Capítulo 3

4471 Words
Durante o resto do baile, eu me recusei a continuar dançando. Assim que percebi que já havia tido pelo menos uma música com cada competidor — exceto Christian Blank, é claro —, passei a andar pelo salão em busca de conversas agradáveis acompanhadas de vinho e comida. Porém, a pista de dança, é claro, ainda estava aberta aos outros convidados. Em alguns momentos, me juntei ao meu pai em suas rodas de “amigos” — compostas exclusivamente por lordes interesseiros e ambiciosos — com o intuito de salvá-lo de possíveis desconfortos, mas ele estava se virando bem. Além disso, como não tive nem sinal da presença de minha mãe e de meus irmãos, presumi que a rainha estivesse cuidando dos gêmeos e me permiti baixar a guarda para confusões surpresas. Com isso, o restante da festa foi tranquilo e passou rápido. Quando acabou, no entanto, me senti levemente aliviada por poder tirar o vestido quente e dormir um pouco. Mas meu alívio durou pouco. No dia seguinte, depois do que pareceram apenas minutos de sono, Liliana me acordou. — Vamos, vamos. Você precisa acordar. Uma rainha n******e dormir tanto assim quando possui responsabilidades — ela ralhava. — Não sou uma rainha ainda — resmunguei, cobrindo o rosto com o travesseiro quando ela abriu a cortina da janela e deixou a luz do sol invadir o quarto. — Deixe-me dormir, Lily... — Não, senhora. O oficial Listern ficará muito nervoso se você se atrasar. Eu abri os olhos e me sentei abruptamente. Lily parou na minha frente e riu do meu espanto. — Hoje é dia de treino, não é? — murmurei, esfregando o rosto. — Sim, e você está atrasada — ela cantarolou. Percebi que ela estava certa ao ver o sol brilhar no céu, através da janela. d***a. Levantei da cama em um pulo e corri para o banheiro, determinada a bater o recorde de arrumação mais rápida do ano. — Você sabe que não precisa chama-lo pelo sobrenome, não sabe? — comentei, me referindo a Ean. Minha voz estava enrolada por conta da pasta de dente na boca. — Você é como uma sobrinha para ele, assim como eu. — Eu sei, mas me sinto mais confortável assim. — Na verdade, você está mais para uma nora ou algo assim — eu me corrigi, ignorando sua resposta. Lily engasgou e imediatamente apareceu na porta do banheiro, ao meu lado. Não pude deixar de sorrir enquanto enxaguava o rosto. — Ele te disse isso? — ela perguntou tolamente. — Claro que não. — Eu vi o desapontamento em seus olhos e meu sorriso se alargou. Enxuguei as mãos com uma toalha. — Logan disse. Era verdade. Ontem, no baile, Logan e eu conversamos um pouco sobre o assunto, e ele, depois de três ou quatro taças de ponche, admitiu que seus pais viam Lily como sua namorada — mesmo que ele próprio não admitisse que gostava dela. Os olhos da criada se arregalaram em surpresa e contentamento, mas rapidamente esses sentimentos foram substituídos por raiva. Fiquei confusa com a repentina mudança de curso de sua reação. — Você está mentindo. Logan jamais diria isso — ela disse, ríspida. Franzi a testa. — Como assim? Lily estreitou os olhos e me deu as costas, mas eu a segui, porque precisava me trocar. Peguei a camisa e a calça em cima da cama e as vesti com agilidade. — Eu ouvi os rumores. Sei que seu primo passou a noite passada inteira dançando com outras mulheres no baile. Isso também era verdade. Eu escondi um sorriso ao perceber que não era raiva o que ela sentia, era ciúme. — Só porque você não estava lá, Lily. Ela fechou o rosto e foi em direção ao guarda-roupa, provavelmente tentando fugir do assunto. Como ainda estava atrasada, continuei a arrumar minha roupa de combate rapidamente enquanto falava. — Logan realmente se importa com você. Na verdade, acho que pode ser até mais que isso. Faz muito tempo desde que ele se envolveu com outra mulher, e eu tenho certeza de que isso é por sua causa. — Mas ontem à noite... — ela insistiu, com a voz baixa demonstrando insegurança. — Ele não estava procurando romance — eu a interrompi, falando com firmeza. — Não com aquelas mulheres, pelo menos. Lily suspirou e se virou para mim, bem no momento em que eu havia terminado de afivelar o cinto de couro em minha cintura. O metal preso na bainha pesou em meu corpo, e eu suspirei satisfeita. Olhei mais uma vez para o