Capítulo 7. A Névoa

1918 Words
O sol nunca nasceu. Pelo menos, não como antes. Quando Elena abriu os olhos, a luz que atravessava as cortinas era cinza. Não o cinza do amanhecer — mas o de algo doente, morto, suspenso no ar. A névoa havia se espalhado. Ela via da janela: a floresta agora tocava o jardim, e as árvores pareciam mais próximas, como se tivessem caminhado durante a noite. A casa estava silenciosa. Nem os relógios marcavam as horas. Nem os pássaros cantavam. O ar tinha cheiro de papel queimado e ferrugem. Elena vestiu o casaco e desceu. Margaret não estava. As xícaras na mesa ainda tinham chá frio, como se tivessem sido deixadas há minutos. Mas o vapor se movia. Lento. Contrário ao ar. Do lado de fora, a névoa engolia tudo. O portão do jardim desaparecera. O som da cidade, distante, não existia mais. Elena respirou fundo e saiu. Cada passo no gramado molhado ecoava de forma estranha, como se houvesse espaço demais ao redor dela. O mundo parecia oco. Seguiu pelo caminho de pedras até a estrada. A névoa era espessa, fria, e parecia ter peso. Atravessá-la doía na pele. A respiração formava nuvens densas. E cada som voltava atrasado — como se o ar demorasse para entender. Depois de alguns minutos, as formas começaram a surgir. Casas, sombras, a torre do sino da igreja. A cidade. Mas algo estava errado. As janelas estavam abertas, e as portas, entreabertas. As ruas, vazias. Nenhum movimento. Nenhum som humano. Elena caminhou pelo meio da rua, a chave fria dentro do bolso. O relógio da praça, visível ao longe, marcava 3:42. Os ponteiros imóveis. Ela se aproximou da padaria. Luz acesa. O cheiro de pão fresco no ar. Entrou. O sino da porta tocou. — Senhor Becker? — chamou. Silêncio. As prateleiras cheias, o forno ainda quente. Mas ninguém. Então ouviu passos. Do fundo da loja, o velho padeiro apareceu. Mesma roupa, mesmo avental manchado de farinha. Mas o rosto… O rosto estava errado. Os olhos brancos, sem íris, sem cor. — Senhor Becker… o que… Ele sorriu. Um sorriso calmo, como se a visse pela primeira vez. — Posso ajudar? Elena deu um passo atrás. — Sou eu… Elena Willon. — Elena? — ele repetiu, como se testasse o nome pela primeira vez. — Não conheço nenhuma Elena. O coração dela apertou. — Eu compro aqui desde criança. A minha mãe, Margaret… Ele piscou. Nada. O olhar vazio, mas o sorriso fixo. — Leite ou pão? Elena recuou. A voz dele era perfeita, mas sem emoção. Como se alguém tivesse aprendido a falar sem entender o que dizia. Saiu correndo da padaria. As ruas estavam diferentes agora. As cores mais pálidas. As casas distorcidas, como se o ar derretesse suas bordas. As sombras se moviam sem luz. Elena atravessou a rua e quase caiu ao ver o reflexo de si mesma na vitrine de uma loja. O reflexo piscou um segundo antes dela. E sorriu. — Não… — sussurrou. O reflexo inclinou a cabeça. O vidro rachou sozinho, sem som, deixando uma linha fina entre as duas imagens. Do outro lado da rachadura, o reflexo ainda sorria. Elena correu. Virou a esquina. O sino da igreja tocou, baixo, grave, arrastado. As pessoas estavam na praça. Dez, talvez mais. De pé, imóveis, todas voltadas na mesma direção — para ela. Elena parou. O coração disparava. — O que está acontecendo? — gritou. — O que vocês querem? As pessoas não responderam. Apenas a encararam. Até que uma delas, uma mulher com o rosto coberto de véu preto, deu um passo à frente. A voz saiu baixa, arrastada, mas clara. — Não lembramos do que não pertence mais ao tempo. Elena recuou. — Eu… eu existo! — gritou. As outras começaram