01 - Prólogo
Thais Narrando
Eu sempre acreditei que a vida, por mais dura que fosse, ainda podia ser justa comigo. Que se eu trabalhasse, respeitasse as pessoas e cuidasse da minha família, tudo daria certo. Mas eu estava errada. O que eu vivi em Itatiaia não foi vida, foi uma condenação disfarçada de destino.
Nasci naquela cidadezinha pequena, cercada de montanhas e verde, um lugar onde todo mundo conhece todo mundo, onde o som das manhãs é o canto dos passarinhos e à noite a gente ainda pode ver as estrelas. Filha de um pequeno comerciante e de uma dona de casa dedicada, cresci acreditando que, apesar das dificuldades, tínhamos tudo o que precisávamos: união, amor e um lar simples, mas cheio de vida. Eu e meu irmão éramos o orgulho dos meus pais. Só que bastou minha mãe adoecer para que tudo desmoronasse.
Lembro como se fosse ontem quando ela começou a sentir aquela dor terrível na perna. Primeiro, pensamos que fosse apenas cansaço, mas logo a situação piorou. Consultas, exames, remédios, viagens. Cada tentativa de cura arrancava um pedaço da nossa esperança e, junto com ela, as economias que meu pai tinha guardado com tanto sacrifício. Quando o dinheiro acabou, ele fez o que jamais queria: pediu ajuda ao agiota da cidade, o homem que todos conheciam e temiam. Luiz, mais conhecido como Urubu.
Na época, eu não entendia direito, só via o desespero estampado nos olhos do meu pai. Minha mãe acabou conseguindo o tratamento em São Paulo e, graças a Deus, se curou. Mas a conta que ficou foi impagável. Luiz não queria dinheiro de volta, porque cada mês que passava ele inventava mais juros. Não queria nossa casa, nem o comércio do meu pai. Ele queria algo muito pior: ele queria a mim.
Eu tinha apenas dezesseis anos quando meu pai, com lágrimas nos olhos, me disse que não havia outra saída.
— É isso ou ele acaba com a gente, filha.
Ele falou, a voz embargada. Eu não sabia se gritava, se fugia ou se simplesmente aceitava. No fim, fiz o que uma menina assustada faria: obedeci. Luiz, com mais que o dobro da minha idade, começou a me cortejar. Presentes caros, passeios pela cidade, olhares arrogantes quando perguntavam se eu era filha dele. Eu, iludida e cega, confundi possessividade com amor. Achava que ele me via como algo precioso, quando na verdade eu não passava de um troféu, uma conquista para alimentar o ego dele.
O casamento veio rápido, com pompa e aplausos falsos. No começo, eu acreditava que tudo daria certo, que aquele homem que me dava flores e sorrisos me amaria de verdade. Mas não demorou um ano para que a máscara caísse. Luiz revelou sua verdadeira face de Urubu: um homem violento, controlador, c***l. Eu, apaixonada e ingênua, me agarrava à ilusão de que ele mudaria. Mas cada dia era pior.
A gota d’água veio quando descobri que ele tinha uma amante. A dona de uma pousada da cidade. Eu fui até lá, cheia de coragem e dor, querendo defender o que eu acreditava ser meu. Entrei disposta a acabar com aquilo. Mas ela riu da minha cara. Disse que logo ocuparia o meu lugar, porque o pai dela era superior a Luiz e que ele não pensava duas vezes em largar uma mulher quando já tinha outra na manga. Aquilo foi um soco na alma. Eu, que já era vista como apenas “a mulher do Urubu”, agora corria o risco de ser humilhada ainda mais.
Desesperada, tentei reconquistá-lo. Fiz de tudo para agradar aquele homem. E, quando descobri que estava grávida, no nosso terceiro aniversário de casamento, senti que talvez, finalmente, ele tivesse um motivo para mudar. Preparei tudo naquela noite: janta pronta, banho tomado, perfume suave, sorriso ansioso. Queria contar para ele que seria pai. Mas a notícia chegou antes dele. Disseram que Luiz estava na pousada, com ela.
Eu perdi a cabeça. Corri até lá. Invadi o quarto como um furacão e vi o que já sabia, mas não queria acreditar: os dois juntos, na cama. Arranquei a mulher de cima dele, nos embolamos no chão, cabelo, unha, sangue. Foi então que ele me segurou com força e me arrastou para fora, como se eu fosse lixo. A cada passo, meu coração despedaçava.
Dentro de casa, desesperada, gritei que estava grávida. E o que recebi foi a sentença da minha morte. Luiz me olhou com frieza e disse que eu não iria atrapalhar a vida dele. Que tinha outros planos. Que faria comigo o mesmo que fez com a primeira esposa. Antes que eu entendesse aquelas palavras, ele pegou uma faca.
A dor das facadas eu nunca vou esquecer. O metal entrando na minha carne, o calor do sangue escorrendo, a respiração ficando curta. Foram quatro golpes, cada um arrancando de mim não só a vida, mas também a esperança. Eu gritava, implorava, mas ele só me olhava com aquele desprezo que sempre escondeu atrás de presentes. Até que desmaiei, entregue à escuridão.
Quando acordei, achei que já estava morta. A sala branca, o cheiro de álcool, a dor latejando por todo o corpo. Uma médica me observava, com olhos sérios e cheios de compaixão. Foi ela quem me contou a verdade: Luiz acreditava que eu tinha morrido. Já haviam providenciado um caixão, um enterro discreto.
— Você precisa fugir, Thais — ela disse. — Se ele souber que você está viva, vai terminar o que começou.
Naquele instante, percebi que eu não tinha escolha. Pela primeira vez, pensei em mim. Pela primeira vez, senti que a minha vida tinha algum valor. Aceitei a ajuda dela. Deixei para trás o meu nome, a minha cidade, a minha família. E também o meu bebê que não resistiu. Para o mundo inteiro, eu estava morta.
Hoje, estou em um ônibus indo para o Rio de Janeiro. Olho pela janela e vejo a paisagem mudar. Dentro de mim, tudo é medo e esperança misturados. Medo de ser encontrada, de não conseguir recomeçar. Esperança de que, talvez, em algum lugar daquela imensidão, exista uma vida nova me esperando.
Eu carrego cicatrizes profundas, na pele e na alma. Carrego a lembrança do amor que nunca existiu, da ingenuidade que me roubou anos de juventude. Carrego também o peso de ter sido enterrada viva. Mas junto a tudo isso, carrego a coragem de recomeçar. Aquela médica me deu o endereço de uma parente sua, no morro do Falcão. É para lá que eu estou indo.
Meu nome é Thais. Nasci em Itatiaia, mas renasci do sangue que Luiz Urubu tentou derramar. A partir de agora, ninguém me dirá o que devo ser. Eu não sou mais a esposa submissa de um homem c***l. Eu não sou mais a menina ingênua que acreditava em promessas falsas. Eu sou sobrevivente.