Capítulo 4

4442 Words
— Não posso acreditar que tenha feito isso! — Lily exclamou quando eu, na manhã seguinte, enquanto me arrumava, contei do meu encontro da tarde anterior para ela. Dei de ombros e alisei o cabelo com as mãos, apenas metade concentrada na conversa. Qual o penteado adequado para passar uma manhã ao ar livre? — O que esperava que eu fizesse, Lily? Me virasse e saísse andando? — perguntei retoricamente. Ergui os olhos e busquei seu rosto no reflexo do espelho. — Acha que devo fazer uma trança, ou deixo-o solto? Por um momento, ela pareceu confusa. Então, percebeu que eu não estava mais falando de Charles e ficou furiosa. Apontou-me um dedo acusador através do espelho. — Não ouse mudar de assunto, mocinha. Ora, era exatamente isso que eu esperava que fizesse. Onde já se viu uma dama que foi ignorada durante todo um encontro permanecer até o fim sem se rebelar?! Suspirei com pesar e peguei o pente, subitamente sem mais v*****e de pensar em penteados. Passei-o superficialmente pelos fios escuros e ondulados enquanto falava: — Você sabe bem que eu não sou uma dama qualquer, Liliana. Eu sou uma princesa e, em breve, serei uma rainha. — Minha voz estava baixa e dura, porém firme. — Não posso me dar ao luxo de me rebelar cada vez que discordo com a ação de alguém — muito menos com um homem. A raiva de Lily pareceu crescer, mas dessa vez não era direcionada a mim. Seu olhar no espelho se suavizou enquanto cerrava os punhos para tentar se controlar. — Sabe, houve um tempo em que eu sonhava em ser princesa; quando éramos crianças, eu sempre me imaginava como sua irmã, vivendo na família real ao seu lado. Agora, vejo que nada do glamour e riqueza que a nobreza possa oferecer vale a pena — não quando, em troca, você tem de dar sua liberdade. O tom de Lily era ríspido e me surpreendeu um pouco. Se fosse qualquer outra pessoa falando, eu teria recuado da discussão por me sentir ofendida — mas aquela era Lily, minha amiga, e ela jamais diria algo para me machucar. Percebi, então, que, em parte, ela estava certa. Grande parcela da função de um monarca é se doar às vontades do povo, como uma mãe ou pai fariam com seu filho. Não se pode esperar de todo um reino gratidão e amor quando você não tem nada para dar em troca. E, às vezes, essa realidade podia ser um pouco dura. No entanto, era minha função — eu nascera para isso —, e aceitá-la era parte do processo de se tornar rainha. Um pensamento de repente me veio à mente: como teria sido para minha mãe se tornar a governante de um povo, quando não havia nascido ou sido treinada previamente para aquilo? Se para mim era difícil, para ela deveria ter sido, no mínimo, doloroso. Mas ela nunca havia falado sobre isso; sempre deixara transparecer que fora fácil lidar com tudo. No entanto, depois das conversas com meu pai no baile e na reunião, eu duvidava muito de que tudo o que Catherine havia dito fosse verdade. Afastando os pensamentos sombrios, ergui o queixo e forcei um sorriso sem dentes. — Não se preocupe, Lily. Eu vou ficar bem. — Tenho que ficar, concluí mentalmente. Mamãe ficou bem, eu sei que sim; eu também ficarei. — Agora, o que acha de me ajudar um pouco? Já faz uma hora desde o fim do café da manhã, e eu tenho compromissos com certos rapazes. Liliana se aproximou de onde eu estava e pegou o pente de minhas mãos. Balançou a cabeça com reprovação enquanto falava, mas pude ver os traços de um sorriso em seu rosto: — Se você acha que encontros românticos cheios de beijos e promessas vão lhe fazer esquecer o problema maior, mocinha... — Eu estou certa? — concluí ao interrompê-la. Dessa vez, ambas sorrimos genuinamente. — Talvez. — Ficou em silêncio por algum tempo, concentrando-se no penteado. — Sabe, estou feliz que, mesmo que um deles tenha dado errado, você não se deixou abalar. — Claro que não. É a minha competição, não é? — Lily deu de ombros sem erguer os olhos, e de repente algo me ocorreu. — Por falar em beijos e promessas... Como vão as coisas entre você e meu primo? Já se declararam um ao outro? Liliana quase derrubou o pente que segurava. Eu sufoquei um ganido quando ela se atrapalhou com alguns dos grampos que segurava e acidentalmente espetou um em minha nuca. Apesar da