Capítulo 4. Vozes Entre as Paredes

1928 Words
Elena ficou imóvel. A voz parecia vir de dentro da madeira. Baixa, arrastada, como se alguém falasse com a boca colada ao outro lado da parede. — Elena… Ela se ergueu na cama, o coração martelando. O som repetiu, agora mais claro. — Elena… me escuta. A respiração dela se acelerou. Encostou o ouvido na parede. O frio atravessou sua pele. Do outro lado, ouviu algo mais — uma segunda voz, sussurrando palavras rápidas, inaudíveis, como se discutissem entre si. Depois, silêncio. Elena recuou, o peito arfando. O quarto estava mergulhado em penumbra, e a vela sobre o criado-mudo oscilava com o vento. Mas o vento não vinha de lugar nenhum. A janela estava fechada. O som voltou, mais grave. Desta vez, parecia vir de vários pontos da casa ao mesmo tempo — das paredes, do teto, do chão. Vozes sobrepostas, murmurando o nome dela em ritmos diferentes. — Elena… Elena… Elena… Tapou os ouvidos. Mas as vozes vinham de dentro, vibrando no corpo. O chão tremeu levemente. O espelho rachado refletiu luzes que não existiam. De repente, o som cessou. E um único sussurro soou próximo ao ouvido dela, tão nítido que o ar se moveu contra sua pele. — Desce. Elena se virou num salto. Nada. Mas o ar estava mais frio. Muito mais. O relógio marcava três e quarenta e três, novamente. O mesmo minuto que encerrava todas as coisas estranhas. Ela acendeu outra vela e saiu do quarto. O corredor parecia diferente — mais estreito, mais longo e escuro. Os retratos, antes imóveis, agora pareciam acompanhar seus passos com os olhos. O chão rangia sob o peso dela, e o som ecoava como se o interior da casa fosse oco. As vozes começaram de novo. Mais baixas. Mais nítidas. Sussurros que formavam frases fragmentadas. — …não devia ter aberto… — …ela está perto… — …o sangue acorda o que dorme a anos… Elena desceu as escadas. Cada degrau fazia o ar vibrar, como se a madeira respirasse. Na sala, o fogo da lareira estava aceso — mas ninguém o acendera. As chamas dançavam sem som. Ela então, caminhou até o meio do cômodo. O vento passou pelas cortinas e trouxe um cheiro de terra molhada e ferrugem. Ela reconheceu o aroma. O mesmo da cela. — Sarah? — chamou, a voz trêmula. — É você? Silêncio. Depois, um estalo seco, vindo do assoalho. A voz respondeu, distante e rouca: — Não estou sozinha. Elena deu um passo atrás. O som veio do porão. Lento. Regular. Como alguém subindo os degraus de dentro para fora. A vela tremia em sua mão. — Mãe? — chamou, quase sem voz. Nada. Apenas o som do ferro batendo em madeira. A tranca da porta do porão vibrou. Devagar. Como se uma mão invisível a tocasse. Elena recuou. O ar ficou mais denso. A chama da vela diminuiu até quase sumir. E então, a voz — agora mais próxima, feminina, suave, triste. — Elena… Ela reconheceu. A voz de Sarah. — Tia? — Está frio aqui embaixo. — A voz parecia vir de muito fundo. — Desce, por favor. Elena se aproximou da porta, o coração disparado. A madeira exalava cheiro de mofo e ferro. Encostou a mão na tranca. O metal estava gelado. — Onde você está? — perguntou. Silêncio. Depois, a voz respondeu, distante: — Atrás da parede. A vela apagou. O breu foi total. Mas mesmo no escuro, Elena sentia o peso da presença. Respiração. Movimento. Vozes sussurrando o nome dela, uma por uma, até se fundirem em um único som grave. Do fundo do porão, algo arranhou o chão. Depois, um som metálico — como correntes se movendo. E, então, um leve murmúrio, quase como uma canção. — O tempo acabou… o tempo acabou… Elena recuou um passo. Outro. Mas o som a seguiu, subindo as paredes. O murmúrio transformou-se em gemido. O gemido virou grito. As vozes