PRÓLOGO
SIENNA
O sol da manhã em Gold Coast entra pela janela da cozinha como um convite irrecusável para a vida. É um daqueles dias em que o céu é tão azul que parece de mentira, e o cheiro de sal no ar se mistura com o aroma doce das panquecas que a mamãe fez.
Estou sentada à mesa, sentindo o calor do verão australiano mesmo antes das oito da manhã, tentando ignorar a nuvem de tensão pairando sobre o açúcar mascavo e o xarope de bordo.
— Mais uma, querida? — pergunta a mamãe, segurando a espátula como se fosse uma arma.
Seus olhos, da mesma cor do mar que eu tanto amo, estão cheios de uma preocupação que eu já conheço de cor.
— Tá ótimo, mãe. Já tô satisfeita. Tá uma delícia, como sempre. — Dou minha risada mais fácil, tentando aliviar o clima.
Do outro lado da mesa, o papai está escondido atrás do jornal. Eu sei que ele não está lendo de verdade. Ele só está se escondendo.
A mamãe suspira, aquele suspiro longo e profundo que significa “minha filha está arruinando a vida e eu não posso fazer nada para impedir”. Ela se senta, colocando as mãos sobre a toalha de mesa azul-clara.
— Sienna, querida, nós precisamos falar sério sobre aquele assunto.
Eu já sabia que isso ia acontecer.
É o nosso café da manhã de domingo, tradição sagrada na família Hope. Panquecas, frutas, suco de laranja fresco e, ultimamente, a Grande Discussão Sobre o Futuro de Sienna.
Eu me preparo mentalmente, endireitando a postura na cadeira. Se tem uma coisa que aprendi com meus dezoito anos nesse planeta é que, quando você é descrita como “boa demais para esse mundo” desde que se entende por gente, as pessoas esperam que você tome decisões… bem, boas.
Do tipo seguro. Do tipo entediante.
— Eu estou falando sério, mãe — digo, pegando um pedaço de panqueca com os dedos e mergulhando no mel. — É a coisa mais séria que eu já pensei na minha vida.
— Faculdade é sério, Sienna. Psicologia é uma carreira linda, estável. Você tem uma vaga garantida, suas notas são maravilhosas… — a voz dela quase quebra.
Eu olho para ela, sentindo aquele aperto no peito que sempre dá quando sei que estou decepcionando as pessoas que mais amo. Mas o chamado é mais forte do que eu.
— Eu sei, mãe. E um dia eu vou, juro. Mas agora? Agora não é a hora. — Inspiro fundo, soltando o ar dramaticamente.
É o meu momento. Minha fala ensaiada no banheiro.
— Eu não quero estudar mentes, quero curar corações.
Falou e disse, Sienna.
A frase soa exatamente como eu queria: doce, profunda e levemente dramática. O tipo de coisa que você lê em um cartão de aniversário espiritual.
O efeito é instantâneo.
A mamãe fecha os olhos, como se estivesse com dor física. Do outro lado do jornal, ouço um ruído abafado. Aposto que o papai acabou de puxar um fio de cabelo. É o hobby novo dele, aparentemente.
O jornal desce lentamente. Lá está ele, meu pai, com seu rosto sério e seu coração mole.
— Curar corações, Sienna? — ele repete, a voz cansada. — E como exatamente você planeja fazer isso?
— É isso que eu tô tentando explicar! — digo, minhas mãos gesticulando animadamente, quase derrubando meu copo de suco (sim, sou um desastre).
— A igreja está organizando essa expedição missionária. Seis meses a um ano no Brasil. Vamos ajudar em comunidades carentes, ensinar inglês, brincar com crianças, ajudar a construir um centro comunitário…
— No Brasil? — minha mãe interrompe, os olhos arregalados. — Sienna, isso é do outro lado do mundo! É um país… grande. Com problemas. Muitos problemas e pessoas que sambam o dia inteiro de biquínis.
— Exatamente! — eu digo, como se ela tivesse acabado de dar o argumento perfeito. — Eles precisam de ajuda. E eu preciso… bem, eu preciso de algo real. Algo que não seja só livros, salas de aula e provas. Quero fazer a diferença, de verdade. Quero sentir que estou vivendo, não só seguindo um roteiro.
— O roteiro é bom, filha! — a voz do meu pai sobe um tom. — O roteiro te dá um diploma, um emprego, um futuro!
— Eu vou ter um futuro, papai! Só que vai ser um futuro que eu construí, não um que vocês planejaram pra mim. — Minha voz é mais suave agora.
Eu os amo tanto.
É por isso que é tão difícil.