relógio, que marcava oito e meia em ponto. Bem na hora. Minha amiga me avaliou e assentiu em aprovação. — Não há nada mais sexy do que uma princesa guerreira — ela brincou e rapidamente começou a prender meu cabelo em uma trança. Quando terminou, me empurrou levemente em direção à porta. — Agora vá e chute o traseiro daquele guarda. — Obrigada. — Beijei-a na bochecha e a lancei um último olhar. — Fale com ele, está bem? Ela franziu a testa, mas notei um pequeno sorriso esperançoso ameaçando surgir em seus lábios. — Vou pensar. Satisfeita com sua resposta, saí do quarto e tomei meu caminho para o Salão de Armas, onde sabia que Ean me esperava. Quando eu completei treze anos, pedi uma viagem pela capital de presente de aniversário. Desde sempre eu fui interessada pela maneira como meu povo levava a vida, então tinha curiosidade de ver aquilo de perto. No entanto, eu nunca tive muitas oportunidades de sair do castelo e de toda a p******o que ele oferecia, uma vez que era a princesa herdeira do trono. Mas ninguém soube negar quando eu praticamente implorei para visitar a aldeia mais próxima do castelo, naquele dia. Era o que eu mais queria, e meus pais sabiam que, uma hora ou outra, eu teria que sair da bolha de p******o deles. Eles só não contavam que eu fosse ser atacada quando acontecesse. Enquanto caminhava pelo mercado da vila, distraída, um homem conseguiu quebrar a barreira de p******o que alguns soldados da Guarda Real haviam feito ao meu redor e tentou me s********r. Ele tinha uma faca e a apontava para minha garganta, ameaçando me m***r ali mesmo caso alguém se aproximasse. Eu sabia que não havia nada que os guardas pudessem fazer e que eu não poderia usar meus poderes na frente de todas aquelas pessoas. Mas também sabia que não queria ser levada. Então, eu recorri à moda antiga e lhe acertei uma cotovelada no rosto, que o fez me soltar mais pela surpresa do que pela dor — afinal, eu tinha treze anos e era uma garotinha magricela. Os guardas reais aproveitaram a chance para atacar, e eu aproveitei para correr e me manter a salvo. O homem foi preso e levado para apodrecer no calabouço. Mais tarde, naquele mesmo dia, quando minha mãe ficou sabendo do que acontecera, ela decidiu que estava na hora de eu saber me defender sozinha. Desde então, por algumas vezes na semana, meu tio Ean me passou a me ajudar a treinar combate corpo-a-corpo enquanto meu outro tio, Matt, me ajudava a controlar meus poderes de gelo. As aulas de magia eram sempre separadas das de luta, mas às vezes eles se juntavam contra mim para me forçar a conciliar meus poderes com meus movimentos. Aquela era uma das aulas de combates normais, apenas Ean e eu. Quando entrei no Salão de Armas, ele já me esperava com uma espada comum empunhada na mão direita. — Você está atrasada — disse ele. — Eu sei, e me desculpe — respondi. — Acabei dormindo demais... Seus lábios se ergueram em um sorriso pequeno, e eu soube que, daquela vez, ele deixaria meu descuido passar. — Ontem, o baile estava bem animado. Já possui algum favorito? Eu desviei os olhos, sentindo minhas bochechas queimarem porque eu tinha, sim, algo que poderia ser considerado um favorito. No entanto, neguei com a cabeça e comecei a andar ao redor do salão. — Ainda é muito cedo para dizer — falei. Parei em frente à grande parede que dava o nome ao salão, porque era totalmente preenchida por muitos tipos de armas: arcos e flechas, espadas, machados, martelos, foices, adagas, facas, manguais, escudos e, ainda, diversas armaduras. Cada uma possuía seu próprio suporte, para que seus metais reluzentes fossem exibidos como numa vitrine. Ao longo das outras paredes, bonecos estofados com palha estavam prontos para servirem de cobaias para o treino com todas aquelas lâminas. Contudo, a maioria delas não era sequer tocada há décadas. — Bom, não se apresse — Ean prosseguiu, com a voz calma... calma demais. Eu reconheci seu tom e meus sentidos se aguçaram imediatamente ao perceber o que ele pretendia. Pelo canto dos olhos, o vi dar um passo em minha direção, a espada ainda empunhada na mão direita. — Sempre há a possibilidade de estender a competição. — Acredito que não será necessário — respondi casualmente, mas meu corpo estava rígido conforme