01

4306 Words
Era ele... os mesmos olhos azuis, os cabelos pretos jogados para trás em ligeiro desalinho, como se a brisa do golfo os tivesse soprado de sua fronte. Embora não o visse havia quinze anos, quando a deixara, aquele era Dean Connell, sem sombra de dúvida. Lauren escondeu-se detrás de um mostruário de revistas na Drogaria Thompson. Sentiu um estranho aperto no peito e teve que respirar fundo para se recobrar. Sua reação era absurda, disse a si mesma, censurando-se. Não era mais uma adolescente insegura de dezesseis anos. Tinha trinta e um anos agora. Era uma mulher com sua própria vida, sua carreira... seu namorado. Ten­tou evocar uma imagem de Patrick para aplacar o súbito nervosismo, do bonito e bem-humorado Patrick, esperan­do por sua volta na pousada. Mas, de algum modo, a imagem desvaneceu-se. E tudo o que Lauren pôde lembrar foi de um verão intenso, todos aqueles anos antes, quando fitara pela primeira vez os profundos olhos azuis de Dean e soubera que faria qualquer coisa para continuar olhan­do para ele. Agora, com esforço, Lauren apanhou uma revista ao acaso do mostruário. Folheou-a automaticamente, fingindo es­tar absorta. Estava se escondendo na farmácia de sua cidade natal... e, nesse meio tempo, o primeiro amor de sua vida, Dean Connell, estava no corredor ao lado. De repente, sentiu-se tentada a uma retirada discreta. Ou podia continuar detrás das revistas até que tivesse ab­soluta certeza de que Dean saíra. Em outras palavras, podia continuar se escondendo. Virou-se, olhando pela vidraça. A vista era algo que sempre persistira em seus sonhos: á calçada estendendo-se pela orla da praia, as areias brancas cintilando sob o sol, o azul-esverdeado das águas do golfo, a cúpula em estilo antigo do clube da marina erguendo-se no horizon­te. E o cais para além... que não se avistava dali, mas Lauren conhecia bem. Fora onde Dean a beijara pela pri­meira vez, numa mágica noite de verão. Ela apanhou outra revista e seguiu pelo corredor. Iria comprar o que fora buscar. Resolveria seus assuntos como uma pessoa adulta e racional e esqueceria Dean Connell. Afinal, conseguira esquecê-lo uma vez antes. Recusou-se a olhar ao redor enquanto prosseguia, eliminando a possibi­lidade de que pudesse vê-lo de relance outra vez. Encontrou um determinado tipo de medicamento e verificou as opções disponíveis. Em geral, não era indecisa, mas até aquela simples escolha pareceu-lhe complexa no momento. Leu um rótulo e, depois, o outro, porém nenhuma palavra pa­receu fazer sentido. Podia sentir a presença de Dean no pequeno estabelecimento, mesmo que não o estivesse vendo. Era quase como se o ar úmido de verão tivesse ficado car­regado com uma espécie de alerta para ela. — Bobagem — murmurou. Apanhou uma caixa de re­médios depressa, m*l notando a marca na embalagem, e entrou por outro corredor. E lá estava ele, parado de lado, logo à sua frente... Dean Connell, seu perfil apa­rentando um ar circunspecto, destoante do jeito despreo­cupado que ela conhecera tão bem. Despreocupado... aquela fora uma das descrições perfeitas para ele na épo­ca. Lauren fora quem se importara demais, quem se envol­vera além do que teria sido sensato. Bem, certamente Dean não era mais um rapaz de de­zoito anos. Era um homem de trinta e três agora. E a passagem do tempo lhe fora bastante favorável. Seus traços pareciam mais másculos e marcantes. Sim, tinha uma expressão fechada... como se não estivesse mais acos­tumado a sorrir com freqüência. Os cabelos pretos con­tinuavam fartos e lustrosos, mas a maneira como os pen­teava para trás era diferente, dando-lhe ao rosto uma nova seriedade. Havia uma certa rigidez em sua postura, como se estivesse absorto nos próprios pensamentos. Era evidente que ainda não a notara, o que daria a ela mais uma oportunidade de escapar. Chegou a dar um passo atrás. Foi, então, que Dean se virou e a viu. Franziu as sobrancelhas espessas en­quanto a estudava, parecendo um tanto intrigado. E, com uma estranha ponta