O som das últimas palavras ainda ecoava dentro da cabeça de Elena.
“Você só me trocou de lugar.”
A voz era distante, mas viva — como se tivesse se prendido ao ar.
Ela ficou ajoelhada diante do espelho por longos segundos, incapaz de se mover.
O reflexo permanecia opaco, imóvel, mas o vidro pulsava em silêncio, como um coração escondido.
A chave, fria em sua mão, parecia mais pesada agora — como se guardasse algo.
O vento soprou pelas janelas, levantando poeira e folhas antigas.
O cheiro de terra molhada invadiu o quarto.
Elena ergueu o olhar.
As janelas estavam abertas.
E no peitoril, pegadas — pequenas, nítidas, marcadas na poeira.
Pegadas descalças.
Indo para fora.
O coração acelerou.
Ela se levantou devagar, ainda trêmula.
O relógio marcava 4:01.
O primeiro horário que não pertencia ao ciclo.
Elena desceu as escadas com a chave apertada na mão.
As velas queimavam fracas, como se o ar estivesse mais denso.
O som das janelas batendo ecoava por toda a casa.
No chão da sala, o retrato de Sarah estava caído, o vidro trincado.
Mas a pintura havia mudado outra vez.
Agora, a mulher de preto estava sozinha.
E ao fundo da imagem, a floresta.
Elena sentiu o estômago se contrair.
O vento soprou de novo, vindo da direção dos fundos da casa.
A porta da varanda balançou, abrindo-se devagar.
A névoa entrava pelo vão, fria e espessa.
E então, ela ouviu.
Um som baixo, quase um chamado.
Uma voz feminina, distante, repetindo seu nome.
— Elena…
Veio da floresta.
A respiração dela travou.
Por um instante, tudo dentro dela dizia para não ir.
Mas algo mais forte a empurrou.
Uma necessidade antiga, como se o próprio sangue chamasse.
Pegou um castiçal com vela e atravessou a varanda.
A névoa envolveu tudo.
O frio mordia a pele.
Os sons da casa ficaram para trás.
A floresta a engoliu em silêncio.
As árvores pareciam mais próximas do que de costume.
Altas, retorcidas, cobertas de musgo.
O chão úmido afundava sob os passos.
E o ar…
O ar tinha o mesmo cheiro da cela.
Elena seguiu o som da voz.
A chama da vela tremia, lançando sombras que dançavam pelas árvores.
A cada passo, o sussurro ficava mais nítido.
Mas não vinha de uma direção só.
Vinha de todas.
— Elena…
— Elena, olha…
— Elena…
Ela começou a correr.
Não sabia para onde.
A floresta parecia mover-se ao redor, trocando o caminho.
As árvores giravam, os galhos se inclinavam, os sons se misturavam.
Por um instante, achou ver silhuetas entre as árvores — sombras de mulheres, todas com o rosto oculto, paradas, observando.
Parou.
A respiração saia em nuvens brancas.
O som da vela queimando era o único sinal de vida.
E então viu.
Adiante, um círculo de pedra coberto de musgo.
No centro, marcas no solo — símbolos idênticos aos gravados no diário de Sarah.
E sangue seco, escuro, preenchendo os riscos.
Elena se aproximou devagar.
A chama da vela diminuiu até quase sumir.
O chão estava frio, mas o centro do círculo pulsava calor.
O ar cheirava a ferro e cera queimada.
Um eco percorreu o ambiente.
— Você veio.
Elena girou o corpo.
A voz vinha das sombras.
A chama da vela oscilou, revelando uma silhueta entre as árvores.
Alta.
Imóvel.
Rosto coberto por um véu n***o.
A Mulher de Preto.
Elena não conseguiu respirar.
Os olhos da figura eram claros demais — duas esferas brancas que refletiam a luz da vela.
O véu movia-se como se o vento soprasse apenas nele.
A mulher deu um passo.
O som do tecido arrastando-se no chão foi baixo, úmido, humano.
A cada movimento, o frio aumentava.
A vela se apagou.
A escuridão engoliu tudo.
Elena recuou, tropeçando nas pedras.
O chão tremeu.
O som das correntes voltou — vindo do subsolo, das raízes, debaixo do círculo.
E a voz, agora múltipla, ecoou por entre as árvores:
— O sangue das Willon abriu o caminho.
— O reflexo encontrou corpo.
— O tempo não dorme mais.
Elena tentou correr, mas algo a segurou pelo tornozelo.
Olhou para baixo — uma mão pálida emergia do solo, suja de terra, fria como gelo.
Puxava com força.
Elena gritou, chutou, libertou-se, e caiu para trás.