eu levava a mão lentamente à bainha lateral do cinto. Agarrei o punhal da espada e me preparei. — Planejei esses três meses com muito cuidado e sei que tudo vai dar certo. — Nem sempre as coisas saem como planejamos, Jen. Fui impedida de responder quando Ean atacou, esperando me pegar desprevenida. No entanto, eu era rápida e previra seu movimento. Girei o corpo e desembainhei a espada ao mesmo tempo, defendendo-me do golpe de meu tio. Ele sorriu, satisfeito, e atacou mais uma vez. Rapidamente, entramos em uma luta tão sincronizada que parecia uma dança. Mas eu estava na defensiva, presa entre Ean e a parede de armas, tentando me esquivar das lâminas de ambos os lados. Bastaria um golpe bem dado para que eu fosse empurrada em cima de uma adaga afiada bem atrás de mim — e, em uma luta real, aquela seria minha morte. Esperei mais alguns segundos por uma a******a para virar o jogo, mas Listern não estava facilitando. Começava a pensar em desistir e me render quando uma oportunidade brilhou para mim. Em um segundo, calculei minhas chances. Era uma manobra arriscada, mas eu tinha de tentar, ou jamais sairia daquela posição de xeque. Meu coração ribombava em meus ouvidos, minha respiração estava acelerada e eu sentia a adrenalina queimando em meu corpo. Sem querer desperdiçar minha chance, defendi-me do próximo golpe e rolei para o lado que Ean havia deixado momentaneamente exposto. No segundo seguinte, já estava de pé, mas ele, de algum modo, havia previsto meu movimento. Quando minha espada bateu contra a de meu tio e emitiu um ruído alto, eu percebi que aquela fora uma armadilha. E eu caíra direto na rede. Cambaleei para trás com a força de seu golpe, e não fui rápida o bastante para desviar do próximo. Minha espada caiu no chão e eu recuei muitos passos, mas Ean veio em minha direção. Eu sabia que ele não iria me m***r, mas eu com certeza perderia aquela luta — o que significaria, sim, a morte em uma situação verdadeira. Eu não podia deixar aquilo acontecer. Foi tudo muito rápido. Num instante, eu encarava minha falsa morte. No outro, meus instintos tomavam conta de meu corpo e todas as amarras impostas sobre meus poderes foram rompidas. Senti a magia fluir em meu sangue, ferver em meus ossos, percorrer meu corpo até se concentrar em minha mão direita. Em questão de segundos, uma nova espada havia se formado e eu já envolvia meus dedos em torno do punhal de gelo. Ergui-a sem pensar, e vi o rosto de Ean mudar de vitorioso para confuso, e então, chocado. Era a nova a******a de que eu precisava. Empurrei-o com a lâmina transparente e afiada e ataquei, desarmando-o. Meu tio cambaleou e, quando finalmente conseguiu se recuperar, era tarde demais. Minha espada pressionou sua garganta — sem, é claro, o ferir —, sinalizando o fim da luta. Eu sorri triunfante. Mas então meu rosto se fechou ao perceber o que eu havia feito. Usar magia nas aulas de combate físico com Ean não era exatamente p******o, mas ele me pedia para evitar, a fim de que eu aprendesse a me defender sem os poderes. Eu me afastei e abri a mão, deixando a lâmina de gelo derreter em meus dedos até escorrer pelo chão em forma de líquido e, em seguida, evaporar. — Desculpe, tio, eu não sei o que me deu... — comecei, passando a mão pelo cabelo trançado com nervosismo. — Sei que foi contra nossas regras, e fazer de novo seria... — Esplêndido — ele disse, com a voz um pouco rouca enquanto esfregava a garganta no local em que minha espada o tocara. Franzi a testa, confusa. Aquilo não era o que eu esperava. — Hein? — Ah, não me faça repetir. Você ouviu. — Ele fez um gesto com a mão e pegou sua espada do chão. —Em uma luta de verdade, não há regras. Não há honra. Não há nada que impeça seu oponente de cravar uma lâmina em seu peito, principalmente se você der essa oportunidade a ele. Você fez bem em se defender assim. Não é o ideal para o aprendizado, mas você já está se saindo muito bem na defesa e ainda melhor no ataque. Acredito que, quando a competição acabar, poderemos suspender as aulas e continuar apenas com os treinos duplos. Até porque, o seu tempo estará contado como rainha. Eu pisquei, extasiada demais para saber o que falar. “Treinos duplos” era como Ean chamava os momentos em que ele e seu