dor, eu ri da expressão chocada da criada — o que me rendeu um olhar fulminante através do espelho. — O que foi? — perguntei. — Até parece que nunca conversamos sobre ele... — Vi seu rosto ruborizar e imediatamente senti o meu próprio se abrir em um sorriso malicioso. — A não ser que esteja tão abalada porque alguma coisa aconteceu. Lily congelou e fitou as mãos seriamente, evitando meu olhar. Estava prestes a provocá-la mais uma vez quando disse, com a voz baixa: — Ele... disse que gosta de mim. Eu arregalei os olhos e me virei para encará-la. — E?! Ela encolheu os ombros e evitou contato visual novamente. — E... Eu corri. Não sei o porquê. Não sei o que houve. Eu apenas... Surtei. Nunca imaginei que ele de fato pudesse corresponder o que eu sentia. Quero dizer... Eu... — Liliana engasgou e parou de falar. Sacudiu a cabeça como se quisesse se livrar de teias de aranhas presas no cabelo e, respirando fundo, fez com que eu me virasse novamente na cadeira. — Não importa. Ele deve achar que o odeio agora. Não há mais chance para nós. Eu senti a tristeza em sua voz reverberar em meu próprio coração. Fitei seu reflexo com solidariedade e alcancei sua mão, apertando-a gentilmente. — Ah, Lily, não... Coisas assim acontecem; você não esperava. Mas n******e desistir. Precisa encontrá-lo e esclarecer tudo. — Eu não sei... Talvez ele tenha desistido — ela disse, mas em sua voz não havia convicção. No entanto, tampouco eu conseguia ver alguma esperança. — Liliana, por favor. Essa é a sua chance, não deve deixar passar. Conte a ele. Se não o fizer por si ou por ele, faça por mim. Com um suspiro, a criada assentiu. — Está bem. Foi tudo o que disse antes de voltar a se concentrar no penteado. Tomei como um sinal para não insistir mais e me calei também. *** Alguns minutos depois, eu estava batendo à porta de um dos competidores que haviam me animado durante o baile: Adrian Dantte. Ele fora um dos que não tinham tanta ansiedade a meu respeito, pelo menos não ao ponto de impedi-los até mesmo de formar uma frase com eloquência, mas também não ficara à v*****e o suficiente em minha presença para ser desrespeitoso. Era o candidato perfeito para fazer eu me esquecer do desastre da tarde anterior. Afinal, eu ainda estava triste com os resultados do encontro com Charles, mas o show deve continuar — e, honestamente, precisava calar a voz paranoica em meu cérebro que me dizia que todos os garotos iriam agir como Decker fez. Voz essa que, eu devia admitir, soava assustadoramente como uma mistura das palavras de Christian Blank com as de meu pai. Adrian Dantte levou apenas alguns segundos para abrir a porta quando eu bati. Ele parecia carregar um desânimo que não estava ali na noite do baile: os ombros caídos, olheiras sob os olhos, que estavam inchados e vermelhos... No entanto, sorriu quando me viu e se esforçou para se recompor. — Alteza — cumprimentou, com uma curta reverência. — A que devo a honra de sua visita? — Bom dia, senhor Dantte. — Sorri, mas estava um pouco preocupada com sua aparência mascarada. Parecia estar doente... Ou muito, muito triste. — Gostaria de convida-lo para dar uma volta comigo. O que acha? — Perfeito, senhorita. Mas aonde iremos? Devo trocar de roupa? Eu o examinei. Usava uma camisa azul-bebê engomada e elegante, feita sob medida, com uma calça preta e sapatos de couro combinando. A cor clara da roupa de cima realçava o loiro-acobreado de seus cabelos e parecia deixar seus olhos castanhos ainda mais escuros. Adrian era muito bonito, percebi, sorrindo. — Não, senhor. Está bonito assim. Além disso, nosso encontro hoje não será muito incomum. Assentindo, o senhor Dantte fechou a porta atrás de si ao se apressar para me seguir. Ofereceu o braço galantemente, e eu aceitei, satisfeita. Tinha a impressão de que, daquela vez, meus planos para a manhã funcionariam. — Aonde iremos, então? — repetiu ele, claramente curioso. — Bem... Você já conhece o castelo? Pensei que talvez pudesse te mostrar alguns de meus lugares favoritos. — Quando cheguei, meu mordomo se prontificou a me mostrar as áreas principais... Mas, certamente, um dia não é o suficiente para visitar tudo o que essa fortaleza tem a oferecer — acrescentou rapidamente, ao ver a decepção