Sienna
Eu não consigo tirar aquele dia da cabeça. Os tiros ecoando, as crianças chorando no chão, o cheiro de pólvora misturado com talco de bebê. E principalmente o corpo do Coroa colado no meu, braço forte me protegendo, voz baixa no meu ouvido dizendo “fica quieta, Barbie”.
Eu senti medo, sim.
Medo demais.
Mas também senti… segura. Segura de um jeito que nunca senti na vida. Como se nada pudesse me atingir enquanto ele estivesse ali.
E o abraço na porta de casa depois. Meu Deus. Eu me joguei nele sem pensar, só querendo agradecer, só querendo sentir que tava viva. E ele me abraçou de volta. Forte. Como se eu fosse algo precioso. Eu senti o coração dele batendo rápido contra o meu, a mão dele na minha cintura quase queimando. Por um segundo achei que ia rolar o beijo. A boca dele tão perto, o olhar pesado… mas ele parou.
Sempre para. E isso me deixa louca.
No dia seguinte eu tava no quarto, tentando ler a Bíblia, mas as letras dançavam. Minha cabeça tava em outro lugar.
Aí o celular tocou.
Mamãe em chamada de vídeo.
Atendi já com o coração apertado.
— Sienna, meu amor! — ela apareceu na tela, olhos vermelhos, cara de quem chorou a noite toda. — Eu tive um sonho r**m, filha. Sonhei que você tava correndo num lugar escuro, com tiros, e um homem grande te segurava… mas tinha sangue. Muito sangue. Eu acordei suada, rezando. Tô com tanto medo pela tua vida!
Eu engoli em seco. Como ela sabe? Como uma mãe do outro lado do mundo sente essas coisas?
— Mãe… calma. Foi só um sonho. Eu tô bem, juro.
— Não tá não! Eu vejo nos teus olhos, Sienna. Você tá diferente. Mais magra, mais cansada. E esse homem… aquele que apareceu no vídeo… ele é perigoso. Eu sinto. Volta pra casa, por favor. Seu pai já olhou passagem. Amanhã tem voo.
Eu senti as lágrimas subindo.
— Mãe, eu amo vocês. Mas eu não posso ir agora. A missão…
— Missão coisa nenhuma! Isso aí não é missão, é loucura! — ela quase gritou. Meu pai apareceu do lado, sério.
— Filha, escuta tua mãe. A gente te ama. Volta.
Eu chorei. Chorei baixinho, limpando o nariz na manga.
— Eu prometo que me cuido. Prometo ligar todo dia. Mas eu fico. Ainda não acabou aqui.
Desliguei. Fiquei olhando pro celular preto, soluço preso na garganta.
A porta abriu devagar. Coroa entrou. Sem bater, como sempre. Camisa aberta, tatuagens à mostra, cara séria. Ele tava encostado na parede do corredor, ouvindo tudo. Eu sei que tava.
— Teus pais têm razão, Barbie — falou baixo, voz rouca. — As portas tão abertas. Se tu quiser ir embora, eu te levo no aeroporto hoje mesmo. Passagem, tudo. Sem briga.
Eu levantei da cama, limpei o rosto.
— Eu não quero ir embora.
Ele me olhou. Muito tempo.
Aí deu um passo pra frente, mão grande subindo devagar até meu cabelo. Dedos calejados acariciando as mechas loiras, enrolando uma no dedo. Os olhos azuis dele brilharam diferente.
Não era o olhar frio de sempre.
Era… mole.
Quase vulnerável.
— Tu é teimosa pra c*****o, loira — murmurou.
Eu ri baixinho, mesmo chorando.
— Sou.
Ele ficou ali mais um segundo, acariciando meu cabelo como se fosse algo sagrado.
Aí respirou fundo.
— Hoje eu tenho o dia corrido. Tem baile funk à noite, eu que organizo tudo: som, segurança, bebida e as drogas... Provavelmente a gente não vai se vê muito. Mas se precisar de mim, manda mensagem.
Eu assenti.
— Eu… eu queria ver o pastor Carlos hoje. Conversar sério com ele.
Ele arqueou a sobrancelha, mas não discutiu.
— Tá bom. Eu te levo de moto.
Meia hora depois eu tava atrás dele na Harley, braços na cintura, vento batendo no rosto. Ele me deixou na porta da igreja.
— Qualquer coisa, me liga. Eu venho te buscar, pra ir pra casa.
— Tá bom.
Ele ficou olhando enquanto eu entrava. Aí acelerou e sumiu ladeira acima, pro QG dele organizar o baile.
Dentro da igreja, o pastor Carlos já tava me esperando. Sala dos fundos, só nós dois. Saul apareceu querendo entrar, mas o pai dele barrou.
— Não, filho. Essa conversa é particular. Nem tudo você deve participar.
Saul olhou pra mim um segundo, depois assentiu e saiu.
Eu respirei aliviada.
Pastor Carlos sentou na cadeira velha, Bíblia no colo, cara séria.
— Filha… eu pedi essa conversa porque tô preocupado. Muito preocupado. Eu sinto trevas nesse morro. Trevas fortes. E principalmente na presença daquele homem… o Coroa. Ele é perigo ambulante. Eu vejo nos olhos dele. Você precisa sair daqui. Descer pro asfalto, ficar na casa da missão central, continuar o trabalho de lá. Aqui você tá correndo risco de vida… e de alma.
Eu respirei fundo.
Olhei pras minhas mãos apoiadas nas minhas pernas.
— Pastor… eu respeito o senhor. Respeito muito. Mas é por isso mesmo que eu quero ficar. Eu sinto que o Coroa precisa muito de mim. Ele é impenetrável por enquanto, sim. Ele acha que não tem salvação, que Deus não sobe morro. Mas eu sei, eu sinto no fundo do coração que o coração daquele homem é bom. Cheio de um amor puro. Ele cuida das crianças, das famílias, protege todo mundo aqui. Ele só… tá perdido. E talvez Deus tenha me colocado no caminho dele pra ajudar a encontrar a luz.
O pastor ficou boquiaberto. Olhos arregalados, boca aberta. Ele juntou as mãos, como quem ora em silêncio.
— Minha filha… você tá falando de salvar a alma do d***o em pessoa. Esse homem mata, trafica, manda no morro com arma na mão. Você tá se iludindo. Ele vai te arrastar pras trevas junto com ele.
— Talvez — respondi, voz firme. — Mas eu não vou embora sem tentar. Eu sinto que é pra isso que eu vim.
Ele balançou a cabeça, olhos marejados.
— Que Deus te proteja, filha. Porque você vai precisar.
A conversa acabou aí. Oramos juntos. Depois eu levantei, abracei ele, agradeci. Saí da sala com o peito mais leve, mas ao mesmo tempo pesado. Decisão tomada. Eu fico. Vou até o fim.
Na porta da igreja, quem tava encostado na parede? Saul.
Ele veio até mim, voz baixa, olhar preocupado.
— Se você ficar… vai se perder. Eu sinto isso, Sienna. Aquele homem… ele é escuridão pura. Ele vai te engolir.
Eu olhei pra ele. Olhei firme.
— Talvez. Mas eu não sou influenciável, Saul. Quando eu ponho algo na cabeça, eu vou até o fim. E eu sinto que meu lugar é aqui. Agora.
Ele ficou quieto.
Depois assentiu devagar, triste.
— Então que Deus te guarde.
Eu sorri.
— Ele já tá guardando.
Saí da igreja, peguei o celular, mandei mensagem pro Coroa.
📲 Eu: Terminei. Pode vir me buscar por favor?
Resposta veio rápido.
📲 Coroa: Tô aí em 5min.
Eu fiquei na porta esperando, vento batendo no cabelo, coração batendo forte.
Eu escolhi.
Escolhi ficar.
Escolhi o fogo.
E que Deus me ajude, porque agora não tem mais volta.
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