marido se juntavam para me desafiar. Eram as melhores e mais raras aulas que eu recebia deles — e também as mais divertidas. Ouvi-lo dizer que elas poderiam se tornar parte de minha rotina me fez sorrir largamente. O soldado Listern embainhou sua espada e apontou com o queixo para os bonecos de treino nos fundos do salão. — Não fique tão animada. A competição ainda não acabou, certo? Ainda tenho algumas coisinhas para te ensinar. Tome sua posição. Eu grunhi baixinho e peguei minha espada de metal do chão, mas meu sorriso não desapareceu totalmente. A notícia era boa demais. Obedeci ao meu tio e me posicionei conforme aprendera nos últimos anos — corpo inclinado, pés alinhados, cotovelo na altura do peito, punho no alto e lâmina apontando para frente. — Muito bem. — Ele assentiu em aprovação. — Comece. Golpeei. Palha voou ao meu redor enquanto eu praticava os golpes que me foram ensinados por muito tempo, tentando aperfeiçoá-los de acordo com os conselhos de Ean. Passei horas empunhando a espada, concentrada demais para notar qualquer coisa senão o metal atingindo os bonecos brancos. Porém, fui obrigada a parar quando meus irmãos entraram correndo no salão de armas. Ean sinalizou para que eu desse uma pausa quando eles chegaram, e eu abaixei a espada com a respiração ofegante. O suor molhava meu rosto e minha camisa, meu cabelo estava uma bagunça desengonçada. — Por que vocês estão aqui? — perguntei aos dois Ds, ainda recuperando o fôlego. Pousei as mãos na cintura e bufei. Eu estava suja e um pouco nojenta. — Sabe que mamãe não gosta que interrompam minhas aulas. — Pois fique sabendo que foi ela mesma que nos mandou aqui — Derek se defendeu, cruzando os braços na frente do peito. Embainhei a espada e semicerrei os olhos em sua direção. Eu podia ser educada e contida quando a ocasião pedia, mas estar perto de meus irmãos parecia sempre despertar meus nervos. — E por que ela faria isso? — Você não sabe olhar no relógio? — Damon perguntou, sarcasticamente. — Já é hora do almoço, e os convidados estão todos esperando pela princesa deles. Isso fez com que eu me desarmasse, surpresa. Corri os olhos pelas paredes, mas não havia relógios no cômodo. — Que horas são? — perguntei, virando-me novamente para os gêmeos. Derek imediatamente pegou um relógio no bolso da calça social, que era idêntica a de seu irmão — assim como a camisa, os sapatos, o blazer e, bem, todas as suas feições. Honestamente, eu mesma não fazia ideia de como conseguia distingui-los. Se não os conhecesse bem o suficiente para notar os trejeitos e manias diferentes, os confundiria o tempo todo. — Exatamente meio dia e vinte e sete — ele disse, metodicamente. Xinguei alto e em seguida me repreendi mentalmente. Uma princesa não fala palavrões. — Desculpe, tio — falei para Ean, já indo em direção à porta. — Nós podemos terminar na próxima aula, sim? Preciso ir — É, nós também. Não era para estarmos aqui — Damon resmungou e fechou a cara. — Eu tenho um encontro agora, e você está me atrasando. Rolei os olhos e me despedi de meu tio. Como disse antes, Derek e Damon eram fisicamente iguais, mas suas personalidades não podiam ser mais diferentes: enquanto o primeiro se empenhava para conquistar o coração da filha do visconde, Mia Lockend, o segundo se esforçava para bater seu recorde de números de encontros com garotas desconhecidas toda semana. Enquanto seguia meu caminho para o Salão de Refeições, de repente me tornei ciente de minha própria aparência. Eu estava muito suja — e um tanto nojenta. Palha grudava na sola de minhas botas e nos pontos mais suados de minha camisa, que estava bastante amassada. A calça de couro pregava em minhas pernas, me incomodando cada vez que dava um passo. — Preciso me lavar — murmurei comigo mesma e rumei ao quarto. *** Após quebrar meu próprio recorde de banho mais rápido do século — o que nunca achei que fosse ser possível após a manhã de hoje —, corri para o salão e entrei como se nada estivesse acontecendo, tomando meu lugar ao lado de meu pai na mesa da família real. Por sorte, ninguém tinha se servido ainda, mas isso mudou quando entrei. Depois de todos se curvarem brevemente com minha chegada — menos o rei e a rainha, é claro —, uma fila formou-se perto das