Lembranças do que deviam ser os melhores anos da minha vida

1713 Words
              Eu andava de um lado para o outro dentro do meu quarto tentando encontrar uma forma de tornar aquilo mais fácil, mas a verdade era que o primeiro dia de aulas nunca era fácil, não importava onde fosse, e agora eu estava em uma cidade enorme, se comparado com onde eu estava acostumada. Cresci no interior, vivi até o fim do período escolar passado em uma fazenda de gado no interior de Goiás, em um daqueles fins de mundo que ninguém quer ouvir falar, e agora, estou aqui em São Paulo.                Meus pais são divorciados desde que eu me lembro... Papai vive em uma fazenda, mas eu moro com a mamãe desde que eles se separaram, e não me lembro de passar mais que dois ou três dias inteiros com o meu pai desde então, mas morávamos na mesma cidade, então eu o via com frequência, mas esse ano, bem, mamãe decidiu que meu irmão precisava de uma escola melhor – na verdade, ele reprovou, duas vezes, e ela nos trouxe para cá porque a única coisa que ele faz razoavelmente bem, é jogar futebol e se meter em encrencas, mas não tem muito futuro no fim do mundo: lá até as encrencas são limitadas.                Vou para o segundo ano do ensino médio, e o meu irmão, que tem dois anos a mais do que eu e absolutamente nada dentro da cabeça, seremos colegas de classe, isso não me anima nem um pouco, porque o Henrique sempre foi muito, muito sociável, e eu, a esquisita, então esse lance de colegas só vai acentuar as coisas. - Vai se atrasar – Henrique grita – tem certeza que não quer carona? - Absoluta – eu fazia qualquer coisa para não andar com ele naquela moto i****a. - Sabe que eu vou devagar com você – ele gritou. - Sem problemas – respondi descendo as escadas – eu pego ônibus. - Você quem sabe – ele respondeu – mas estou com o capacete extra, caso mude de ideia.                Eu sabia que não mudaria de ideia, ele tinha ganhado a moto da mamãe assim que fez dezoito anos, e se achava o rei da escola por isso. Quando por fim o ônibus parou perto da escola, caminhei apressada com a mochila nas costas e fones nos ouvidos, rumo à aquilo que a minha mãe chamou de “os melhores anos da sua vida”, mas que para mim, só poderiam sem chamados de “os longos e aparentemente intermináveis anos de tortura”.                O ensino médio era muito c***l, ainda mais na cidade grande, mas uma pequena parte de mim agradecia por estar livre de fazê-lo lá no interior, principalmente depois do Baile de Formatura do ano passado, porque a Mariana Mendes beijou o Miguel Motta na minha frente, e eu achei que éramos amigas, e gostava do Miguel desde que eu me lembro, e bem, não é como se houvessem diversas opções, aquele era realmente um lugar pequeno, e ela sabia que eu gostava dele, então foi um momento delicado.                Ao chegar na escola nova, com um monte de gente nova, corredores grandes e cheios, pude ver uma pequena vantagem em toda aquela grande merda: no meio de tanta gente eu seria totalmente invisível, era só o meu irmão me esquecer e eu simplesmente não seria nem mesmo notada, nem por um segundo, então era relativamente fácil... Até eu enxergar o Lucas.                O Lucas era “o cara” da escola: ele tinha um contrato, já era jogador profissional desde os quinze anos, e com isso, perdia muitas aulas. Acho que todas as garotas da escola, e talvez todas as garotas da cidade, desejassem pelo menos uma vez por dia, estarem com o Lucas Lemos. Goleiro das categorias de base de um dos maiores clubes de futebol do país.                Eu tentava ignorar a existência daquele garoto que parecia iluminado: tudo nele era perfeito demais para que as pessoas não notassem: pele morena clara, olhos cor de mel, abdômen perfeitamente definido, um sorriso lindo... Ele tinha os cabelos trançados, um perfume incrível e sim, ele sabia que ele era tudo de bom e mais um pouco, porque a atitude dele era a de quem tinha plena consciência de quem era, sempre lindo e pronto para tudo e seguro de si, até aquela estranha noite de chuva...                Tinha começado a trabalhar em um café perto da escola, das quatro da tarde, às dez da noite, de segunda à sexta-feira e nos sábados, pegava um ou dois turnos para cobrir meus colegas, trabalhava por que queria ficar fora de casa, longe da minha mãe e dos namorados idiotas dela, estava no fim do meu turno na noite chuvosa de uma sexta-feira quando ele chegou. E sinceramente, ele parecia outra pessoa: estava péssimo, parecia não ter dormido direito por dias, parecia ter chorado... E foi nesse dia que ele tomou conhecimento da minha humilde existência, quando ele pediu um café e eu desenhei um rostinho feliz na espuma, tentando melhorar o dia dele, que parecia realmente horrível.                