gritaram juntas — um coro desesperado ecoando por toda a casa. As janelas estremeceram. As luzes piscaram. E do teto caiu uma chuva fina de poeira e tinta. No meio do caos, uma única voz se destacou. Baixa. Deliberada. Fria. — Você abriu o espelho, Elena. — Agora ele está dentro das paredes. O grito cessou. Silêncio absoluto. A vela reacendeu sozinha, uma chama fraca. A tranca do porão, que antes vibrava, estava aberta. Escancarada. Da escuridão lá de baixo vinha um som contínuo. Gotejar. Tic. Tic. Tic. Elena segurou a vela firme. Sabia que, qualquer que fosse a resposta, estava no fundo daquela escada. E sabia também que, ao descer, talvez nunca mais voltasse igual. Deu o primeiro passo. O ar cheirava a ferro e terra molhada. As paredes exalavam frio. Cada degrau parecia mais longo que o anterior. As vozes cessaram. Mas um som novo começou. Baixo. Humano. Respiração. Quando chegou ao fim, o piso do porão estava coberto de água rasa. No centro, algo brilhava. Uma moldura. Pequena. Espelhada. Elena se ajoelhou. O reflexo não mostrava o porão. Mostrava o quarto dela. A cama vazia. E no reflexo da cama, ela mesma — deitada, dormindo. Um frio percorreu-lhe a nuca. As vozes voltaram, em coro baixo e uníssono: — O espelho abriu o caminho. — Agora, a casa lembra. — A casa respira. — A casa vê. A vela apagou. O som das gotas se transformou em sussurros. E, na escuridão, uma última voz soou perto do ouvido dela: — Volta, Elena. — Antes que as paredes te aprendam também. A chama reacendeu por si só. O espelho havia desaparecido. Mas nas paredes úmidas, impressas pela água, havia marcas de mãos. Pequenas. Grandes. Antigas. E todas voltadas para fora. Elena subiu correndo, o coração disparado. Ao fechar a porta do porão, ouviu, pela última vez, o som das unhas arranhando a madeira. E uma voz, calma, suave, quase maternal: — Agora você me escuta. O relógio da sala marcou três e quarenta e dois. E a casa, viva novamente, respondeu com um suspiro. A respiração da casa se misturava à dela. O som não era vento, nem madeira. Era algo vivo, profundo, que se movia sob o piso, dentro das paredes, entre os cômodos. Elena encostou a testa na madeira fria da porta do porão. O toque devolveu um calor estranho — como se o outro lado ainda estivesse pulsando. Ela se afastou devagar. A vela tremia em sua mão. A chama alongava sombras que se distorciam e desapareciam no corredor. Nenhum som humano. Mas, por instinto, Elena sabia que não estava sozinha. Subiu os degraus em silêncio. Cada passo ecoava num vazio maior do que o espaço ao redor. A casa parecia expandir-se e encolher com a respiração dela. No alto da escada, a sala parecia diferente. Os móveis haviam mudado de lugar. A poltrona da mãe estava virada para a parede. O relógio da lareira, parado, mostrava 3:42. Sempre o mesmo número. Elena passou os dedos pelo tampo da mesa. Havia marcas de poeira — e entre elas, impressões finas, como dedos infantis. O ar cheirava a vela queimada e ferro. De repente, o som. Um leve arranhar vindo de dentro da parede. Virou o rosto lentamente. O som repetiu, mais forte. Arranhar. Depois, três batidas secas. Toc. Toc. Toc. O mesmo ritmo da noite anterior. — Sarah? — sussurrou. Nenhuma resposta. Somente o eco fraco de algo se movendo dentro das tábuas. A chama da vela se inclinou sozinha, apontando para o corredor dos retratos. Elena sentiu o corpo inteiro gelar. Ali, o quadro de Sarah continuava no mesmo lugar. Mas agora estava coberto. Um lençol branco pendia sobre ele, como se alguém — ou alguma coisa — tivesse tentado esconder a pintura. Elena se aproximou. O pano tremia levemente, mesmo sem vento. O som das