grandes panelas fumegantes nos cantos do local. Aparentemente, eu demorara a ponto de deixar os convidados famintos. O salão era relativamente largo e sempre contara com uma grande mesa circular em seu centro, que era rodeada por outras pequenas bancadas retangulares, onde ficava o buffet. Hoje, porém, o aposento estava um pouco diferente: ao invés de apenas uma mesa no centro, havia três. A maior, ainda ocupada por mim e minha família, era ladeada por outras duas ligeiramente menores, onde os competidores puderam se dividir para sentar. A disposição da comida e da bebida permanecia a mesma. — Você está atrasada novamente — uma voz disse perto de mim em tom brincalhão, quando finalmente me sentei e passei a esperar. De jeito nenhum iria encarar aquela fila agora. Eu me virei e vi Ean sorrindo para mim. Espantada, balbuciei: — Tio... Mas... Como chegou aqui antes de mim? — Fiz uma pausa e examinei suas roupas. — Ah, sim. Ainda está vestido como antes. Ele segurou uma risada e balançou a cabeça. — Não sou eu o centro das atenções aqui, querida. Não preciso brilhar como um diamante — ele disse. — Além disso, a aula não tem sobre mim o mesmo impacto físico que tem sobre você; resumindo, estou exatamente do mesmo jeito que estava quando acordei. — Quanta inveja — murmurei, suspirando e alisando a saia do vestido creme. Às vezes era um pouco difícil seguir a rotina da realeza. — Vamos, a fila diminuiu. Vamos pegar algo para comer — Ean me chamou, acenando com a cabeça para as bancadas do buffet. Ele piscou e sorriu. — Deixo você entrar na minha frente; afinal, você merece, depois de hoje. Após o almoço, decidi começar minha rodada de encontros da primeira parte da competição. Optei por começar com alguém que cogitei eliminar durante o baile, afinal, possuía pouco tempo e precisava fazer aquilo funcionar com o máximo de objetividade possível — mesmo que meu coração estivesse em jogo. Então, uma hora depois do fim do horário reservado para o almoço, bati à porta de um dos competidores mais desinteressantes até aquele momento: Charles Decker. A porta se abriu sem muita demora, e uma figura baixa apareceu à minha frente. Eu sorri quando um par bonito de olhos verdes arregalados e rodeados por óculos me encararam. A boca de Charles se abriu em espanto e ele se curvou desajeitadamente. Ele pareceu ficar instantaneamente nervoso com minha presença. — P-princesa... Bom dia. Quero dizer, boa tarde... — Boa tarde, senhor Decker. Estive pensando se você gostaria de dar uma volta comigo. Posso lhe mostrar a propriedade, se quiser... Seus olhos se iluminaram e seu nervosismo sumiu por um instante. Pude perceber a curiosidade brilhar em suas feições. — Ah, eu adoraria! Esse lugar é tão grande... Quase me perco por aqui. Eu gostaria de... — Imediatamente, ele se interrompeu, enrubesceu e baixou o olhar, mas não o deixei recuar. — Sim? — instiguei-o a continuar. — Tem algum lugar em particular que gostaria de ver? Charles piscou várias vezes e ajeitou os óculos, que haviam escorregado para a ponta do nariz. Disse com a voz baixa: — Perdoe-me, alteza, eu não deveria saber disso, mas... Bem, é que ontem, voltando do baile, eu me perdi e acabei achando, por acidente, uma sala diferente das outras. Sabe, uma cheia de quadros e pinturas, estátuas... — Ah! O salão das artes. — Franzi o nariz e desviei o olhar, pensativa. Eu não gostava muito daquele local, sobretudo porque era cheio de poeira e entrar lá sempre me fazia espirrar, não importava o quanto as criadas tentassem mantê-lo limpo. Apesar disso, sorri e acenei. — É claro que podemos ir até lá, se é o que deseja. Charles assentiu vigorosamente e sorriu, empolgado, mas ainda um tanto tímido. Eu tinha que admitir, ele ficava bonito quando sorria. Sua pele pálida contrastava com o verde vivo de seus olhos e o amarelo de seus cabelos, e seu corpo era magro e baixo. Se fosse um pouco mais confiante, poderia ser lindo. Eu sinalizei para que me acompanhasse e o guiei pelos corredores. Charles se mantinha propositalmente afastado de mim, algo que me deixava um tanto desconfortável. Contudo, não disse nada. — Então, senhor Decker — comecei. — Entende muito de arte? — Ah, não, alteza. Eu não sei quase nada. Esperei que continuasse, mas