de irritação, Lauren percebeu que não a reconhecia. Dean Connell, a pessoa que uma vez tivera o poder de fazer seu mundo desmoronar, nem sequer sabia quem ela era. Ainda havia chance de sair. Poderia fingir que não o conhecia. Mas algum orgulho inconseqüente a impediu. Na verdade, aproximou-se ainda mais pelo corredor. — Olá, Dean — disse, num tom neutro. A expressão intrigada persistiu no olhar dele. Pareceu um tanto exasperado também, como se quisesse permanecer sozinho, e isso a fez ficar mais determinada a se deter ali. — Então — prosseguiu, casual —, você está de volta à cidade também. Ele não respondeu. Lauren quase teve que admirá-lo por não fingir polidez. Não tentou encobrir o fato de que não conseguia reconhecê-la. Apenas observou-a de cenho li­geiramente franzido, como esperando que se afastasse. Mas ela não lhe daria tal satisfação. — Não sabia que você, ainda passava os verões aqui. — E não passo. — Até essas poucas palavras pareceram escapar dos lábios dele com relutância. Mas Lauren notou-lhe o timbre da voz ficando mais possante, intensificando-se. — Eu me mudei daqui há um longo tempo. — Perguntou-se por que dera tal informação. Obviamente, Dean não parecia disposto a conversar. Mas não fora assim reservado no passado. Todos aque­les anos antes, tivera consciência do próprio charme in­falível, de sua capacidade de despertar interesse. E não hesitara em usar tais armas em suas conquistas. Mas o homem à sua frente não parecia ter mais a menor pa­ciência para usar seu charme. O que a estava detendo ali? Ele já se virara para a prateleira, selecionando uma caixa de bombons entre uma certa variedade de balas, pastilhas e produtos die­téticos. Enfim, virou-se para fitá-la, como contrariado por ainda vê-la por perto. — Não são para mim. — Mais uma vez falou com relutância. Lauren compreendeu de imediato. A caixa de bombons destinava-se a alguma mulher. Talvez Dean fosse cortejar alguém com bombons e flores... E por que isso deveria ser uma surpresa? Mesmo aos dezoito anos ele já enten­dera o valor dos gestos românticos. Ela abominou as emo­ções em seu íntimo. Havia raiva e um inesperado... anseio que não experimentara em anos. Mas o que lhe importava que Dean estivesse embarcando em mais um romance de verão? Virou-se, fazendo menção de se afastar, mas deteve-se para estudá-lo por mais um momento. Tinha que admitir que esse Dean não parecia do tipo galanteador. Olhava, circunspecto, para a caixa de bombons, como se o tivessem ofendido de algum modo. — E curioso — começou ela —, mas as mulheres ainda se deixam impressionar por esse tipo de coisa. Dean lançou-lhe outro olhar rápido, e Lauren se perguntou por que simplesmente não conseguia sair dali. Por que tinha que continuar naquele corredor, dizendo o que quer que lhe surgisse na mente? — É verdade — prosseguiu, sem poder evitar. — As mulheres, por alguma tola razão, ainda se derretem por todos os tipos de galanteios... cartões românticos, rosas vermelhas e bombons. — Então — disse ele, erguendo a caixa que segurava —, acha que isto vai surtir efeito? — Com certeza. Ela vai ficar impressionada. — Lauren deu-se conta do tom cáustico da própria voz e soube que tinha que encerrar aquela conversa. — Bem, até logo... — Pelo visto, você não se deixa impressionar por nada. — Novamente, Dean falou como se relutasse em prolongar a conversa. — Bem, não sou mais tola e ingênua como antigamente. Quando a fitou dessa vez, os olhos azuis dele estavam enigmáticos. Ela disse a si mesma para desviar o olhar, mas não pôde. Continuou fitando-o, sentindo aquela es­tranha opressão em seu peito. E, de repente, lembrou-se exatamente de como era ter dezesseis anos, ansiando por algo que nem pudesse descrever, querendo, ingênua, que todos os seus desejos secretos se realizassem. De algum modo, enfim conseguiu reunir forças para desviar o olhar, baixando-o para as revistas e a pequena caixa de remédio que ainda segurava com força. Dean olhou na mesma direção. — Não é para mim — disse ela, irônica. — É para... um amigo. Alguém com... indigestão. — Como aquilo soa­va corriqueiro, banal. Tratou de se lembrar de que não havia nada de banal quanto a Patrick Dannon, e qualquer um podia ter uma pequena indisposição, como a que ti­vera com a comida do avião no vôo desde Connecticut. Novamente, Dean pareceu dar séria consideração às suas palavras. — Espero que ele se sinta melhor. Lauren corou. Não fora sua intenção informá-lo de que havia um homem em sua vida. Não era necessário. Podia muito bem falar apenas por si mesma e provar-lhe que prosseguira com sua vida, que o que acontecera quinze anos antes não a derrotara. Parecia que, no momento, esquecera-se de dois deta­lhes muito importantes. Em primeiro lugar, Dean não sabia de toda a verdade dolorosa daquele longínquo verão. Em segundo, nem sequer se lembrava de seu nome. Lançou-lhe um sorriso carregado de amargura; isso não pôde evitar. — Foi bom falar com você. — Ao menos ficou orgulhosa do tom indiferente que conseguiu dar à voz. — Espero que os bombons sirvam ao seu propósito. — Quando se virou dessa vez, ela realmente se afastou em direção ao caixa. Estava quase ao final do corredor quando ele falou, seu tom manso: — Adeus, Lauren MCCALISTER. Amy estava agindo daquela maneira outra vez... tendo iniciativa, sendo otimista, como se bastasse organizar um almoço em família para que todos os problemas do clã MCCALISTER estivessem resolvidos. Com um já conhe­cido misto de exasperação e atitude defensiva, Lauren estava sentada numa banqueta junto ao balcão da cozinha ob­servando a irmã, que iniciava o preparo de uma salada a seu jeito rápido e eficiente. Era uma velha sensação... querer se irritar com o otimismo e a vitalidade da irmã, mas ainda assim admirando-a secretamente por isso. E Amy sorria consigo mesma enquanto trabalhava. Essa era outra coisa notável quanto a ela nos últimos tempos. Parecia incrivelmente feliz. E por que não? Es­tava noiva e prestes a se casar. O noivo, na verdade, era ninguém menos do que Luke Costas... o ex-marido de Lauren. Ela contraiu o semblante só em pensar a respeito. Cor­reu os olhos pela cozinha em direção à sala de estar, onde um pequeno grupo se reunira: sua mãe, Mary Anne, seu namorado, Patrick e seu ex-marido, Luke. Que combi­nação... Dali, pôde ver Luke se inclinando para afagar a cabeça de Sam, o cão de Amy. O animal abanou a cauda, contente. Parecia que ninguém no clã McCalister fazia qual­quer objeção àquele noivado. Ninguém exceto Lauren. Disse a si mesma que deveria estar feliz pela irmã. Com que freqüência duas pessoas encontravam o verda­deiro amor juntas? Só porque se tratava de seu ex-marido e de sua irmã não era razão para objetar... — Lauren — disse Amy, num tom sério. Aparentemente, notara-lhe a direção do olhar. — Eu gostaria que você me deixasse explicar, ao menos uma vez. Ela soltou um suspiro. —  Eu entendo. Vocês dois se apaixonaram. Fim da história. —  Não... não é o fim. Não se houver a menor possi­bilidade de eu estar magoando minha própria irmã. —  Ouça, não deve dar atenção ao que eu acho. Se Luke é o homem certo para você, deve ficar com ele e esquecer-se de tudo mais. — Não posso me esquecer de minha família. Jamais. Lauren tornou a suspirar e perguntou-se por que não podia simplesmente aparentar total concordância com aquela situação. Dessa maneira, pelo menos a irmã pa­raria de bombardeá-la de perguntas. — Você me disse que não amava mais Luke — mur­murou Amy, com um ar tenso em seu rosto bonito e expressivo. — Que talvez nem sequer o tenha amado de verdade. Você até tem outro homem em sua vida agora. Então, qual é o problema? Por quê, a cada vez que olha para mim e Luke, você parece tão... pouco à vontade? Era uma boa pergunta, pensou Lauren, tornando a lançar um olhar para a sala de estar. Estudou o ex-marido a distância. Luke ficara ainda mais atraente ao longo dos anos. Era surpreendente o que o amor podia fazer por um homem, dando-lhe um ar de contentamento que nunca tivera