Capítulo 5. Quarto Fechado

2020 Words
O silêncio era absoluto. Não o silêncio comum, mas aquele que parece devorar o som — denso, vivo, pulsante. Elena abriu os olhos. Estava caída no chão da sala, o rosto frio contra a madeira. A vela apagada ao lado. A casa envolta em penumbra cinzenta, iluminada apenas pela luz fraca da lua atravessando as janelas. Demorou alguns segundos para perceber que o relógio havia parado novamente. 3:42. Tentou se levantar, mas o corpo pesava. Os joelhos doíam. A mente latejava. O ar tinha cheiro de ferro e **. Por um instante, acreditou que tudo havia sido sonho. Até ver o chão. A rachadura aberta durante a madrugada ainda estava lá, estreita, mas real. Da f***a subia um leve vapor, frio, quase imperceptível. E no centro dela, um ponto escuro brilhava. Elena ajoelhou-se. Era metal. Algo pequeno, enterrado entre as tábuas. Puxou com cuidado. O objeto veio coberto de poeira e ferrugem. Quando limpou, o formato ficou nítido. Uma chave. O coração acelerou. O mesmo metal, o mesmo peso, o mesmo som. A chave da cela. Ela a segurou firme. O toque era familiar, quase íntimo. O frio do metal parecia reconhecê-la. Fechou os olhos, e por um instante, sentiu o ferro das algemas nos pulsos novamente. O chão estalou. Elena abriu os olhos. A rachadura havia desaparecido. O piso estava intacto. Ficou de pé, trêmula. A casa inteira estava imóvel, mas algo nela havia mudado. O ar era outro. Mais espesso. Mais velho. Subiu as escadas devagar, a chave presa entre os dedos. O corredor estava mergulhado em sombras. Os retratos observavam. O de Sarah, coberto pelo lençol, parecia mais inchado, como se a pintura crescesse sob o tecido. Elena passou direto. Entrou no quarto. As cortinas estavam abertas, a luz da lua banhando o espelho rachado. As marcas de mãos continuavam na parede, mas agora havia algo novo — símbolos riscados à unha, idênticos aos do diário de Sarah. Ela guardou a chave no bolso. Tentou convencer-se de que não significava nada. Mas o peso dela era um lembrete constante: a cela existia. Em algum lugar, ainda estava lá. Sentou-se na cama. O som distante do vento atravessava as frestas. E então, veio o barulho. Baixo, metálico. Um trinco girando. Elena se levantou devagar. O som vinha do final do corredor. Do quarto de Sarah. Aquele que sempre ficava trancado. O ar esfriou. O corredor escureceu mais. O relógio voltou a marcar 3:42. Elena avançou. Cada passo ecoava como se fosse o último. Quando chegou diante da porta, viu o impossível. A fechadura girava sozinha. Lenta. Precisa. Até o estalo final — o clique seco do destrancar. Elena prendeu a respiração. A maçaneta desceu sozinha, e a porta se abriu alguns centímetros. Do interior, um vento gelado soprou. Cheiro de terra, ferrugem e cera antiga. Ela empurrou a porta com a ponta dos dedos. O quarto estava intacto, mas não parecia o mesmo. As cortinas se moviam devagar, embora não houvesse vento. As paredes, cobertas de símbolos apagados. No centro, uma cama antiga, coberta por um lençol branco. Elena entrou. A madeira gemeu sob seus pés. O lençol tremia, sutilmente. Deu um passo mais perto. O som de respiração veio debaixo do tecido. Parou. O coração batia tão forte que doía. A chama da vela que segurava quase se apagou. Com a mão trêmula, puxou o pano. Debaixo, nada. Apenas o colchão antigo, manchado de umidade. Mas o som de respiração continuava. Agora, atrás dela. Elena se virou. O espelho do quarto — grande, oval, moldura dourada — estava coberto por um pano cinza. O pano tremia como se algo respirasse de dentro. Ela se aproximou devagar. — Sarah? Nada respondeu. A chama da vela oscilou. O pano se moveu mais forte. Algo batia do outro lado, lento, ritmado, como um coração. Elena ergueu a mão e puxou o tecido. O espelho estava escuro, profundo, sem