Jacaré Narrando
Depois daquela conversa com o Benjamim, eu me senti mais leve, de uma forma que não fazia sentido. Não sabia exatamente o que tinha mudado, mas parecia que, de alguma maneira, finalmente tinha jogado um peso fora, um peso que nem eu sabia que estava carregando. De volta pro morro, subi com o sorriso no rosto, sem nem perceber. Me senti quase como alguém que tivesse, sei lá, pedido o moleque em namoro, risos. Estava leve demais pra um cara como eu, que vive numa guerra diária, entre tiros, favores, desconfiança. Mas, por algum motivo, tudo isso agora parecia estar fazendo sentido. Mesmo sem entender, a sensação era boa.
Cheguei no barraco e fui direto pro meu quarto. Fechei a porta atrás de mim e me larguei na cama. O pensamento, de repente, começou a turbilhar de novo, igual antes da conversa. O que foi aquilo? Por que, desde o primeiro momento que vi Benjamim no hospital, senti essa necessidade de proteger ele? Ele era só um moleque, um garoto que eu vi mais como algo do passado, mas de alguma forma ele ficou lá no fundo, como uma dívida não paga que começou a me corroer.
Lembro da cena dele na cama de hospital, imobilizado, com aquele olhar de medo e raiva. E eu... olhava pra ele e sentia uma urgência dentro de mim, algo que não cabia naquela situação. Eu só sabia que precisava estar ali, que eu tinha que garantir que ele ficasse em segurança, que não poderia deixar nada acontecer com ele. Por que, c*****o? Ele não era ninguém do meu mundo. Mas parecia que o destino tinha jogado a gente na mesma cama, nas mesmas ruas. Talvez fosse a culpa. Talvez fosse algum tipo de arrependimento por estar mais uma vez tendo que envolver um garoto daquela idade em coisas que ele não devia entender, ainda mais naquela vida.
Por mais que a vida que eu levei me tivesse colocado em várias situações complicadas, nunca antes senti esse impulso de proteção por alguém. E o Benjamim? Pra mim, ele se tornou, de uma maneira que eu não consigo explicar, importante.
Pensei mais um pouco, revivi os momentos em que me vi sendo o maior vagabundo do mundo, e aí, de repente, uma sensação esquisita surgiu: eu estava de alguma maneira tentando compensar aquilo tudo. Queria que ele saísse dessa vida, quisesse que ele fosse diferente, não merecia acabar envolvido naquilo. Essa... essa ideia de proteção, se é que se podia chamar assim, começou a tomar conta. Eu sabia que o moleque merecia muito mais do que aquela merda toda.
A verdade é que, por mais que ele se fosse agora, o peso daquela conversa nunca iria sair de mim. Como se eu tivesse apertado a reset, mas as engrenagens continuavam girando dentro de mim, criando uma necessidade de cuidar dele, e isso me perturbava profundamente.
Eu estava sentado no sofá, o cansaço batendo forte depois de tudo o que rolou no dia. A noite já tinha caído, mas a cabeça não estava tranquila. Fiquei ali, sem saber o que fazer, até que a porta do meu quarto se abriu devagar. Era ela, a Valentina, minha princesinha. Olhei pra ela e, instantaneamente, a dureza do dia começou a parecer menos pesada.
— Chegou de onde, princesinha? — perguntei, tentando disfarçar o sorriso que se formava naturalmente. Com ela era assim, a coisa mais simples conseguia tirar o peso que eu carregava.
Ela se aproximou, com aquele jeitinho leve, meigo. A menina era uma mistura de suavidade com uma maturidade precoce, algo que me deixava impressionado todas as vezes.
— Fui lá fora, ver as estrelas com as meninas — respondeu ela, sem pressa. Valentina sabia como ninguém o ritmo tranquilo da vida dela, mesmo com tudo o que acontecia ao redor.
Ela sentou ao meu lado, e eu não pude deixar de dar um carinho na cabeça dela, mais um desses gestos involuntários que eu sempre fazia sem nem pensar. Ela tinha algo que me fazia querer cuidar, proteger... como se eu tivesse algum tipo de responsabilidade. Ela era mais que uma filha pra mim. Era minha missão.
— Sabe, Valentina, às vezes eu fico pensando no que a vida nos prepara... Como o destino vai colocando as pessoas certas no nosso caminho, sem a gente nem saber — falei, me perdendo um pouco nos pensamentos. Ela não disse nada, apenas me olhou com aqueles olhos grandes e curiosos. Para mim, era como se ela fosse uma bênção nesse lugar tão cheio de sujeira.
— E você... sempre foi minha luz aqui dentro, sabia? — falei com a voz baixa, quase como se estivesse pensando em voz alta, mais pra mim mesmo do que pra ela.
Ela me olhou, bem concentrada, talvez sentindo o peso nas minhas palavras. Valentina, por mais jovem que fosse, sentia a responsabilidade de tudo que a cercava.
— E o senhor, tio Jacaré, o que vai fazer agora? — perguntou com sua voz suave, mas de quem entendia as coisas mais do que muitos ali.
Respirei fundo, pegando o café, e depois soltei com a mesma sinceridade que sempre tive:
— Vou fazer o que sempre fiz, minha princesa. Cuidar de você, garantir que, mesmo com o caos lá fora, você tenha o máximo de segurança possível aqui dentro. Eu faço o que for necessário pra isso.
Ela me olhou, sem muito mais a dizer, porque sabia. Valentina sabia que, mesmo no meio do perigo e da guerra, a minha missão era deixá-la longe desse lado sombrio da vida. Era uma luta que eu travava dentro de mim, constantemente.
— Eu não entendo muito do que o senhor faz, Jacaré — ela falou, como se não tivesse pressa de entender tudo, mas como se, com o tempo, soubesse que suas palavras não precisavam ser explicadas. — Mas eu sei que sou sua prioridade, e isso é tudo que me importa.
Ela tinha razão. Eu sabia disso, sabia que ela era a razão de eu fazer o que fazia. Mesmo nas horas mais sombrias, com tudo ao meu redor parecendo ir por água abaixo, Valentina era meu ancla, a única coisa que me lembrava que ainda havia algo de bom no mundo. Sentei de novo, e ela se aninhou perto de mim, como só ela sabia fazer.
— Eu sei, princesinha — falei baixinho, enquanto acariciava seus cabelos. — Só não quero que tu carregue o peso dessa vida, Valentina. Não é isso que eu quero pra você. Não quero que você cresça vendo o mundo que eu vejo. Porque você merece muito mais que isso.
Ela me abraçou forte, e ali, na quietude do momento, com a janela aberta deixando o vento entrar, eu senti uma paz que não sentia há muito tempo. Apesar de tudo o que eu já havia feito, de todas as escolhas erradas, ela, com seu abraço, fazia tudo valer a pena. Eu cuidava dela como se fosse minha filha, mais do que qualquer coisa nesse mundo. E ela sabia disso.