Allana narrando
Eu ainda estava meio atordoada. Era como se tudo ao meu redor tivesse um brilho diferente, mas ao mesmo tempo, carregado de uma estranheza que eu não sabia explicar. Estar ali, naquela cozinha cheia de cheiros, vozes e memórias que eu nunca vivi... era surreal.
A minha mãe.
A mulher que eu passei anos imaginando, criando versões diferentes na minha cabeça, às vezes fraca, às vezes fria, outras vezes heroína agora estava ali, de carne e osso. E ela era... ela era tudo. Forte, doce, intensa. O jeito como ela me olhava fazia um nó se formar na minha garganta. Como se, só de estar ali, eu tivesse curado uma parte dela. Mas e eu?
Eu cresci com um vazio. Um buraco que o meu pai nunca conseguiu preencher, apesar das mil histórias que ele contava para justificar sua ausência. Ele dizia que ela tinha nos deixado. Que tinha escolhido outra vida. E eu, criança, engolia aquilo com lágrimas silenciosas.
Mas depois de um tempo, comecei a questionar. Por que ela não me procurava? Por que nenhuma carta, nenhum presente escondido? Será que ela realmente me abandonou?
Só que agora... olhando nos olhos dela, sentindo o toque das mãos trêmulas sobre meu rosto, eu sabia. Ela nunca desistiu de mim.
— Tá tudo bem, mãe — eu disse, baixinho, tentando conter a onda de emoções. Ela sorriu com os olhos marejados. E foi aí que entendi que não era só sobre mim. Era sobre nós duas.
A mulher chamada Clarice parecia de verdade muito feliz por me ver ali. E a filha dela, Sil também me recebeu com carinho. Isso me deixou mais à vontade. Ainda era cedo pra confiar plenamente, mas tinha alguma coisa naquele ambiente que me fazia querer tentar.
Quando o Morte entrou na cozinha, eu fiquei meio rígida. O nome já dava um certo desconforto. Mas ele me olhou com respeito. Não tentou forçar nada. E isso, pra mim, já era um bom sinal.
Depois do almoço, subi com minha mãe para o quarto que ela disse que agora seria meu. Ela queria me mostrar algumas fotos antigas que guardava numa caixinha. Era como folhear uma vida que podia ter sido minha. E, em cada imagem, uma nova pontada no peito.
O quarto era lindo e lembrava o meu antigo, então não tinha muito o que mudar. Pra mim tava tudo perfeito.
— Eu nunca deixei de te amar, minha filha. Nem por um segundo — ela disse, segurando minha mão com força.
— Eu sei mãe. Eu sei.- Eu falei para ela que me deu um abraço apertado.
— Ai meu Deus, chega de chorar né?. Bom se quiser redecorar o quarto, é só me falar tá bom?. Agora vou deixar você descansar porque tenho certeza que eu voou até aqui foi cansativo. - só balancei a cabeça sorrindo e ela me deu um beijo na cabeça.
— Obrigado mãe, é muito bom estar de volta.- eu falo para ela que pára na porta e fica me olhando com os olhos cheios d'água novamente.
— Eu te amo tanto minha menina.- ela fala.
— Eu também te amo mãe.- Ela fechou a porta e eu olhei em volta observando o quarto.
Fiquei ali sentada na beira da cama, ouvindo o silêncio do quarto. Era estranho como aquele espaço parecia ao mesmo tempo familiar e desconhecido. As paredes tinham marcas do tempo, alguns enfeites simples, cortinas claras que balançavam com o vento. Nada luxuoso, mas havia uma sensação de lar. Algo que eu não sentia há muito tempo.
Levantei devagar e fui até a janela. O morro se estendia diante de mim, vivo, pulsante. Crianças brincando na viela, vizinhos conversando alto de uma janela para outra, um som de funk distante misturado com o cheiro de comida no ar. Tinha cor, tinha barulho, tinha vida. Era o oposto do silêncio frio da casa onde cresci.
