sensação de que algo a observava.
O corpo ainda doía, e o cansaço pesava nas pálpebras — mas o instinto de sobrevivência a fez sentar na cama, os olhos varrendo o ambiente em busca de movimento.
Nada.
O espelho rachado permanecia encostado na parede, o reflexo difuso.
As velas estavam consumidas até o fim, e o diário repousava fechado, mas com uma pequena mancha escura marcando a última página.
Por um instante, Elena achou que o quarto cheirava a fumaça.
Mas o ar logo se acalmou.
Desceu as escadas devagar.
O chão ainda guardava marcas da noite anterior — pegadas úmidas, quase secas, levando até o corredor principal.
O relógio marcava sete e quinze.
Depois de tantas horas presas em três e quarenta e dois, o tempo finalmente havia avançado.
Mas a sensação era a de que nada ali realmente se movia.
Na cozinha, Margaret preparava chá.
Os olhos fundos, a pele pálida.
Parecia não ter dormido.
Quando percebeu a filha, apenas disse:
— Você está viva.
Elena parou na porta, sem saber se a frase era ironia, alívio ou medo.
— O espelho… ele… — hesitou. — Ele se quebrou.
Margaret a olhou com calma, mas os lábios tremiam.
— Nada se quebra de verdade nesta casa.
Elena franziu o cenho.
— O que isso significa?
A mãe apenas desviou o olhar.
— Beba algo quente. O frio ainda está aqui.
O silêncio entre as duas foi denso.
O som da colher batendo na porcelana parecia alto demais.
Elena sentou, mas não bebeu.
O gosto metálico do ar lhe embrulhava o estômago.
Margaret, sem encará-la, murmurou:
— Hoje… não suba ao segundo andar.
Elena a fitou.
— Por quê?
A mãe respirou fundo.
— Porque ela está lá.
Antes que pudesse perguntar quem, um barulho veio do andar de cima — um leve arranhar, seguido de um estalo de madeira.
Margaret fechou os olhos, tensa.
Elena se levantou imediatamente.
— Eu preciso ver.
— Elena, não! — A voz da mãe soou mais como um aviso do que uma proibição.
Mas a filha já subia as escadas.
O corredor estava banhado por uma luz mortiça.
As janelas deixavam entrar um brilho branco, doentio, que tornava os retratos ainda mais vivos.
Elena andou devagar, sentindo o olhar dos antepassados sobre ela.
Todos os quadros pareciam ligeiramente diferentes.
Rostos mais sombrios, expressões alteradas, sombras onde antes havia cor.
Até que parou diante do retrato de Sarah Willon.
O mesmo que pendia entre os quartos, emoldurado em madeira escura.
O olhar de Sarah, outrora sereno, agora parecia seguir cada movimento de Elena.
E havia algo novo:
No canto da pintura, quase imperceptível, uma sombra n***a, como um manto, se insinuava por trás da figura retratada.
Elena deu um passo mais perto.
A tinta parecia fresca.
Passou o dedo com cuidado — e o toque manchou.
A pintura estava úmida.
O ar ficou mais frio.
O relógio da parede, que antes marcava sete e quinze, começou a girar ao contrário.
O ponteiro se movia rápido, em círculos, até parar novamente em três e quarenta e dois.
Um arrepio percorreu o corpo dela.
O som de algo se movendo atrás veio logo em seguida — um farfalhar lento, como tecido arrastando no chão.
Elena se virou.
Nada.
Mas o retrato agora parecia diferente.
O rosto de Sarah não estava mais sereno.
O sorriso havia mudado.
Lábios entreabertos.
Olhos fixos nela.
E a sombra atrás — antes apenas um borrão — agora tinha forma.
Um rosto indistinto, pálido, aproximando-se da figura principal da pintura.
— Não… — Elena murmurou.
O ar tremeu.
Um som seco — como um suspiro saindo de dentro da parede.
O quadro vibrou levemente.
Elena recuou dois passos.
A tinta parecia se mover.
As cores se dissolviam como se o retrato respirasse.
De dentro da moldura, o som de batidas.
Três.
Depois silêncio.
E então, a voz.
Baixa.
Suave.
Mas inconfundível.
— Elena…
A voz de Sarah.
Elena congelou.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Tia? — A voz saiu trêmula. — É você?
Do retrato, os olhos pintados piscaram.
A boca se abriu, e da f***a escura que era a pintura escorreu um fio de tinta n***a, grossa, descendo até o rodapé da parede.
A mancha se expandiu no chão, tomando a forma de mãos.