batidas voltou, vindas de trás da parede. Ela encostou a mão. A madeira estava quente. E havia algo por trás. Movimento. — Fala comigo — pediu, quase num sussurro. — Eu sei que é você. A parede vibrou, devolvendo um som fraco. Um murmúrio arrastado, incompreensível. Depois, mais claro: — A casa lembra… Elena recuou um passo. A voz continuou, agora mais próxima. — A casa lembra, Elena. — O sangue é a chave. O lençol caiu sozinho. O retrato estava diferente. A imagem de Sarah havia desaparecido. No lugar, o fundo escuro da tela mostrava apenas uma parede rachada — a mesma onde Elena estava. E na rachadura, algo se movia. Como um olho tentando abrir-se. Elena recuou, o coração descompassado. O som dentro das paredes aumentou. Sussurros em coro, palavras sem idioma, algumas familiares, outras impossíveis. Ela tapou os ouvidos, mas as vozes estavam dentro. De repente, um estampido. A madeira atrás dela cedeu, abrindo uma f***a estreita, de onde soprou um vento gelado. O lençol foi puxado para dentro, engolido pela escuridão. Elena se aproximou da rachadura. O interior era escuro, mas fundo — como um corredor escondido dentro das paredes. Do buraco, vinha o som das vozes, mais claras, mais próximas. — …não devia ter aberto… — …ela ainda vê… — …três e quarenta e dois… O frio a fez estremecer. Mas o medo maior era da curiosidade. Ela precisava ver. Precisava saber o que havia ali dentro. Abaixou-se, segurando a vela com firmeza. O fogo tremia, quase se apagando. O vento vinha de dentro da f***a, não de fora. Um ar velho, úmido, com cheiro de poeira antiga e metal oxidado. Elena encostou o rosto perto da a******a. — Sarah… está aí? Por um segundo, nada respondeu. Depois, um som suave, humano, tão próximo que parecia vir de dentro dela: — Sim. Elena soltou a vela. O fogo caiu no chão e apagou-se. No escuro total, as vozes sussurraram juntas: — A casa tem memória. — E agora, você também. O ar mudou. A f***a se expandiu lentamente, abrindo um vão estreito, largo o bastante para passar um corpo. De lá, uma corrente fria percorreu o corredor. E junto, um som. Respiração. Não humana. Lenta, úmida, irregular. Elena recuou até encostar na parede oposta. Mas a curiosidade venceu o medo. Abaixou-se de novo. O interior da passagem se estendia em trevas. E ao fundo, um brilho fraco. Dourado. Pulsante. De dentro, a voz chamou uma última vez: — Elena… o espelho ainda está aberto. O som de correntes ecoou sob o assoalho. O chão tremeu levemente. As velas da sala se apagaram todas ao mesmo tempo. E a casa, antes silenciosa, começou a murmurar. Palavras que vinham das tábuas, dos quadros, dos móveis. Palavras em línguas esquecidas. E entre elas, uma frase repetida em uníssono, grave, dolorosa, como um lamento ancestral: — A parede respira. — A parede lembra. — A parede sangra. O chão rachou sob os pés dela. Uma f***a se abriu, estreita, revelando um brilho vermelho, profundo. O mesmo tom das visões. Elena gritou, mas o som não saiu. A casa respondeu com outro sussurro. — Desce. — O que está embaixo ainda vive. O relógio marcou 3:43. Um minuto fora do ciclo. O primeiro fora da ordem. E a casa gemeu, como se tivesse sentido dor. Elena olhou para o buraco nas tábuas, onde o ar quente e úmido subia devagar. Vozes vinham dali. Chamando. Cantando. Prometendo respostas. Deu um passo à frente. Depois outro. O chão estalou. E, no instante em que tocou o limite da f***a, algo sussurrou do escuro, bem junto ao ouvido dela: — O porão nunca foi o fim, Elena. — Foi o começo. O vento soprou por toda a casa, apagando a última vela. E tudo se perdeu na escuridão.
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