O chão se abriu.
Por um segundo, viu rostos dentro da terra — pálidos, imóveis, como se dormissem sob as raízes.
O vento soprou.
As vozes voltaram.
— O espelho é a porta.
— O espelho é a carne.
Elena se levantou e correu.
As árvores pareciam fechar o caminho atrás dela.
O som da mulher de preto a seguia, o mesmo ritmo, os mesmos passos.
Mas não ouvia pegadas.
Apenas o farfalhar do tecido e a respiração perto demais.
Quando chegou ao limite da clareira, virou-se.
A Mulher de Preto estava parada no centro do círculo.
Imóvel.
O véu flutuando, mesmo sem vento.
As mãos pálidas erguidas, e entre elas, algo brilhando.
A chave.
A mesma que Elena carregava no bolso.
Ela enfiou a mão no casaco.
Vazio.
A chave havia sumido.
O coração disparou.
A mulher moveu a cabeça devagar, e mesmo sem ver o rosto, Elena soube que ela sorria.
Um som baixo encheu o ar — um sino distante, grave, profundo.
E a voz dela ecoou, agora dentro da mente de Elena:
— A cela nunca foi uma prisão, Elena.
— Foi o espelho.
O chão tremeu.
As pedras do círculo se moveram, abrindo um vão escuro.
Do fundo, um vento subiu, quente e úmido.
Elena recuou, mas o chão cedeu sob seus pés.
Caiu.
A queda foi longa, sem som, sem fim.
As vozes a acompanhavam.
— O espelho abre.
— O espelho fecha.
— O espelho te escolheu.
Até que, de repente, tudo parou.
Elena abriu os olhos.
Estava deitada sobre o chão frio da sala da casa.
O relógio marcava 3:42.
As janelas fechadas.
O silêncio total.
Por um instante, acreditou que havia sonhado ou uma visão.
Mas o chão sob o corpo estava coberto de terra úmida.
E ao lado da cabeça, uma marca de sapato sujo.
Pequena.
De mulher.
Elena se levantou devagar.
As mãos tremiam.
Olhou ao redor.
O espelho estava inteiro.
Mas no vidro, gravada por dentro, havia uma frase, escrita como com sangue seco:
“A floresta é a memória.
E agora, ela lembra de você.”
O vento soprou pelas frestas.
O relógio moveu um segundo.
E a casa respirou novamente.
Elena ficou parada diante do espelho, o coração batendo alto demais no peito.
A frase no vidro parecia viva, como se tivesse sido escrita por dentro, em um lugar onde ela jamais alcançaria.
A superfície do espelho respirava.
Umidade escorria pelas bordas, traçando filetes finos que se misturavam às palavras, fazendo-as parecer sangrar.
O ar da casa estava diferente.
Mais pesado.
Saturado de umidade e frio.
Ela deu um passo para trás e percebeu o detalhe: o chão da sala estava coberto por pequenas folhas presas ao barro seco — folhas da floresta.
Olhou para as janelas.
Todas fechadas.
Nenhum vidro quebrado.
Mas o som lá fora…
O som não era o mesmo.
Não havia mais vento.
Nem o canto dos grilos.
Nem o farfalhar das árvores.
A floresta inteira parecia ter parado de respirar.
Elena se aproximou da porta da varanda.
As mãos tremiam quando tocou o trinco.
O metal estava úmido, frio, e o cheiro de terra vinha forte demais — como se a própria floresta estivesse encostada ali, do outro lado.
Empurrou devagar.
A madeira gemeu, e uma rajada de ar entrou pela fresta.
A névoa se arrastou para dentro, espessa, viva, engolindo o piso.
Avançou até os pés dela.
Elena recuou.
Mas a névoa subiu, lenta, como se a reconhecesse.
As velas da sala se apagaram uma a uma, sussurrando.
O som parecia um suspiro.
A respiração dela acelerou.
Tentou acender uma das velas de novo, mas o fogo não pegava.
O pavio umedecido.
O ar molhado.
O cheiro de ferro e terra era insuportável.
De repente, algo riscou o vidro da janela.
Um som agudo, arranhando o silêncio.
Três linhas.
Depois, uma curva.
Quando Elena se aproximou, viu o desenho: o símbolo dos Willon.
Idêntico ao da chave.
Apareceu sozinho.
Gravado por dentro.
Ela sentiu o estômago revirar.
As batidas do coração misturavam-se ao som distante de algo que se movia lá fora.
Passos.
Lentos.
Profundos.
Na terra molhada.
Elena colou o rosto ao vidro.