começar a tingir meu rosto. — Ficaria muito feliz em conhecer o que a senhorita desejar me mostrar. Eu sorri mais uma vez. Como ele é educado, e bonito, e gentil..., pensei, sonhadoramente. — Muito bem, então — disse eu. — Pensei em lhe mostrar um lugar que gosto, já que me falou tanto sobre sua família no baile... Ao ouvir a menção à sua família, o rosto de Adrian se fechou tanto que até mesmo eu — uma pessoa que m*l o conhecia — pude perceber. Sua expressão ficou ainda mais sombria do que estava quando atendeu a porta. Franzi o cenho. Será que sentia saudades de casa? Havia brigado com alguém antes de partir? — Adrian? Você está bem? — perguntei, esquecendo-me de repente de usar seu sobrenome. Ele forçou um sorriso, que pareceu uma careta no semblante fechado. — Claro. Por que pergunta? Parei de andar e o encarei. — Ora, por favor. Vi a mudança bem em seu rosto. Se disse algo que o magoou, peço que me perdoe... — Não — ele me interrompeu, desviando o olhar. — Digo, não foi você. Quando ele não completou a justificativa, eu me permiti ser curiosa e perguntar, tentando manter a voz suave: — Aconteceu algo com sua família? Antes de você partir... Uma briga, talvez? Estava ciente de que nossos braços ainda estavam entrelaçados, mas eu não podia pegar sua mão para confortá-lo. Não nos conhecíamos tão bem assim. Adrian suspirou. — Acho que preciso ser honesto, já que está tentando tanto ser gentil — disse, com a voz baixa. — Além disso, você está certa, pelo menos em parte. Houve uma briga, antes que eu viesse para cá, mas não com alguém da minha família. — Seu amigo? — arrisquei. Os olhos castanhos do senhor Dantte encontraram os meus, tão intensos que foi impossível não me perder neles. — Minha ex-noiva — respondeu. Eu me senti murchar por dentro, como uma flor no outono. Acredita em mim agora?, perguntou a voz, dentro da minha cabeça. Todos os homens são iguais, todos vão te decepcionar, e sua competição será um fiasco... Cale a boca, retruquei mentalmente e tranquei aqueles medos em um baú, no fundo da mente. Eu o soltei com a surpresa, mas cuidadosamente tentei manter a expressão neutra ao responder: — Você tinha uma noiva? — Minha voz era um sussurro, o único sinal, eu esperava, de que havia ficado desapontada. Quando Adrian não respondeu, eu continuei, mais alto: — Você ainda a ama? Ele assentiu lentamente e olhou para o chão. — Eu sinto muito, alteza. Não queria atrapalhar sua competição, muito menos lhe dar falsas esperanças. Então minha voz não era a única coisa que denunciava como eu me sentia, se ele estava se desculpando. Tanto faz, pensei. De que importa como eu me sinto? Não seja mesquinha, Jennifer. Ele é quem está sofrendo por uma separação. — Por que veio para a competição? — perguntei, tentando soar solidária, apesar das palavras bruscas. — Por que se separaram? Ela não o ama mais? Os olhos de Dantte brilharam ao se erguerem novamente. — Ah, ela me ama. Na verdade, foi por essa razão que brigamos. Estávamos noivos há um ano, mas ambas as nossas famílias estavam passando por dificuldades e tivemos de adiar muito o casamento, já que m*l possuíamos dinheiro para a comida. Então, eu recebi a convocação para a vinda ao palácio, e soube que devia tentar. Por ela. Afinal, se eu me tornasse rei, poderia ajudar minha família — e também a dela. Seria questão de meses... Ficamos em silêncio por muito tempo, enquanto eu digeria as informações e Dantte olhava para o nada com uma expressão culpada. Ele estava disposto a se casar com uma estranha para melhorar a vida daqueles que amava. Quase desejei poder ser capaz de sentir raiva dele, mas, ao invés disso, minha mente esboçava um plano para ajudar Adrian. — Qual o nome dela? — perguntei, afinal. Desconfiado e surpreso, ele respondeu: — Crystal. — Bem, Crystal é uma mulher de sorte — disse eu, suspirando. — Quem me dera fosse amada assim por alguém... Adrian piscou e franziu as sobrancelhas. — Não entendo. Não deveria estar brava? Eu o encarei. — Por quê? Porque você ama alguém? Não. Não sou amarga a esse ponto. Uma faísca de esperança combinada com decepção brilhou em seus olhos. Ele podia ter um motivo honrado, eu percebi, mas ainda odiava a ideia de não se casar com Crystal. — Então