Ele voltou à cafeteria nos dias que se seguiram, quase todas as noites, quase sempre no fim do meu turno, e depois de uma semana, nós dois conversamos pela primeira vez: - Obrigada pela carinha feliz – ele disse assim que me aproximei com o pedido dele – melhorou o meu dia. - Não foi nada – respondo sem graça – mas se melhorou, fico feliz de saber, você parecia péssimo... - E eu estava – ele riu sem jeito – eu ainda estou, pra falar a verdade... - Uhm – eu o encarei – hoje está enganando bem. - Obrigada – ele riu – será que podemos conversar? Tipo, sei lá, depois do seu turno? - Ah – eu estava totalmente incrédula – podemos sim, se você quiser... - Que horas você sai hoje? – ele pergunta. - Em uns quinze minutos – respondo. - Perfeito – ele sorri – eu vou esperar por você.                E ele me esperou. Saímos da cafeteria e passeamos pelo parque ali perto, sentamos em um dos bancos na frente da escola: - Eu estudo ali – ele disse num suspiro. - Eu também – respondo. - Nunca vi você – ele me encara – tenho certeza de que eu me lembraria. - Ou não – eu respondo rindo – mas então? Porque estava péssimo naquele dia? - Ah, você não quer ouvir meu drama pessoal, pobre menino rico e etc – ele debochou. - Você não faz ideia do quanto eu quero – respondo – sabe que eu adoro um drama? - Tá de brincadeira? – ele ria. - Na verdade sim, detesto drama, mas está escrito na sua testa que se não falar sobre isso vai acabar sufocando – peguei a mão dele – bota pra fora, prometo não julgar. - Minha vida é uma droga – ele diz muito sério – sei que não deveria ser, que eu tenho um bom contrato, que tenho muitas possibilidades, metade dos garotos do país queriam estar onde eu estou – ele deu ombros – mas eu não escolhi isso para mim. - Uhm, compreendo. E quem escolheu? – pergunto. - Minha mãe – ele responde – mãe solteira, filho único, ela sempre fez o que estava ao meu alcance, mas acho que ela nunca quis saber o que eu realmente queria para a minha vida. - Isso é bem normal – eu o encarei – os pais sempre acham que sabem o que queremos. - Mas agora está ficando pior – ele suspira – ela viaja, quer contratos internacionais, programa cada minuto da minha agenda e não me deixa nem respirar, acho que só me vejo livre dela à noite quando ela vai encontrar com o namorado. - Que merda – eu disse, e logo tentei anima-lo – mas em breve você faz dezoito anos... - Uma vantagem - ele sorriu aquele sorriso maravilhoso dele – mas e você? - Trabalho para fugir da minha mãe – eu respondo rindo. - Boa estratégia – ele sorriu e pegou minha mão – adorei conversar com você, obrigada por me ouvir, me fez muito bem. - Que é isso – respondo – quando precisar, meus ouvidos estão disponíveis. - Bom saber – ele tira o telefone celular do bolso – coloca o seu número ai – ele diz entregando o aparelho. - Claro – eu colocaria o numero e ele não ligaria, não chamaria... Eu sabia como funcionava. - Perfeito – ele sorri – agora eu chego em casa e chamo você... Posso te oferecer uma carona? - Ah, não se incomoda – eu respondo. - Eu insisto – ele diz. - Não vou entrar em um carro com um estranho menor de idade e sem habilitação – eu respondo rindo. - Não vai mesmo – ele ri – meu motorista é que dirige. - Ah – eu fiquei sem jeito – nesse caso... - Perfeito – ele pegou-me pela mão me levando em direção ao carro – é só dar o endereço.                Lucas e o seu motorista me deixaram na porta de casa e ele beijou minha mão antes que eu saísse do carro. Metade de mim sabia que aquilo era impossível e que muito provavelmente ele nunca me ligaria e desapareceria e a outra metade, queria que na noite seguinte ele estivesse no café, no fim do meu turno...                A verdade é que ele tinha ligado, e na noite seguinte, ele estava no café no fim do meu turno, e assim foi por muitas noites e muitos turnos, e em duas semanas desse nosso primeiro encontro depois do meu turno, nós dois estávamos namorando e eu, a garota invisível, de repente era um dos assuntos mais comentados da escola inteira.                Quando acordei, no meio da noite, na minha antiga cama na casa do meu pai, depois de sonhar com essa parte da minha vida, passando em minha mente como um filme que é acelerado, algumas vezes, somente flashes do que tinha acontecido, e minha mente completava com maestria cada uma das lacunas, para que eu conseguisse lembrar perfeitamente de cada um dos meus passos, e eu sabia bem qual que era o ciclo, eu sonharia com tudo, por várias noites, até começarem os meus pesadelos...  
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