Serpente
Me chamo Miguel mas me chamam de Serpente, e não é à toa. Tenho 25 anos, e hoje sou o dono do Jacaré. Filho da Duda e do Ares, eu cresci na favela, no meio dos corres e das responsabilidades que vieram antes do meu tempo. Desde menor, já sabia que um dia isso aqui ia ser minha responsabilidade. Agora que é, faço questão de controlar tudo. Nada entra e nada sai sem que eu saiba.
Hoje, o morro tá em movimento, mas com uma novidade. Ouvi dizer que tem uma moradora nova que chegou. Parece que é a sobrinha da dona Sandra, aquela que cuida do bar na entrada da comunidade. A tia já mandou um recado pra mim, dizendo que a menina vai aparecer na boca mais tarde pra se apresentar. Ela quer saber se pode ficar no Jacaré, como se esse fosse qualquer lugar que dá pra chegar e ficar. Aqui, as coisas não funcionam assim; quem chega tem que se mostrar primeiro, e depois eu decido. Já conheço bem o estilo dessas que vêm de fora. Mas vamos ver qual é a dela.
Enquanto isso, meu celular tá fervendo de mensagem. Larissa, Carol, Jaque… A lista é longa e essas mina não sossegam enquanto não recebem uma resposta. Mas tô nem aí. Sei bem o que elas querem. Elas veem o poder e a grana, acham que podem chegar e conquistar espaço. O problema é que eu não tô aqui pra brincar de romance. Ontem mesmo, foi o maior corre pra despachar umas que tavam me enchendo o saco, achando que eu ia acordar na cama delas hoje. Pura ilusão.
Meu foco é outro. Aqui na favela, a responsa é grande, e as coisas não param. As mina que chegam, se quiserem me acompanhar, têm que entender a real. Pra ficar comigo tem que ter a cabeça no lugar, saber o que é o corre e entender que minha atenção é dividida. E não é qualquer uma que aguenta essa realidade. Já vi muita mina confundir as coisas, achar que só porque é bonita vai chegar e mandar, mas comigo isso não cola.
Ainda assim, essa parada da nova moradora tá me intrigando. Dona Sandra é gente nossa, tá aqui desde sempre, e se pediu pra eu dar uma atenção pra sobrinha dela, é porque a situação deve ser especial. E também, eu sei que ela quer que eu veja qual é a intenção da menina. Ela tá com medo da sobrinha, será? Ou será que a garota já chegou achando que vai ser fácil? Aqui é assim: quem entra na favela tem que saber que tem regras, e eu sou quem dita o que pode e o que não pode. Se essa menina vai ficar, tem que mostrar a que veio.
Eu já tenho meu jeito de lidar com as mina. Curto o rolê, mas sem dar confiança demais. Não sou de me enrolar e misturar amor com respeito. Cada uma que aparece já vem achando que vai ser diferente, que vai me prender, mas na real eu só quero alguém que entenda o que é o meu estilo de vida. E quem vem de fora precisa entender que esse é meu espaço, que aqui quem manda sou eu.
Amanheci com um monte de responsabilidade pra resolver. Além das mina que tão sempre caçando assunto, tem os negócios pra acertar. Já levantei cedo, e depois de dar uma olhada no movimento na boca, fiz questão de passar na padaria da dona Helena, como faço quase todo dia. A tia é um ponto firme pra gente aqui na comunidade, sempre com aquele sorriso aberto, mesmo com as coisas difíceis que a gente passa. Ela já tá comigo desde que era moleque, então não tem erro: chego, troco ideia, e vejo se ela precisa de algo. Essa tia é como uma segunda mãe pra mim.
Ser o Serpente não é só sobre mandar e desmandar, também é sobre manter tudo em ordem e garantir que o Jacaré continue seguro. É uma parada de honra. Minha relação com a comunidade é essa, eu cuido e defendo o que é nosso, mas não é qualquer um que ganha moral por aqui. Quem faz por onde, recebe em dobro; quem só vem pra bagunçar, sabe que comigo não tem vez. E essa menina nova? Tem que saber que aqui é minha área, e pra ter meu respeito vai ter que mostrar valor. Não tolero gente que chega pra causar confusão. E sendo sobrinha da dona Sandra, a responsabilidade dela é ainda maior.
A maioria das mina que aparece acha que sabe do meu estilo de vida, mas na real, poucas tão preparadas. A sobrinha da Sandra, ao que parece, vai vir falar comigo com a ideia de “se apresentar”. Como se fosse só uma visita de boas-vindas. Essas mina acham que só porque é novinha, já é suficiente pra tirar minha atenção. Mas já tô vacinado.
Do lado de fora da padaria, observo o movimento e vejo que o Jacaré tá tranquilo. O Complexo tá lindo hoje, o sol tá estralando, e as crianças tão na rua brincando, coisa que a gente ama ver. Esses moleques que tão começando agora vão ser o futuro da comunidade. Eles não sabem de tudo que acontece aqui, mas a gente faz questão de proteger o quanto pode. Meu pai sempre disse que a gente tem que cuidar dos nossos, então é isso que faço. Quem ajuda a comunidade recebe respeito de volta.
Depois de uns minutos, saio da padaria e subo na minha moto, acenando pros moleques da contenção. Eles sabem que aqui é respeito total, mas é cada um no seu papel. No Jacaré, a ordem é fundamental, senão o sistema desanda. É por isso que eu faço questão de manter tudo na linha, e quem tá comigo já sabe como funciona. Não tem espaço pra vacilo.
Cheguei na boca e já dei aquele toque de liderança nos moleques que estavam ali cuidando da movimentação. Me preparei para o resto do dia, e fiquei no aguardo da chegada da tal sobrinha da Sandra. Ela vai se apresentar logo mais, e tô curioso pra ver como ela vai reagir ao ver quem é o dono da favela.