O Inferno Tem Nome

1119 Words
Coroa Eu já vi muita coisa nessa p***a de vida. Já vi homem chorar segurando o intestino na mão. Já vi mãe enterrar filho de 14 anos com camisa do Flamengo. Já vi polícia subir de caveirão e descer correndo com o r**o entre as pernas. Mas nada, nada mesmo, me preparou pra ver aquela loira australiana sentada no chão da creche, rodeada de moleque sujo, cantando com voz de anjo e olho marejado. Caralho. O jeito que ela fala com os pequenos… me lembrou de quando a mãe dos meus filhos ainda sorria. Ainda acreditava que eu podia ser alguém melhor. Ainda me olhava como se eu fosse salvação e não perdição. Faz tanto tempo que eu nem lembrava que essa memória doía. Eu fiquei na porta, encostado, braços cruzados, fingindo que tava só de olho na segurança. Mas tava era hipnotizado. Ela pegava na mãozinha de cada um, corrigia o “amém” deles com paciência, ria quando erravam a letra. E os moleques… os meu vapô que normalmente só conhecem grito, tapa na cara e “vai buscar o material na boca”, tavam ali em pé, de olho brilhando, quase cantando junto. Quando ela terminou, o povo todo aplaudiu. APLAUDIU, p***a. Meus soldados, que matam sem piscar, batendo palma que nem criança em festa de aniversário. Eu senti um negócio apertar aqui dentro que eu não sentia desde que a Jordana nasceu. Subindo de volta pra casa, ela vinha do meu lado calada, suada, cabelo grudado na testa, vestido branco agora sujo. Mas com um sorriso pequeno, satisfeito. Como se tivesse ganhado o dia. E tinha. Tinha ganhado o morro inteiro sem disparar um tiro. Chegamos na varanda. O sol já caindo, pintando tudo de laranja. Eu acendi um cigarro, traguei fundo, tentando botar a cabeça no lugar. Ela ficou parada do lado, olhando pro mar lá embaixo, abraçando o próprio corpo. Medo ainda tinha, dava pra ver. Mas tinha outra coisa também. Coragem. Fé. Aquela merda toda que eu joguei fora faz tempo. — Tu acredita mesmo nesse Deus, né? — perguntei, voz mais rouca do que o normal. — Então reza pra Ele te tirar de mim, Barbie. Reza muito. Ela virou pra mim. Olho azul firme, queixo erguido, mesmo tremendo por dentro. — Talvez Ele tenha me trazido pra te tirar do inferno. Eu ri. Ri seco, sem graça, porque se eu não risse ia fazer outra coisa. Ia agarrar ela ali mesmo, jogar na parede, mostrar que inferno tem dono e que o dono sou eu. Em vez disso, bati a pistola na mesa de vidro, barulho seco ecoando. — Boa sorte, anjinha. Virei as costas e entrei. Precisava de um banho gelado. Precisava de distância. Porque se eu ficasse mais um segundo olhando praquela boca falando de salvar minha alma, eu ia perder o resto de juízo que ainda me segura. Dormi m*l. Sonhei com ela cantando. Acordei com o p*u duro e raiva de mim mesmo. Dia seguinte, café da manhã. Eu tava na cozinha cedo, de short tactel, sem camisa, tomando café preto e olhando o movimento lá embaixo pelo vidro. Ela desceu de fininho, vestidinho florido, cabelo molhado do banho, cheiro de xampu de morango invadindo tudo. Sentou do meu lado, pegou uma tapioca que a empregada deixou pronta. — Bom dia — ela falou baixinho, voz ainda rouca de sono. — Bom dia, Barbie. Ela deu um sorriso tímido, depois respirou fundo, como quem vai pular de bungee jump. — Hoje… o pastor Carlos finalmente marcou. Meio-dia, na igreja lá embaixo, na entrada do asfalto. Ele disse que vem me buscar e… Eu senti o estômago revirar. Ciúmes. Ciúmes puro, ridículo, animalesco, de um pastor de merda que eu nem conheço. Só de imaginar ela animada, sorrindo pra outro cara, falando de Jesus com aquele jeitinho dela… me deu vontade de quebrar a mesa. — Eu vou junto — falei, seco. Ela piscou, surpresa. — Você… não precisa. Ele é homem de Deus, eu vai estar seguro… — ela disse com o português ainda errado. — Eu vou junto — repeti, mais firme. — Aqui ninguém te leva sem passar por mim. Nem pastor. Ela abriu a boca pra discutir, mas aí a Lohana apareceu na porta da cozinha, cabelo preso, cara de quem acordou com o pé esquerdo. — Bom dia Sienna. — ela cumprimentou dando um beijo na loirinha, que respondeu com um aceno pois estava com a boca cheia. — Pai, vim pegar o dinheiro do salão — falou, já estendendo a mão. Eu tirei cinco notas de cem do bolo que tava no bolso, entreguei. Ela pegou, mas não saiu. Ficou olhando pra Sienna. Olhando pra mim olhando pra Sienna. O olhar dela endureceu. — Não começa, pai — disse baixo, só pra mim ouvir. — Ela não é daqui. Não é pra você. Eu nem pisquei. Peguei o copo de café, tomei um gole lento. — Talvez seja tarde demais pra me alertar sobre qualquer coisa, filha. Lohana apertou os lábios, jogou o cabelo pra trás e saiu pisando duro. Eu ouvi o portão bater lá fora. Sienna fingiu que não ouviu nada, mas as bochechas dela tavam vermelhas. Ela mexeu na tapioca, mordiscou, respirou fundo. — Você… não precisa ter ciúmes do pastor Carlos, sabe? — falou, quase rindo de nervoso. — Ele tem 60 anos, barba branca, esposa e acho que quatro filhos. — ela disse mostrando cinco dedos. Eu levantei uma sobrancelha. — Ciúmes? Quem disse que eu tô com ciúmes? Ela me olhou de canto, sorrisinho safado que ela nem sabe que tem. — Seu olhar, Coroa. Seu olhar grita. Eu ri. Ri de verdade dessa vez. A loirinha tá aprendendo rápido. — Come logo essa tapioca, Barbie. Meio-dia a gente desce. E se esse pastor encostar um dedo em tu, eu quebro a mão dele. Homem de Deus ou não. Ela revirou os olhos, mas o sorriso não saiu da cara. — Você é impossível. — E tu ainda nem viu nada. Terminamos o café em silêncio, mas um silêncio diferente. Pesado, sim. Mas quente. Elétrico. Do tipo que faz o ar faltar. Eu já sei que hoje vai ser f**a. Porque eu vou levar ela até o pastor. Vou ficar do lado, de braço cruzado, olhando. E se ela sorrir demais pra ele… Que Deus me perdoe, porque eu não vou. Porque essa gringa já entrou debaixo da minha pele, do meu sangue, do meu morro. E eu tô começando a achar que não quero mais tirar ela de lá. Pelo contrário. Quero ela aqui. Pra sempre. E que se f**a o céu inteiro. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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