antes. Certamente, não quando fora casado com ela. De qualquer modo, eram águas passadas. Então, o que lhe acontecia? Por que simplesmente não podia aceitar o fato de ver Luke e Amy juntos? Não era que se ressentisse do amor dos dois, nem que ainda quisesse o ex-marido para si. O que quer que tivesse existido entre ambos extinguira-se havia um longo tempo. Talvez, se fosse ho­nesta consigo mesma, o que a incomodava mais era o fato de sua irmã e ele serem tão certos um para o outro. Estavam tão felizes, e era o tipo de felicidade difícil de não se invejar. Parecia algo especial, único. E quando os comparava a si, não podia deixar de ser tomada por uma sensação de... fracasso. Sim, era o que os dois a faziam sentir... a forte im­pressão de que estivera fracassando no amor já havia um longo tempo. Em primeiro lugar, fora, sem dúvida, um grande erro ter-se casado com Luke. Mas os erros iam ainda mais longe... até o verão em que tivera dezesseis anos, quando fitara os incríveis olhos azuis de um rapaz chamado Dean Connell e soubera que nada em sua vida seria igual outra vez. De repente, deu-se conta de que as mãos apertavam com força a beirada do balcão e de que a irmã a observava com um ar preocupado. — Deixe para lá, Amy — pediu-lhe. — Ao menos dessa vez, esqueça. Ela fez menção de dizer algo, mas então, para sua surpresa, encerrou o assunto. Adiantou-se para verificar uma panela que borbulhava no fogão. — O molho está quase pronto — anunciou. — Por favor, descubra o que todos vão querer beber. Há refri­gerantes na geladeira, mas não se esqueça do vinho que seu namorado trouxe ontem à noite. Um bom homem o seu Patrick. Lauren cerrou os dentes. Não sabia por que a incomodava tanto ouvir Patrick sendo chamado de "seu". Era seu namorado, o primeiro romance estável em sua vida depois de um longo tempo. E era, sem dúvida, um bom homem. Talvez, enfim, tivesse a chance de ser bem-sucedida num relacionamento. Então, por que se sentia aborrecida? Apesar das instruções da irmã, permaneceu onde es­tava. Era o momento de conversar sobre algo mais, em vez de sua vida amorosa. — Sabe, não vai adiantar — disse à irmã. — Você pode cuidar de todos os preparativos, nos reunir a uma mesa. Pode até continuar planejando aquela grande festa de bodas de ouro. Mas nada disso irá convencer nossa mãe a voltar a morar com papai. Terminando de fatiar um tomate, Amy ergueu o olhar para fitá-la. —  Eu gostaria que você não desistisse. Achei que ti­véssemos concordado que ao menos iríamos tentar... —  Não. Você decidiu que iria resolver todos os proble­mas de nossos pais. O resto de nós está apenas seguindo sua idéia. —  Eu gostaria que Maggie estivesse aqui — declarou Amy, um tanto exasperada. — Que não tivesse que adiar sua visita até a semana que vem. Porque ela ficará do meu lado... —  Não fique tão esperançosa. Maggie é tão realista quanto eu. Lauren notou que a irmã ignorou-lhe o comentário. Viu-a jogando por sobre o ombro os cabelos longos e alourados com visível impaciência e começando a procurar algo num dos armários, como para evitá-la. — Sabe — persistiu —, eu nunca deveria ter deixado que você me convencesse a voltar a Hurricane Beach. — A simples menção à sua cidade natal já lhe causava uma espécie de inquietação. Amy virou-se do armário, de onde apanhara uma lata de ervilhas. — Talvez, bem no fundo, você esteja tão preocupada com nossos pais quanto eu... e essa é a razão de estar aqui. Apenas não quer admitir. Além do mais, não a arrastei para cá à força. Antes da última primavera, você não tinha voltado aqui há um longo tempo. Isso não lhe diz alguma coisa? Dizia muito, pensou Lauren. Dizia-lhe que construíra uma vida nova em Connecticut, desenvolvendo uma carreira onde encontrara, enfim, algum sentindo verdadeiro. Era apenas quando retornava à Flórida que os antigos des­contentamentos e anseios ameaçavam dominá-la. Mas como poderia explicar isso tudo à irmã? —  Você nunca mais teria voltado — prosseguiu ela. — Se nossos pais não