vai me deixar ficar? Fiz uma careta. — Não, céus. Não sou uma bruxa. Tenho algo melhor em mente — respondi e, antes que ele pudesse ficar confuso, tratei de me explicar: — Quero dizer que eu vou ajudá-lo. Não precisará se casar comigo e, melhor, poderá parar de adiar o casamento que realmente deseja. Adrian estreitou os olhos e sorriu. De repente, a postura cansada e desolada pareceu deixá-lo e deu lugar a esperança e uma espécie de energia pura contagiante. — Estou ouvindo. Eu o coloquei a par do meu plano enquanto insistia que voltássemos a andar, pois ainda queria levá-lo a algum lugar melhor do que o corredor vazio onde estávamos antes. No fim, acabamos indo até o telhado de uma das torres e ficamos conversando sobre mais do que apenas minha tentativa de ajudá-lo: ele me contou um pouco sobre Crystal e como se conheceram, e eu compartilhei algumas coisas sobre minha vida. Foi uma conversa agradável, que tivemos enquanto assistíamos o sol subir no horizonte conforme as horas passavam. — Bem, acho que devemos ir — disse eu ao ver que a luz solar vinha diretamente de cima de nossas cabeças. — O almoço deve estar quase pronto, e não acho que minha mãe gostará de me ver atrasada para outra refeição. Adrian riu e se virou, deixando para trás a vista do reino banhado pelo sol forte do meio-dia. Eu o segui. — Uma princesa precisa saber chamar a atenção, certo? — ele brincou. De repente, parou de sorrir e me olhou com seriedade. — Alteza... Eu realmente agradeço o que está tentando fazer por mim; a senhorita não faz ideia do que significa... — Ele engasgou levemente, mas logo se recompôs. — Realmente é uma pessoa boa, Jennifer Heronwood, e tenho confiança em dizer que será uma rainha ainda melhor. Ouvir a sinceridade na voz de Dantte me fez ruborizar levemente. Estava tão acostumada com elogios mascarando subornos e bajulações que ouvir um verdadeiro foi uma pequena surpresa — e, de certa forma, uma vitória. Desviei os olhos e voltei a andar. — Obrigada, senhor Dantte. Sei que, para você, é um grande gesto... — Hesitei um pouco ao continuar. — No entanto, como disse, não há nada garantido. Preciso da aprovação do rei para continuar com o planejado... — Não tem problema, alteza. Apenas o fato de que está tentando já é de grande conforto. — Adrian sorriu ao virarmos um corredor que desembocava nas escadarias. — Sabe, mesmo que vossa majestade não aceite seu pedido... Terá sido uma honra conhecer e me tornar amigo da futura rainha. Isto é, se puder chamá-la de amiga? A forma como ele meio perguntou, meio sugeriu que éramos amigos me fez sorrir levemente. Naquele momento, percebi que não cabia ao meu pai tomar aquela decisão. Sua aprovação era importante para mim, mas aquela era a minha competição. Eu era a responsável por aqueles garotos, de uma forma ou de outra. E eu não poderia falhar com Adrian — não quando havia lhe dado tanta esperança de que reencontraria sua amada. Não podia restaurar o relacionamento eu mesma, mas podia ajudar, e iria. Afinal, não era em nome do amor que estava recebendo aqueles garotos em minha casa? — Sim, Adrian — eu respondi, saindo de meus devaneios. — É claro que pode. *** Eu queria correr diretamente para o escritório de meu pai após o almoço, mas sabia que não podia. Em primeiro lugar porque, antes do fim da refeição, ele e minha mãe haviam saído para resolver algum problema sobre o qual um guarda havia ido lhes comunicar. E, se eu não havia sido chamada, era porque 1) era assunto do reino, muito importante, com que apenas os verdadeiros rei e rainha poderiam lidar ou 2) era algo pessoal sobre o qual eu nada sabia. De qualquer modo, eu não era bem-vinda na reunião. E, em segundo lugar, eu não podia vê-lo porque tinha que estar em outro local assim que o horário de almoço acabasse: minha aula de História Nacional. Desde que me entendia por gente, papai e mamãe insistiam para que eu aprendesse tudo o que se há para aprender sobre Cannehor: a geografia do reino, as grandes guerras, os antigos monarcas e seus feitos, até mesmo as bandeiras adotadas anteriormente. Além dessas aulas, eu tivera também as básicas, aquelas que toda criança deveria ter: gramática, literatura, matemática e um pouco de ciências da natureza — apenas o suficiente para saber diferenciar uma planta inofensiva de uma venenosa, por exemplo. Contudo, com o passar do tempo, essas últimas foram deixadas de lado conforme eu concluía as matérias que haviam para serem aprendidas. Apenas História Nacional parecia nunca ter um fim, apesar de eu já ter aprendido muitas e muitas vezes sobre a mesma coisa. Hoje, no entanto, quando tomei meu lugar na biblioteca onde assistia às aulas, percebi que o conteúdo daquela seria diferente. Minha professora, uma velha senhora que também era criada do castelo havia muitos anos, estava apoiada sobre nossa mesa de sempre, analisando um livro que nunca havia visto antes. — Boa tarde, senhorita Giulline — eu cumprimentei ao entrar. Apesar de aparentar ter mais de sessenta anos, Giulline Trentor não gostava de ser chamada de “senhora” porque nunca fora casada. — Alteza — ela respondeu, inclinando a cabeça respeitosamente, mas sem tirar os olhos do livro. Eu me inclinei, curiosa. — O que vamos estudar hoje? Giulline ajeitou os óculos na ponta do nariz e sorriu, exibindo dentes amarelos. Ainda sem erguer os olhos, respondeu: — Lendas do reino. Eu imediatamente murchei, apesar de não responder para reclamar. Já havíamos tido uma aula sobre isso uma vez e fora a maior chatice. Uma hora inteira ouvindo histórias de seres fantásticos inexistentes: homens que se transformavam em lobo, mulheres cuja metade do corpo era igual à de um leão, pessoas que se alimentavam de sangue... Eram todos contos para assustar crianças. Uma coisa era ser capaz de realizar alguma mágica, outra era acreditar cegamente em invenções antigas e malucas. Assim, quando Giulline começou sua explicação, eu não estava exatamente antenada ao que ela dizia. Quero dizer, quem é que se interessaria em ouvir tanta baboseira? No entanto, em um dos momentos em que ponderava se devia ou não sair correndo dali, algo que a senhorita Trentor disse me chamou a atenção. — ...eram chamados de magos, aqueles capaz de moldar a natureza com as próprias mãos. Eu imediatamente me endireitei em meu lugar e encarei Giulline fixamente. Será que estava falando sobre a versão real dos magos? Seria possível que, daquela vez, a velha senhora fosse falar sobre algo verdadeiro? Ela prosseguiu, e eu descobri que havia apenas um jeito de saber: ouvindo. — As histórias sobre a origem dos magos são muitas, mas a mais famosa é também a única que possui registros nas escrituras: há muitos e muitos séculos, Cannehor foi assolada por uma forte praga que devastou os campos e as vilas do reino. Poucos foram os que sobreviveram. A rainha da época, uma jovem com o nome de Amelia, ao perceber que seu povo estava à beira do desaparecimento, convocou sua corte e seus criados de confiança para uma reunião. Aqueles que não haviam sido mortos compareceram, e juntos formaram um círculo com onze pessoas. Começaram a discutir possíveis soluções. “Após alguns esforços, a rainha, mesmo ao lado dos dez súditos, percebeu que não poderiam salvar o reino sozinhos; teriam de pedir ajuda, portanto assim fizeram: recorrendo aos espíritos da natureza, o círculo implorou que tivessem clemência e o ajudassem a combater aquele m*l. A Natureza viu a bondade no coração daqueles que pediam seu auxílio e concordou em ajudar. Assim, pediu que seus melhores guardiões se fundissem com o sangue de cada um e os desse poderes mágicos. “E foi feito: Fogo, Ar, Terra, Água e Espírito se dividiram e escolheram seus representantes. Mas houve alguém que, durante a repartição, não recebeu seu guardião: a irmã da rainha, a princesa Vanya. Tendo em seu coração um único d****o sombrio — o de tomar Cannehor para si e dominar o reino —, foi declarada indigna de receber o dom da Natureza. Percebendo o que fora feito a ela, a princesa se revoltou e atacou um dos espíritos da natureza que ainda não havia feito a transição para seu humano do círculo: era uma das metades do Espírito, a mais forte. “Vanya atacou com tanta força que o espírito se surpreendeu e, ao se defender, acabou, acidentalmente, se fundindo com a princesa. Então, ela recebeu o dom no lugar de um dos nobres, mas, como fora dito pela Natureza, seu coração não era puro o suficiente para suportar o poder que