A névoa era espessa, mas algo se movia dentro dela — alto, pálido, arrastando o tecido preto que tocava o chão.
A Mulher de Preto.
Ela caminhava entre as árvores.
Mas havia algo diferente.
As sombras se moviam com ela.
Outras formas, menores, contorcidas.
Elena piscou, achando que fosse reflexo.
Mas não era.
As formas tinham olhos.
Olhos brancos.
O som de vozes infantis se misturou ao vento.
Risos curtos, falsos, repetindo o nome dela em coro.
— Elena…
— Elena… vem ver…
Elena deu um passo atrás.
As luzes da casa piscaram.
O relógio da lareira vibrou e caiu no chão, quebrando o vidro.
Os ponteiros pararam em 3:42.
Ela tapou os ouvidos, tentando abafar as vozes.
Mas quanto mais fazia isso, mais próximas elas ficavam.
— Elena… lembra?
— Elena… você abriu.
— Elena… o espelho está com fome.
Um som alto estourou no teto.
Madeira rachando.
As janelas bateram com força, como se algo tentasse entrar.
O vento soprou por dentro da casa, vindo do andar de cima.
Elena olhou para a escada.
A névoa subia degrau por degrau, lenta, viva.
Parecia seguir o som da respiração dela.
Subiu.
As tábuas vibravam sob os pés.
A cada passo, as vozes ficavam mais nítidas, mais humanas.
Pareciam vir de dentro das paredes outra vez.
— Ela saiu, Elena.
— E trouxe os ecos.
— A floresta veio com ela.
No corredor, o retrato de Sarah havia mudado.
O fundo já não era mais o interior da casa.
Era a floresta.
A mesma que cercava tudo lá fora.
E o rosto de Sarah agora olhava diretamente para ela — não o olhar fixo da pintura, mas um olhar vivo, consciente.
Elena parou.
As pernas tremiam.
O ar cheirava a madeira molhada e sangue antigo.
Do teto, gotas caíam, lentas, pingando no chão.
Tic.
Tic.
Tic.
Ela ergueu o olhar.
O teto estava manchado, escuro.
Algo escorria das tábuas.
Não água.
Sangue.
O som de passos veio do quarto de Sarah.
Elena girou o corpo.
A porta, antes aberta, agora estava fechada.
E por baixo dela, luz.
Uma luz vermelha, pulsante, respirando como se tivesse vida própria.
Deu um passo à frente.
Outro.
A chave estava no bolso novamente — fria, embora ela tivesse certeza de tê-la perdido.
A cada batida do coração, o metal vibrava.
Encostou a mão na maçaneta.
O toque fez o ar vibrar.
O som das vozes cessou.
O silêncio foi total.
Por um instante, tudo pareceu congelado.
Então, uma única frase atravessou a parede:
— A floresta está dentro.
Elena girou a maçaneta.
A porta se abriu devagar.
O ar quente e úmido saiu de dentro, misturado a névoa e cheiro de terra.
O quarto estava escuro.
Mas o chão — o chão estava coberto de folhas.
Elena recuou um passo, mas o vento soprou atrás dela e a empurrou para dentro.
O som das árvores se misturou ao da casa.
O quarto respirava.
Os galhos batiam nas paredes.
O teto se moveu como um tronco vivo.
E no centro do quarto, entre a névoa e o chão coberto de folhas, alguém estava de pé.
Alta.
Imóvel.
Véu n***o, tecido antigo.
A Mulher de Preto.
Mas dessa vez, ela não era sombra.
Era real.
E sorria.
Elena deu um passo atrás, o corpo travado.
A chave começou a brilhar dentro do bolso.
E a voz da mulher soou pela primeira vez fora das visões — baixa, rouca, antiga.
— Agora a casa e a floresta são uma só.
— E você, Elena… é o elo entre elas.
O chão tremeu.
As paredes se abriram, revelando raízes, terra e folhas.
O ar vibrou.
O relógio da sala bateu 3:43.
E o mundo inteiro pareceu prender a respiração.
A Mulher de Preto estendeu a mão.
A pele pálida, os dedos finos.
A voz ecoou uma última vez, como um juramento:
— Tudo o que lembra… vive.
Elena fechou os olhos.
E, quando abriu novamente, estava sozinha.
O quarto intacto.
Sem folhas.
Sem névoa.
Sem mulher.
A chave, fria, na palma da mão.
Mas fora da janela, a floresta agora estava mais próxima da casa.
Tão próxima que as árvores tocavam o telhado.
E, lá no meio da névoa, algo se movia.
Vários “algos”.
Como se a floresta tivesse começado a caminhar.