Mãos pintadas, líquidas, que começaram a se erguer.
Elena recuou até bater nas tábuas frias da parede oposta.
O quadro pulsava.
O rosto de Sarah deformava-se, o sorriso tornando-se largo demais, antinatural.
E atrás dela, a sombra ganhou olhos.
Olhos brancos.
A mulher de preto.
Elena gritou, mas o som morreu no ar.
Nenhum eco, nenhum ruído.
Somente o bater lento do relógio, marcando novamente três e quarenta e dois.
De dentro do quadro, a voz voltou.
Agora era um sussurro múltiplo — como várias vozes falando ao mesmo tempo, cada uma vinda de um ponto diferente da casa:
- O retrato guarda o que foi.
- O retrato guarda o que virá.
- O retrato guarda o que você viu.
O vidro da moldura se trincou, e o estalo se espalhou como um tiro.
O ar ficou pesado.
O chão vibrou.
E, então, algo atravessou a superfície da pintura.
Uma mão.
A mesma que Elena sentira em seu ombro na noite anterior.
Saiu devagar, escorrendo tinta.
A palma aberta, virada para ela.
Elena caiu de joelhos, o coração descompassado.
Queria correr, mas o corpo não respondia.
A voz sussurrou uma última frase, grave, arrastada, vinda da pintura viva:
- Você abriu a cela, Elena.
- Agora, a casa é o espelho.
O som cessou.
O quadro ficou imóvel.
A tinta parou de escorrer.
Mas o olhar de Sarah permanecia vivo.
Elena se levantou com dificuldade.
O corredor estava mudo, mas a casa parecia pulsar sob o chão.
O vento soprou pelas frestas e fez os retratos se moverem levemente.
Todos os rostos agora pareciam observá-la.
Todos.
Quando virou para descer as escadas, percebeu uma coisa que a fez parar.
A pintura de Sarah, atrás dela, já não mostrava mais a sombra da mulher de preto.
Agora, mostrava duas figuras.
Sarah — e Elena, pintada ao seu lado.
De olhos abertos.
E brancos.
O coração de Elena gelou.
O som do relógio voltou a ecoar pela casa, lento e preciso.
Três e quarenta e três.
O minuto seguinte.
O minuto em que o retrato ganhou vida.
Elena não conseguia desviar o olhar.
A figura dela no quadro era perfeita.
O mesmo cabelo, o mesmo colar, até o ferimento recente no pulso estava pintado — com uma precisão impossível.
O retrato pulsava levemente, como se respirasse.
O pigmento das cores tremia, misturando-se em tons escuros e profundos.
E o olhar da versão pintada parecia seguir cada movimento seu.
Um arrepio percorreu sua espinha.
O som de algo arranhando a madeira veio de dentro da parede.
Baixo, constante.
Como unhas tentando sair.
Elena deu um passo para trás.
A madeira cedeu um pouco sob o peso dela, e um estalo ecoou no corredor silencioso.
A pintura se moveu.
A moldura girou milímetros, e um som de respiração escapou de trás da parede.
Elena encostou a mão no quadro.
O vidro estava morno.
Por trás dele, parecia haver espaço — um vazio profundo, invisível, mas vivo.
Então, a voz veio.
Sutil.
Sussurrada entre duas batidas do relógio.
— Elena…
Ela recuou, o coração disparado.
Mas o som insistiu.
Mais alto.
Mais próximo.
— Elena…
— Elena… você me ouve?
Era a voz de Sarah.
Não havia dúvida.
A mesma cadência, o mesmo tom calmo que ela lembrava da infância.
As lágrimas surgiram nos olhos.
— Tia? — chamou, a voz tremendo. — Onde você está?
O retrato respondeu.
Os lábios pintados se moveram lentamente, e as palavras pareceram sair do próprio ar:
— Aqui. Atrás do tempo.
O relógio parou.
A casa ficou muda.
O ar pareceu estagnar.
O som da chuva cessou.
Nada mais existia além do quadro e da voz.
Sarah continuou:
— Eu tentei fechá-la, Elena. Mas o espelho se abriu novamente.
A sombra que vês não é apenas dela…
É de todos nós.
Elena se aproximou, sem perceber que chorava.
— O que ela quer?
A resposta veio com atraso, como se atravessasse um abismo.
— O reflexo… quer corpo. Quer olhar através de olhos vivos.
Elena encostou a testa no vidro.
A superfície estava fria outra vez.
Do outro lado, a imagem dela, pintada, piscou.
Por um instante, a versão pintada sorriu — e o sorriso não era o seu.
O som das batidas voltou.