Passei os dedos pelos porta-retratos na estante. Uma foto da minha mãe com a Sil pequena, outra com o Morte sorrindo sim, sorrindo, e isso me pegou de surpresa, acho que ela é muito feliz com ele. Tinha também uma mais antiga, que era a minha mãe, Morte e um garoto. Não sei quem é. Não sei se pode ser algum parente do Morte, ou talvez um filho. Ainda não tive a oportunidade de perguntar.
Deitei de lado na cama e abracei um travesseiro. O corpo cansado queria descanso, mas a cabeça girava. Tanta coisa pra digerir. A verdade é que eu estava com medo. Medo de me apegar. Medo de me decepcionar. Medo de descobrir que, mesmo com todo amor dela, talvez aqui não seja o meu lugar. Mas pela primeira vez em anos... eu estava em paz.
Depois de um tempo deitada, sentindo o cansaço pesar nos ombros, decidi levantar e tomar um banho. Precisava daquilo. De lavar um pouco do peso do dia, da estrada, das lembranças e até das dúvidas.
O banheiro era muito bonito. O azulejo de porcelana branca com alguns detalhes em cinza, o espelho enorme, um cheirinho de desinfetante recém-usado. Tirei a roupa devagar, observando meu reflexo. Tinha tanta coisa nos meus olhos… era como se eu não soubesse mais exatamente quem eu era. Mas estava ali, tentando. Um passo de cada vez.
A água quente caiu sobre mim como um abraço. Fechei os olhos e deixei escorrer não só a poeira da viagem, mas também as lágrimas silenciosas que eu não queria mostrar pra ninguém. Era um choro contido, de cansaço, de saudade, de alívio. Um choro que dizia, eu cheguei mãe. Mesmo que tenha demorado, eu tô aqui.
Depois, vesti uma camiseta confortável e deitei novamente. O colchão parecia me engolir. Fechei os olhos por um segundo… e quando abri, já era noite.
As luzes do quarto estavam apagadas e o som abafado da televisão vinha lá de baixo. Me espreguicei devagar, ainda sonolenta, Fui até o banheiro fazer minhas higienes. Troquei de roupa colocando uma mais confortável. Quando comecei a descer as escadas, vi os dois ali, minha mãe e o Morte, sentados no sofá, assistindo alguma coisa que parecia uma novela antiga.
Foi automático. Assim que pisei no último degrau, os dois viraram a cabeça ao mesmo tempo e olharam pra mim. Os olhos da minha mãe se iluminaram de imediato. O Morte me observou em silêncio, mas sem frieza. Havia algo respeitoso naquele olhar. Uma curiosidade contida, talvez.
— Dormiu bem, filha? — minha mãe perguntou, com aquele tom doce que ainda me pegava de surpresa.
Assenti com um pequeno sorriso, coçando a nuca.
— Dormi sim... até demais, eu acho. — dei uma risadinha sem graça, sentindo os olhos dos dois ainda em mim.
— Vem sentar com a gente, se quiser — o Morte falou, sem forçar nada. Só estendeu a mão em direção ao espaço vazio no sofá.
Hesitei por um segundo. Mas o jeito como ele falou… me fez sentir segura. Caminhei até ali e sentei ao lado da minha mãe, que automaticamente segurou minha mão como se aquele gesto fosse o mais natural do mundo.
— A gente tá vendo “A Viagem” — ela disse, animada. — É antiga, mas eu amo. Sempre chorei nessa parte aqui.- Sorri de lado, olhando para a tela.
Ali, entre o som da novela, o cheiro de café vindo da cozinha e o calor da mão dela sobre a minha… por um instante, tudo pareceu possível. Como se, talvez, eu realmente tivesse encontrado o caminho de volta pra casa.
Estávamos distraídos olhando para televisão, quando a porta se abriu e o homem cheio de tatuagem passou por ela com uma mala nas mãos. Automaticamente Morte se levantou na mesma hora e foi na direção do homem que me olhou com uma cara séria e meu corpo todo arrepiou.
— Não sabia que você voltava hoje.- Morte falou com ele que seguia me olhando e depois desviou o olhar para ele.