reflexo algum. Mas o vidro pulsava. Vivo. Então, o reflexo apareceu. Não era o dela. Era Sarah. Pálida, imóvel, os olhos abertos e brancos. Atrás dela, a Mulher de Preto. Elena recuou, tropeçando na cama. A vela caiu e apagou-se. A escuridão tomou o quarto. Mas a voz de Sarah permaneceu. Baixa. Rígida. Sem emoção. — A chave te escolheu. — E a cela te espera. O espelho brilhou com luz pálida. A imagem de Sarah moveu os lábios. — Você precisa trancar o que foi aberto. Elena procurou a chave no bolso. O metal estava quente. Quase queimava. O símbolo dos Willon brilhava fraco, pulsando no ritmo do coração dela. De repente, o quarto inteiro começou a tremer. As paredes rangiam, o chão vibrava. O espelho estalou, rachando de cima a baixo. E a voz da Mulher de Preto atravessou o som do vidro: — Ela não quer fechar. — Ela quer sair. O lençol da cama se ergueu sozinho, como se algo invisível se levantasse debaixo dele. As cortinas bateram. As janelas se abriram com força. O vento entrou em rajadas, espalhando ** e velas. Elena gritou e correu para a porta. Mas o batente fechou-se sozinho, trancando-a. Do espelho, veio o som de vidro se abrindo — como carne rasgando. Um braço pálido, fino, atravessou o vidro. O toque congelou o ar. Elena segurou a chave com força, sem pensar, e gritou: — Volta! A luz explodiu em branco. O espelho rachou por completo. O braço sumiu. O vento cessou. ************** Quando Elena abriu os olhos, estava sozinha. O quarto em silêncio. O espelho em pedaços no chão. E no meio deles, a chave. Brilhando. Límpida. Sem ferrugem. Ela a pegou. A superfície agora refletia o rosto dela. Mas o reflexo sorria. Um sorriso lento. E frio. O relógio da casa marcou 3:43. O minuto seguinte. O minuto em que o quarto de Sarah se abriu — e não se fechou mais. Elena deixou a chave cair. O som metálico ecoou pelo quarto vazio, reverberando de maneira impossível — como se houvesse espaço demais entre as paredes. O sorriso do reflexo continuava, mesmo sem ela mover um músculo. O espelho rachado devolvia fragmentos do rosto dela, cada pedaço distorcendo uma expressão diferente. Em um, parecia triste. Em outro, furiosa. Em outro, o sorriso do reflexo era largo demais, humano de menos. Elena recuou. O ar cheirava a vidro queimado e ferro. A casa, silenciosa até então, soltou um gemido longo, como se o próprio chão sentisse dor. De repente, um som seco. O diário de Sarah caiu da estante, abrindo-se no chão. As páginas se moveram sozinhas, virando rápido demais, até parar numa folha manchada. As letras surgiram lentamente, uma após a outra, como se alguém as escrevesse ali, naquele momento. “Ela saiu.” O coração de Elena disparou. O frio subiu-lhe pelas pernas. Olhou para o espelho — as rachaduras ainda brilhavam em tom vermelho. Atrás do reflexo, uma sombra atravessou o fundo do vidro, lenta, sinuosa, como se andasse dentro da superfície. Elena recuou até a porta. A madeira estava quente, vibrando sob o toque dela. Girou a maçaneta. Nada. Travada. Empurrou com força. Nada. A chave em sua mão brilhou, e o trinco girou sozinho. A porta se abriu com um estalo. O corredor estava escuro. Somente o som distante do vento. Elena saiu, ofegante, e desceu as escadas quase correndo. Na sala, as velas estavam acesas — mas ela não as havia acendido. E sobre a mesa, o retrato de Sarah. Não o original, mas uma cópia menor, emoldurada, virada para baixo. Aproximou-se. Virou o retrato. A imagem estava alterada. Sarah olhava para frente, mas atrás dela havia algo novo: o contorno de árvores, sombras e um reflexo de lua. A floresta. Elena sentiu o corpo estremecer. O coração batia como um tambor abafado. Do lado de fora, o vento começou a uivar — um som que parecia vir de muito mais fundo que o bosque. Entre o som das folhas, havia outro