— Olha, é só um ano sabático. Um. Só um ano. Não é para sempre. E eu vou voltar cheia de histórias, mais madura, e aí sim, quem sabe, a faculdade.
— Conhecer o mundo, filha, não é o mesmo que sobreviver nele. — minha mãe fala, repetindo a frase que ela deve ter ensaiado na frente do espelho.
Ela diz isso com uma gravidade que quase me faz rir, mas eu me contenho. É a sua fala dramática.
— Eu vou sobreviver, mãe. Vou ter uma equipe, um líder de missão, a igreja lá… vai ser seguro. E eu não sou uma criança.
Eles se olham. É aquele olhar de casal que se comunica sem palavras. O olhar que diz “nossa filha é uma idealista lunática e nós falhamos como pais”. Eu os observo, meu coração batendo forte.
Eu já me inscrevi. Eu já fui aceita. Eles ainda não sabem disso. Essa parte da conversa eu vou guardar para a sobremesa.
Para mudar de assunto — uma tática clássica da Sienna Hope — pego meu celular sobre a mesa.
— Olha, eu já estou até me preparando. — Abro o aplicativo de tradução. — Estou aprendendo português. É uma língua linda, parece uma música.
Eles ficam em silêncio, me observando. Eu digito rapidamente e leio a primeira frase que aparece na tela, tentando imitar a entonação que ouvi no YouTube.
— “Oi, eu sou de igreja." — Minha mãe pisca. Meu pai franze a testa.
— O que isso quer dizer? — ele pergunta.
— Quer dizer “Hello, I am from the church”! — explico, animada. — Para me apresentar. Para as pessoas saberem que sou uma missionária, uma pessoa legal, confiável e claro, inteligente.
— Aham — minha mãe resmunga, levando sua xícara de chá aos lábios.
Rolo a tela, procurando por frases mais úteis. Ah, essa é boa. Uma que vai mostrar a eles a profundidade do meu compromisso humanitário. Leio em voz alta, com o coração transbordando de boas intenções, demonstrando meus conhecimentos linguísticos:
— “Eu quero fazer amor... com o próximo.”
O silêncio que se segue é absoluto, pesado, quebrado apenas pelo som distante de uma gaivota lá fora. A xícara de chá da minha mãe para no ar. Os olhos do meu pai estão do tamanho das panquecas. Ele parece ter engasgado com o próprio ar.
— O… o que você acabou de dizer, Sienna? — minha mãe sussurra, pálida.
— “I want to do good for others.” — traduzo, orgulhosa. — É lindo, né? Tipo, eu quero fazer o bem, espalhar amor, você sabe… amor ao próximo. É basicamente o lema da missão.
Meu pai se levanta tão rápido que a cadeira quase cai para trás.
— FILHA! — ele grita, a voz estridente. — Você NÃO pode dizer isso! NUNCA!
Eu pisco, confusa.
— Por que não? É sobre caridade!
— Não, Sienna! — minha mãe enterra o rosto nas mãos. Suas orelhas estão vermelhas. — “Fazer amor”… quer dizer… outra coisa.
— Outra coisa? Que outra coisa?
— É… é… — meu pai parece estar tendo um derrame. Ele se vira e encara a parede, os ombros tensos.
Fico olhando para eles, e então, de repente, a ficha cai. A memória de uma aula de educação s****l, a piada de um colega brasileiro de escola… “fazer amor”.
Oh. Oh, não.
Um ruído escapa da minha boca. Um pequeno “oh” de puro horror. E então, não consigo evitar. Um riso começa a borbulhar na minha garganta, um riso de constrangimento, de absurdo, de puro caos linguístico.
— Oh, meu Deus! — grito entre risadas, segurando a barriga. — Não! O tradutor… o tradutor me traiu!
Meus pais me olham. A princípio, ainda estão chocados. Mas então, o canto da boca da minha mãe começa a tremer. Meu pai, ainda de costas, solta um som que é meio grunhido, meio risada abafada. A tensão se quebra.
— Você… você vai ser comida viva no Brasil, Sienna Hope — ele diz, balançando a cabeça, mas há um brilho nos seus olhos agora.
O brilho da rendição.
— Vou ter cuidado com o tradutor, papai. Prometo — digo, ainda rindo, enxugando uma lágrima do canto do olho.
O mar não responde lá fora, mas uma gaivota pousa no parapeito perto de mim, tombando a cabeça como se dissesse: “Você vai precisar, garota. Você vai precisar”.
E eu só consigo rir, o coração cheio de uma fé cega, um otimismo inabalável e a leve e aterradora suspeita de que minha vida está prestes a virar de cabeça para baixo.
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