a repetir em coro, em uníssono, as mesmas palavras: — Não lembramos do que não pertence mais ao tempo. — Não lembramos do que não pertence mais ao tempo. A voz delas ecoava, misturada ao som distante do sino. O ar ficou mais pesado, e a névoa começou a se mover, rodando em torno da praça como um redemoinho. Elena tapou os ouvidos, mas o som entrava pela mente. As vozes ficaram mais graves, mais distorcidas, até virarem gritos. — NÃO LEMBRAMOS! A luz sumiu. A névoa tomou tudo. E quando Elena abriu os olhos, estava sozinha. De novo. Mas não na praça. No meio da floresta. A névoa era a mesma, mas o ar era outro. Mais frio. Mais silencioso. O som das folhas vinha de baixo dos pés dela. E algo a observava. Olhou para trás. A casa aparecia ao longe, entre as árvores. Mas agora parecia diferente — coberta de raízes, envolta pela névoa, como se estivesse sendo engolida pela terra. A chave pulsou no bolso. Elena a tirou. O metal estava quente, vibrando como se respondesse ao próprio batimento do coração dela. E então, a voz da mulher de preto ecoou pela floresta. Baixa. Calma. Perto. — Você saiu da casa, Elena. — Mas a casa… nunca saiu de você. A névoa se moveu. Formou silhuetas humanas, sombras brancas e disformes, cada uma com o rosto dela. Elena recuou, tropeçando nas raízes. As sombras avançaram, os olhos vazios, o sorriso idêntico ao reflexo do espelho. O ar gelou. O chão tremeu. A floresta pareceu respirar. E no meio das sombras, uma figura se ergueu. Alta. Imóvel. Véu n***o. A Mulher de Preto. Ela ergueu uma das mãos, e todas as sombras pararam. Os sussurros cessaram. A chave brilhou mais forte, quase queimando na mão de Elena. A mulher falou, num tom que era sussurro e trovão ao mesmo tempo: — A realidade se fragmentou, Elena. — E cada pedaço agora te reconhece. O mundo se partiu em silêncio. A névoa se abriu. E Elena viu — múltiplas versões dela mesma, paradas entre as árvores, cada uma com um olhar diferente. Uma chorava. Outra sorria. Outra estava coberta de sangue. A voz da Mulher de Preto soou uma última vez, ecoando em todas as direções: — Só uma pode sobreviver ao reflexo. Elena fechou os olhos, o coração acelerado. Quando abriu, estava de volta na casa. Sozinha. Mas o espelho à sua frente mostrava todas as versões dela ainda lá, na floresta. Esperando. O relógio ainda marcava 3:42. E o reflexo sorriu primeiro. E só então Elena percebeu que o espelho não devolvia mais o que ela fazia. Piscou. O reflexo não piscou. Moveu a cabeça para o lado, lenta, quase curiosa, como se observasse uma criatura nova. Elena recuou um passo. O chão rangeu sob o peso dela. Mas no espelho, o reflexo não se moveu. Permaneceu parada, sorrindo. Então, as rachaduras começaram a se formar. Finas. Delicadas. Cada linha correndo pelo vidro como um nervo vivo. De dentro das fendas, uma luz pálida pulsava. O reflexo abriu a boca. E o som que saiu não era humano. Um eco grave, lento, como algo tentando falar através da água. — Você… saiu da casa. — Mas a casa… não saiu de você. Elena sentiu o corpo gelar. O ar ao redor ficou espesso, vibrando, como se o espaço entre ela e o espelho estivesse respirando. O reflexo piscou — e agora os olhos eram completamente brancos. Ela tentou se afastar, mas algo a impediu. Os pés estavam colados ao chão. Literalmente. A madeira se movia sob seus sapatos, líquida, viva, segurando-a. Elena puxou, desesperada. As tábuas rangeram, e o som que saía delas era de ossos se partindo. O reflexo sorriu mais largo. E a luz dentro das rachaduras aumentou. Por um instante, tudo