ruído. Risos. Baixos, curtos, infantis. Ela se aproximou da janela. A névoa cobria o jardim, espessa e leitosa. Mas entre as árvores, uma silhueta. Alta. Imóvel. A Mulher de Preto. O reflexo do vidro se duplicava. Por um instante, Elena achou ver duas figuras — uma fora da casa e outra dentro. Pisou para trás. O chão gemeu. O relógio da lareira bateu três e quarenta e dois. De novo. Elena agarrou a chave com força. O metal pulsava, quente. Uma voz soou atrás dela. Baixa. Suave. — Você abriu o que ela não conseguiu fechar. Elena virou-se rápido. Margaret estava parada no canto da sala, o rosto meio oculto pela sombra. Os olhos marejados. — Mãe… — Sarah tentou selar o espelho, mas o sangue a impediu — disse Margaret, com voz rouca. — Agora a casa pertence a ela. — A quem? A mãe desviou o olhar para o vidro da janela. A silhueta ainda estava lá fora. — A mulher que foi antes de nós. — Antes de nós? — Elena se aproximou. Margaret deu um passo atrás. — Ela não é apenas uma visão, Elena. É o reflexo do primeiro olhar. O que viu o futuro e enlouqueceu. O vento bateu com força nas janelas. As velas se apagaram. E, no escuro, a voz da mulher de preto ecoou por toda a casa — vinda de dentro das paredes, do teto, do chão. — O tempo acabou. O som foi seguido de um golpe seco na porta da frente. Uma batida pesada, como se algo enorme empurrasse o batente. Depois outra. E outra. Margaret correu até o retrato. Virou-o de cabeça para baixo e o cobriu com um pano. — Ela está tentando entrar. Elena segurou a chave com força. — O que ela quer? A mãe olhou para a filha com os olhos arregalados. — Você. Um estrondo fez a casa estremecer. As janelas se abriram de uma vez, e o vento encheu o corredor com folhas e cinzas. Elena e Margaret recuaram. No meio do caos, a porta do quarto de Sarah bateu. Uma, duas, três vezes. Depois, se abriu sozinha. Da escuridão lá de dentro, um sussurro. — A chave… Elena olhou para a mãe. Margaret balançou a cabeça. — Não entra lá. Mas algo — talvez o dom, talvez a voz que a guiava — a empurrou para frente. Subiu as escadas, cada degrau ecoando como um aviso. Quando chegou ao corredor, o ar estava parado. O pano do retrato havia caído. E onde antes havia duas figuras, agora havia três. A terceira era ela, parada ao lado da mulher de preto, segurando a chave. Elena engoliu o medo e avançou até o quarto. A porta se fechou atrás dela com um baque seco. A chave na mão queimava. Do espelho rachado, o reflexo sorria novamente. As rachaduras se moveram, desenhando o símbolo dos Willon. Mas havia um quinto traço. Novo. Brilhando em vermelho. Elena entendeu. O símbolo havia mudado desde que ela tocara a chave. Agora, ela fazia parte dele. A voz de Sarah surgiu atrás dela, fraca, como um eco distante: — Tranque o que foi aberto. — Antes que ela saia inteira. Elena olhou para o espelho. As rachaduras se expandiam. Um som metálico ressoou. E do vidro, algo começou a emergir. A Mulher de Preto. O corpo se formando, primeiro os braços, depois o rosto. Olhos vazios. Um sorriso humano demais. Elena levantou a chave, sem saber o que fazer. A mulher avançou. O quarto inteiro escureceu. E quando o metal da chave tocou o vidro, uma luz intensa encheu o ambiente. O som das correntes ecoou, profundo, arrastado, até cessar. Silêncio. Elena abriu os olhos. O espelho estava intacto. Sem rachaduras. Sem reflexo. A chave, fria em sua mão. Mas dentro do vidro, algo se moveu — uma sombra breve, recuando para o fundo, como se tivesse sido empurrada de volta. Elena caiu de joelhos, exausta. O relógio marcou 3:43. Um minuto além do tempo. Um minuto em que ela acreditou ter vencido. Até ouvir. Baixo. Atrás da parede. — Você só me trocou de lugar. O espelho vibrou. O chão gemeu. E a casa respirou outra vez.
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