seria absorvido. E Ela estava certa. O resultado em Vanya foi caótico: o Espírito, como guardião da mente e do corpo, enlouqueceu a princesa completamente, tirando-a a humanidade, os sentimentos bons, transformando até mesmo a cor de seus olhos. Aquela metade do guardião Espiritual se perdeu em desgraça. E a magia? A magia dela nasceu distorcida e errada, grotesca — no entanto, mesmo assim, era uma das mais poderosas do círculo. Foi chamada de feiticeira. “A princesa fugiu e conseguiu se esconder ao perceber que era mais forte que os outros. Contudo, sabia que não podia correr para sempre dos magos e, sem querer desperdiçar uma gota de sua magia, escreveu páginas e páginas de feitiços negros, os quais planejava deixar salvos para que quem quer que os encontrasse desse continuidade aos seus planos de tomar o trono. Pouco tempo mais tarde, com a praga já controlada, Vanya foi capturada por Amelia, mas os magos jamais tiveram conhecimento do seu livro das trevas que, conforme a lenda, até hoje circula por aí segundo a v*****e eterna da princesa, caindo nas mãos daqueles que possuem a semente da escuridão no coração a fim de que se espalhe o caos.” Giulline fechou o livro das lendas com um baque e sorriu para mim, encarando-me por sobre as lentes dos óculos. Eu estremeci quando ela terminou a narrativa, momentaneamente chocada demais para sequer falar. Seria aquela lenda real? Será que fora assim mesmo que surgiram as pessoas como eu? E, se sim, então seria verdade que essas pessoas do m*l — os feiticeiros — existiam? Mas se fosse... Se fosse, por que eu nunca havia visto um antes? Giulline se levantou para guardar o livro e disse: — Bom, posso ver pelo seu rosto que gostou da aula de hoje. No entanto, não irei pedir-lhe para me trazer um resumo sobre porque presumo que já tenha muito com o que se ocupar. — Madame Trentor deu um sorrisinho e se virou para a porta após fazer uma breve reverência. — Vejo você na próxima aula, alteza. Suas últimas palavras me tiraram do estado chocado que ouvir sobre todas aquelas coisas havia me colocado. Eu me levantei de repente, quase derrubando a cadeira em que estava sentada. — Espere! — gritei. Senhorita Trentor se virou surpresa, piscando os olhos cinza-pálidos rodeados por rugas. Eu procurei desesperadamente por um relógio, apesar de saber que não havia nenhum. Nada nas paredes exceto livros. — Senhorita Giulline, não vá. A aula n******e ter acabado... Tenho tantas perguntas... Quero dizer, é uma lenda realmente interessante. Mas, será que é somente isso? A senhora já viu um feiticeiro? Sabe se são reais? E quanto aos magos...? Giulline levantou uma mão espalmada, interrompendo-me. Eu me calei e ela balançou a cabeça, dizendo: — Pode sanar todas as dúvidas nas próximas aulas, senhorita Heronwood; trabalharemos um pouco mais com a lenda dos feiticeiros. Por agora, nosso horário está encerrado. — Sorriu mais uma vez, enigmaticamente. — Além disso, tudo se torna verdade quando você se permite acreditar. Sem dizer mais nada, a velha senhora se virou e se retirou da biblioteca. Eu suspirei, frustrada. Lá se ia minhas chances de obter respostas. Não, disse uma voz em minha mente. Você tem outras pessoas com as quais pode conversar sobre isso. Uma lembrança perpassou minha mente: Jonathan, seu olhar dourado e distante como o sol, os cabelos longos arrumados, a roupa elegante condizente com a ocasião, os pés movendo em sintonia com os meus enquanto ele revelava mais e mais fragmentos de seu passado. Eu estremeci e pisquei. Era isso. De algum modo, meu cérebro havia encontrado uma conexão impossível entre o que quer que meu pai estivesse escondendo de mim e a lenda dos feiticeiros. Mas o que tem uma coisa a ver com a outra?, eu me perguntei. Eu estava tão confusa, mas, para meus instintos, estava claro que ambas as coisas estavam relacionadas. E eu aprendera muito cedo a confiar em meus instintos. Saí da biblioteca, desejando poder descansar um pouco para que minha mente clareasse. Rumei ao meu quarto, as palavras de Giulline ainda martelando na cabeça. De alguma forma, aquela lenda era a chave para arrancar de meu pai a verdade. E eu teria que descobrir como.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD