A Guerra Silenciosa

1201 Words
Sienna Eu tô no meio de uma guerra e nem sei mais qual lado eu tô torcendo pra ganhar. De um lado tem a fé. Aquela que me trouxe até aqui, que me faz acordar todo dia pensando que eu posso fazer a diferença, que eu posso salvar almas, que Deus tem um plano maior pra tudo isso. Do outro lado tem o fogo. Um fogo alto, quente, perigoso, com olhos azuis e tatuagens que contam histórias de morte. E esse fogo tá queimando dentro de mim cada vez mais forte. Eu sinto isso toda vez que o Coroa chega perto. O ar muda. Meu corpo reage antes da cabeça: coração acelera, pele arrepia, estômago vira um nó. Eu fico olhando pra ele e pensando “Senhor, isso é errado”, mas ao mesmo tempo querendo que ele chegue mais perto, que toque, que segure meu rosto de novo como fez naquela noite na varanda. Eu começo a duvidar se devo mesmo continuar morando na casa dele. É seguro? É certo? É puro? Ou eu tô me enganando, fingindo que é só missão quando na verdade eu tô gostando de estar perto dele demais? À noite eu decidi ir na igreja. Precisava de um lugar sagrado pra respirar, pra orar, pra pedir direção. Coloquei um vestidinho mais comportado, cabelo preso, Bíblia na mão. Desci o morro a pé, sozinha — o Coroa tava resolvendo alguma coisa e não viu. Cheguei no culto já começando, lotado de irmãs de saia longa, irmãos de camisa social, crianças correndo entre os bancos. O pastor Carlos me viu na porta e abriu um sorriso enorme. — Irmã Sienna! Que benção! Vem cá, vem cá! Ele me puxou pro altar, me apresentou pro culto inteiro. — Essa é a missionária que Deus mandou da Austrália! Ela já cantou pra nossas crianças, já trouxe alegria pra creche! Vamos receber ela com palmas! Todo mundo aplaudiu. Eu fiquei vermelha, sorri sem graça, acenei. Sentei na primeira fila, fechei os olhos durante as músicas, tentei me conectar. Mas quando abri os olhos e olhei pela janela lateral da igreja… lá estava ele. Coroa. Do lado de fora, encostado na parede, fumando um baseado tranquilo, olhando pra dentro. Olhando pra mim. Olhar pesado, como sempre. Eu senti um calor subir pelo pescoço. Ele não entrou. Só ficou ali, vigiando. Protegendo. Marcando território. No meio do culto, Saul sentou do meu lado. Cheiro de perfume amadeirado, Bíblia na mão, sorriso gentil. — Que bom te ver aqui, irmã. É um prazer te receber na nossa igreja. Eu sorri educada. — Obrigada, Saul. Ele é puro. Gentil. Educado. Tudo que um homem de Deus deveria ser. Mas toda vez que ele fala comigo, eu lembro da voz rouca do Coroa: “Ele quer o que é meu”. E eu fico corada. Corada porque uma parte de mim gosta de ouvir isso. Gosta de ser “de alguém”. Gosta de imaginar que o Coroa tá com ciúmes porque sente o mesmo fogo que eu sinto. Eu orei baixinho durante o culto inteiro. Pedi direção. Pedi força. Pedi pra Deus me mostrar o caminho. Mas o coração tava confuso. Metade querendo ficar de joelho no altar, metade querendo correr pros braços do homem que tá fumando baseado do lado de fora. Depois do culto, o Coroa tava me esperando na porta. Não falou nada sobre ter visto tudo. Só estendeu a mão pra eu pegar de apoio e subir na moto dele. — Vamos? — Vamos. — Eu disse aceitando e subindo. Podia ouvir os comentários das irmãs, claro que ninguém aceita aquela situação. Talvez eu também seria alguém julgando tal atitude de uma jovem. Mas eu sabia que até o momento não estava fazendo nada errado. Ele me levou pra um barzinho na laje de uma casa, daqueles simples, mesa de plástico na calçada, luz de lâmpada amarela. Pediu espetinho de carne, porção de batata frita, cerveja gelada pra ele, suco de laranja pra mim. A gente sentou ali, comendo na rua, vendo o morro pulsar: funk tocando longe, moleque jogando bola, mulher gritando nome de filho da janela chamando pra jantar. Conversamos sobre coisas aleatórias. Ele contou de quando era moleque e subia pipa no morro. Eu contei da praia em Gold Coast, das panquecas da minha mãe. Rimos de algumas coisas bobas. Por um momento parecia… normal. Quase um encontro. Aí eu, burra que sou, perguntei: — E a mãe dos seus filhos? Como ela era? Silêncio de pedra. Ele parou de mastigar. Olhou pra garrafa de cerveja como se ela tivesse ofendido a família inteira, não olhou pra mim. Não respondeu. Só tomou um gole longo, acendeu outro cigarro. — Desculpa… eu não devia ter perguntado. Ele balançou a cabeça, voz baixa. — Não pergunta mais. A gente terminou de comer sem falar nada. Voltamos pra casa calados. Eu subi pro quarto me sentindo culpada pra caramba. Toquei num assunto que ele não tá pronto. Machuquei sem querer. Dormi com peso no peito, pedindo perdão a Deus por ser tão intrometida. De manhã, ele não tava na mesa do café. Uma das empregadas disse que ele saiu cedo, que devia estar resolvendo coisa do morro. Eu tomei café sozinha, coração apertado. Aí o telefone tocou. Era da creche: uma das tias torceu o pé, precisavam de ajuda urgente com as crianças. Eu nem pensei duas vezes. Peguei minha bolsa, Bíblia, uns livrinhos que o Saul tinha me entregado, e saí. No caminho, descendo a ladeira, quem eu encontro? Coroa. De moto capacete na mão, cara fechada. — Pra onde tu tá indo sozinha? — Creche. Ligaram pedindo ajuda. Ele suspirou, estendeu o capacete. — Sobe. Eu levo. Eu subi. Braços na cintura dele de novo. Corpo colado. Coração disparado. Chegamos na creche. Crianças correndo, bagunça gostosa. Eu entrei, abracei todo mundo, já comecei a ajudar nas atividades. Cantamos, pintei desenhos, contei história da arca de Noé. Aí a porta abriu. Saul. Com mais livros, material de arte, sorriso aberto. — Vim ajudar também! O pastor mandou reforço. As crianças gritaram de alegria. Eu sorri educada. — Que bom, Saul! Mas aí eu vi o Coroa. Ele tava na porta, braços cruzados, olhar que matava. Saul percebeu. O sorriso morreu um pouco. Os dois homens ficaram se olhando um tempo longo. Tensão no ar que dava pra cortar com faca. Saul tentou ignorar, entrou, começou a ajudar nas atividades. Coroa ficou parado, vigiando cada movimento. Em certo momento, Saul chegou perto de mim, ajudando a arrumar as mesas. — Você tá bem? — perguntou baixo. — Tô, sim. — Se precisar de qualquer coisa… qualquer coisa mesmo… me chama. Eu ia responder, mas o Coroa apareceu do nada atrás dele. — Vamos resolver isso lá fora — falou, voz baixa, mas que fez todo mundo na creche gelar. Saul assentiu devagar. Os dois saíram. Porta bateu. Eu continuei com as crianças, mas o coração tava na garganta. Passou um minuto. Dois. Três. Aí veio o som. Um tiro. Seco. Alto. Ecoando no morro inteiro. As crianças gritaram. Eu congelei. Meu Deus. O que acabou de acontecer? ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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