ele não disse mais nada. Falei, afinal: — Entendo. Posso perguntar, então, o que o atrai nas pinturas e esculturas do salão das artes? Decker pensou por um instante. — As cores — falou simplesmente. Tive v*****e de rir e de chorar ao mesmo tempo. No entanto, não respondi e ficamos em silêncio até chegarmos ao salão, que não era exatamente longe do andar dos competidores. — Como não se perde aqui, alteza? — Charles perguntou de repente, parecendo admirado, quando enfim chegamos ao destino. Sorri singelamente. — Bem, eu moro aqui há vinte anos. Tive bastante tempo para me acostumar. O senhor Decker enrubesceu como se sentisse vergonha por perguntar algo que, para alguns, poderia ser considerada uma conclusão óbvia. Tive v*****e de me bater por ter dado uma resposta rude, mas ele não deu espaço para que pudesse pedir perdão. — Ah — respondeu apenas. Desconfortável, abri as portas de madeira pesada e dei espaço para que entrasse antes, e ele o fez sem titubear, parecendo estar sendo guiado por uma força externa — deslumbre, talvez. Conforme Charles havia descrito, o salão das artes era repleto de quadros cobrindo as paredes, do chão ao teto. Na verdade, era mais parecido com um corredor, extenso e estreito, do que um salão em si. Em alguns pontos, pequenos palanques de pedra ostentavam estátuas e esculturas de mármore e cobre. Todo o aposento era iluminado por candelabros, cuja luz fazia as obras reluzirem. — Bem vindo ao salão das artes, senhor Decker — anunciei enfaticamente, mas Charles não pareceu me ouvir. Ele estava concentrado em um quadro particular de muitos séculos atrás: um retrato perfeito do famoso monarca que havia instituído pela primeira vez a tradição da competição no reino. Franzi as sobrancelhas e fui até ele, mentalmente reprovando sua escolha de objeto de análise. Apesar de ser famoso, aquele não fora um governante muito querido pelo povo. Seu sucessor — que também era seu primogênito —, inclusive, fora assassinado em uma revolta quando o reino percebeu que o príncipe estava fadado a seguir os mesmos passos do pai. Após isso, o filho mais novo do antigo rei assumiu o trono e acalentou a população com sua bondade e carisma. — Ah, este foi um rei tirano, há muito tempo — expliquei, esperando que, desse modo, a atenção do garoto fosse se voltar a mim. — Ele era particularmente rigoroso nas leis e por muitas vezes deixou a população passando fome, enquanto usava seu ouro para financiar suas excentricidades. Charles m*l prestava atenção ao que eu dizia. Olhava para o quadro pintado com uma admiração crua que me surpreendeu e, ao mesmo tempo, me deixou estarrecida. As cores, ele dissera. As cores lhe chamavam a atenção e, no entanto, eu duvidava de que receberia um olhar parecido com aquele, mesmo que eu me vestisse com todas as cores do arco-íris e decidisse desfilar pelo reino. Imediatamente me repreendi por ter tal pensamento. Rainhas e princesas não deveriam ter ciúme de seus companheiros, pois eles eram homens independentes que faziam o que bem entendessem. Além disso, Charles m*l era um conhecido. Era bobagem pensar desse modo. E, ainda assim, quando ele se moveu para a próxima obra — uma estatueta de cobre de um cavalo empinado, que estava particularmente coberta de poeira naquele dia —, eu o segui e contei a história daquela invenção também. Mais uma vez, fui ignorada e a arte recebeu toda a sua atenção. Só me serviu para ter uma crise de espirros irritante. Após muitos minutos — que pareceram horas — de tentativa, comecei a imaginar que, talvez, ele simplesmente não quisesse conversar. Se fosse o caso, quem era eu para contradizer suas vontades? Eu me irritei. Havia enfrentado uma crise alérgica por ele e recebia aquilo em troca. De que servia ser bonito e interessado por arte se agia como um i****a na presença de uma dama? Com um suspiro, virei-me e me apoiei num ponto vazio da parede, assistindo Charles andar por aí enquanto tentava prestar atenção a tudo ao seu redor. A minha v*****e era de dar-lhe as costas e sair andando, mas não o fiz. Aquela era, afinal, minha competição; portanto, me forcei a ficar até o fim do encontro, ainda que estivesse me sentindo um tanto... infeliz.
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