Agora, vinham de dentro da parede.
Três pancadas.
Pausa.
Três de novo.
Um ritmo.
Como uma chamada.
Ela recuou, o corpo trêmulo.
O quadro balançou.
As molduras dos retratos vizinhos vibraram.
E o corredor inteiro pareceu respirar, emitindo um som grave, baixo, como o de uma casa viva.
De repente, todas as velas se acenderam sozinhas.
A chama projetou sombras nas paredes — e as sombras se moveram.
Passos ecoaram pelo piso superior.
Lentos.
Pesados.
Como se alguém atravessasse o teto acima.
Elena olhou para cima.
As tábuas do forro rangiam.
Poeira caiu sobre ela.
O som vinha em direção à escada.
Assustada, ela correu para o quarto, fechando a porta.
Encostou as costas nela, tentando se acalmar.
Mas o espelho rachado a esperava no canto.
E o reflexo…
O reflexo mostrava algo atrás dela.
Ela se virou lentamente.
A porta ainda estava fechada.
Nada ali.
Mas o som de passos parou do outro lado.
E, então, uma batida seca.
Depois outra.
Depois mais uma.
Ela segurou o diário de Sarah com força.
O papel parecia quente.
Quando o abriu, as páginas estavam em branco — exceto por uma frase recém-formada, escrita em tinta escura:
“Não olhe para o retrato à meia-noite.”
Ela levantou o olhar.
O relógio marcava exatamente 11:59.
O coração acelerou.
O segundo ponteiro se moveu devagar, lento, arrastado.
Quando alcançou o topo, o som de todas as badaladas ecoou pela casa — doze toques graves que pareciam vir de dentro das paredes.
A luz apagou.
O vento soprou.
E no corredor, o retrato de Sarah começou a mudar novamente.
As tintas se dissolveram, criando movimento.
O rosto de Elena, o pintado, virou-se lentamente para fora da moldura.
Os olhos brancos brilharam na escuridão.
E a voz da mulher de preto, agora misturada à de Sarah, sussurrou do quadro:
— O tempo recomeça, Elena.
— E ele sempre termina em três e quarenta e dois.
O relógio parou.
A chama das velas se apagou.
E o corredor inteiro ficou mergulhado em um silêncio antigo, o mesmo da cela.
No escuro, o som de algo arranhando a parede voltou, mais alto desta vez.
Não era tinta.
Não era vento.
Era unha.
E vinha de dentro do retrato.
Elena recuou, o corpo colado à parede.
O som cessou abruptamente.
Por um instante, silêncio.
E então — três batidas suaves do outro lado da madeira.
Toc.
Toc.
Toc.
Elena fechou os olhos.
Mas mesmo assim, viu.
Não com os olhos.
Com a mente.
Sarah, presa atrás da pintura, com o rosto deformado, batendo para sair.
E atrás dela — a mulher de preto.
Sorrindo.
Quando Elena abriu os olhos novamente, o corredor estava vazio.
A pintura intacta.
O relógio mudo.
Mas no chão, uma única frase escrita com tinta escura secava lentamente:
“Ela está quase livre.”
O som cessou.
A tinta, ainda brilhante há segundos, agora secava como se nunca tivesse se movido.
O corredor mergulhou num silêncio denso, que parecia se estender além das paredes.
Elena ficou parada, o olhar fixo na frase escrita no chão.
As letras se desmanchavam devagar, absorvidas pela madeira antiga.
Nenhum som, nenhum movimento.
Apenas o tique quase imperceptível do relógio lá embaixo, lento, arrastado, tentando voltar à vida.
Por um instante, a casa pareceu dormir.
O ar esfriou.
O vento cessou.
E tudo o que restou foi a sensação de algo se movendo lá dentro — não em cima, nem embaixo, mas entre as paredes.
Ela recuou até o quarto, o corpo trêmulo.
Deitou-se com os olhos abertos, ouvindo a respiração da casa, o estalar da madeira, o leve roçar que vinha do outro lado da parede.
O som era quase humano.
Um suspiro.
Um murmúrio.
Virou-se de lado, tentando ignorar.
Mas antes que o sono viesse, ouviu.
Claro.
Nítido.
Próximo.
Uma voz.
Baixa.
Feminina.
— Elena…
Ela prendeu a respiração.
A voz repetiu, agora mais próxima.
— Elena… você me ouve?
O coração acelerou.
Não era sonho.
Não era lembrança.
Vinha de dentro da parede.
O relógio voltou a marcar três e quarenta e dois.
E a casa, enfim, acordou.