girou. O ar, a casa, as paredes. Tudo começou a derreter — como se a realidade perdesse o contorno. O teto se moveu, o chão se inclinou. O relógio da parede caiu, mas o som que fez foi diferente — um som grave, metálico, que não pertencia a este mundo. Elena caiu de joelhos. A visão turva. O espelho agora mostrava outro lugar. Não a sala. Uma rua. A cidade. Mas distorcida. As pessoas andavam em silêncio, todas iguais. Todas com o rosto dela. Elena engoliu em seco. O reflexo olhou por cima do ombro, como se soubesse que ela observava. E o mundo dentro do espelho começou a se mover de forma independente — as versões dela caminhavam, uma delas parava e encarava o vidro diretamente. A voz voltou, múltipla, sobreposta: — Aqui fora, todos esqueceram. — Aqui dentro, tudo lembra. — Escolha o que quer perder. Elena gritou. Mas o som foi engolido. A casa se dissolveu ao redor dela. As paredes viraram névoa, e ela se viu em meio à cidade outra vez — mas agora, as ruas estavam cobertas por uma camada fina de água. Reflexos por todos os lados. De si mesma. De Sarah. Da mulher de preto. Ela correu. Cada passo produzia ecos, como se outras pisadas a seguissem. Mas quando olhou para trás, viu — Não eram ecos. Eram outras Elenas. Saindo dos reflexos nas vitrines, nas poças, nos vidros das janelas. Cada uma com uma expressão diferente. Raiva. Tristeza. Vazio. E todas a encarando com o mesmo olhar — de acusação. A mais próxima estendeu a mão. Os dedos tremiam. E disse, com voz idêntica à dela: — Você nos deixou lá. Elena recuou. As outras começaram a se mover. As vozes se fundiram. — Você abriu o espelho. — Você abriu o espelho. — Você abriu… O som virou um rugido. As vitrines estouraram. Os reflexos se partiram em mil pedaços. E, de cada fragmento, uma nova imagem dela tentava sair. Elena tapou os ouvidos e gritou. O chão rachou. A névoa invadiu tudo. E, no meio do caos, o som do sino. Baixo. Constante. Ela abriu os olhos. De novo, na casa. Deitada no chão. Sozinha. A chave, fria, entre os dedos. O espelho intacto. Mas a superfície refletia algo atrás dela. Uma silhueta imóvel, parada no corredor. Elena se virou. Margaret estava ali. O rosto pálido, o olhar distante. Mas algo nela estava errado. Os olhos — vazios, sem cor. — Mãe? Margaret sorriu. — Você demorou para voltar. Elena recuou um passo. — Onde… onde você estava? Margaret inclinou a cabeça. — No lugar onde você me deixou. O sangue de Elena gelou. — Eu… eu não te deixei em lugar nenhum… — Não? — a voz da mãe soou mais grave. — Então quem trancou a porta? Elena olhou para a chave em sua mão. O metal pulsava. Margaret deu um passo. O som dos pés no chão era o mesmo das visões — pesado, arrastado, molhado. — Mãe… — sussurrou Elena, chorando. — Não é você… Margaret sorriu mais largo. E o véu n***o apareceu sobre os ombros dela, como se sempre estivesse ali. — Claro que sou. — A voz mudou. Mais profunda. Mais antiga. — Eu sempre fui. A Mulher de Preto. Usando o rosto da mãe. O ar estourou. As janelas tremeram. E o relógio da sala voltou a funcionar, marcando 3:42. A voz ecoou, múltipla, vinda das paredes, do chão, do teto: — A névoa tomou o mundo, Elena. — Agora só resta o reflexo. O espelho se partiu. A luz apagou. E o som da casa respirando voltou. Longo. Profundo. Familiar. Elena estava presa no tempo. De novo. Entre o que era e o que lembrava ser. E a voz final, sussurrada bem perto do ouvido dela, selou o capítulo: — Você não vive mais no mundo, Elena. — O mundo agora vive em você.
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