estivessem fazendo essas ridículas ameaças quanto a um divórcio, você não estaria aqui neste minuto. —  Sabe quanto tenho andado envolvida com o meu trabalho. — Lauren abriu um pequeno sorriso, saudosa de "suas" garotas em Connecticut. Eram adolescentes grá­vidas... desafiadoras e difíceis de lidar, na maioria. Mas eram, afinal, quase crianças ainda. E isso significava que ocasionalmente podiam surpreendê-la com risos, não im­portando quanto estivessem solitárias e assustadas. —  Sim, eu sei — assentiu Amy, seu tom suavizando-se com a mudança de assunto. — Realmente acho maravilhoso o jeito como você arranjou aquele lar para as garotas. É um trabalho assistencial tão construtivo e altruísta. —  Oh, sim, eu sou um modelo de virtude — disse Lauren, irônica. Não havia por que contar-lhe que grande esforço estava sendo necessário para manter o abrigo das jovens funcionando. Não era, absolutamente, uma entidade com fins lucrativos, o que significava que ela e a sócia que a ajudara a fundar o lar viviam implorando por doações. Re­centemente, a situação financeira ficara mais precária. Patrick oferecera-se para ajudar, mas até então Lauren recusara. Não gostava da idéia de complicar o relacionamento de ambos com questões de dinheiro. Sabia, claro, que poderia recorrer a seu pai, mas sempre hesitara. Toda vez que seu pai investia dinheiro em algo, acabava encontrando um meio de assumir o controle da situação. De algum modo, teria que encontrar a solução sozinha. —  Mas é algo admirável — insistiu Amy. — Todo o benéfico trabalho que você vem fazendo... —  Sim, eu sou realmente uma boa samaritana, que­rendo salvar o mundo. —  Oh, você sempre faz isso. Alguém tenta lhe fazer um elogio, e você fica sarcástica. Não há nada errado em apenas dizer "obrigada". —  Manterei isso em mente. — Lauren soube que estava fazendo aquilo outra vez, ouvindo o tom cáustico na pró­pria voz. Mas era como se não pudesse evitar quando estava em meio à sua família. Amy lançou-lhe um olhar atravessado, enquanto vol­tava para junto do balcão da cozinha, terminando de preparar a salada. — Bem, mas voltando ao nosso assunto, você não fica aborrecida também? Com a maneira como nossos pais estão agindo um com o outro... Com certeza não quer que eles se divorciem. A verdade era que aquela situação tensa preocupava Lauren ao extremo. Seus pais estavam casados havia quase cinqüenta anos. Aquele era um fato sólido, irrefutável... ao menos deveria ser. Talvez ela não gostasse de voltar para sua cidade natal na Flórida, mas sempre fora con­fortador saber que seus pais estavam juntos. John Paul e Mary Anne MCCALISTER... até seus nomes soavam como uma solene instituição. Mas, alguns meses antes, os dois ti­nham começado subitamente a discutir um com o outro. Em princípio, as razões para a discórdia tinham sido banais. Depois, John Paul mostrara interesse em vender a propriedade da família, e Mary Anne se opusera à idéia. As proporções da crise conjugal tinham aumentado. Mary Anne mudara-se da casa da família, e agora John Paul já franzia o cenho quando alguém apenas mencionava o nome da esposa. O que, afinal, estava acontecendo com eles? Ti­nham, raramente, discordado de algo no passado. Era uma situação bastante perturbadora, como se um alicerce em que Lauren confiara durante a vida inteira estivesse ruindo sob seus pés. Não sabia como partilhar nenhum desses sentimentos com a irmã. Assim, limitou-se a comentar: — Papai e mamãe estão apenas brincando de gato e rato por uns tempos. Por que não os deixamos resolver isso sozinhos? Para que tanto alarde? Amy resmungou algo ininteligível entre dentes. — Quer saber de uma coisa? — disse numa voz mais alta. — Eu irei perguntar a todos o que querem beber. — Encaminhou-se na direção da porta da cozinha, mas deteve-se, virando-se para fitá-la. — Não lhe faria m*l algum. De vez em quando, você poderia admitir que tem sentimentos. Seria assim tão difícil? — Com isso, ela desapareceu rumo à sala. Lauren sentiu que as têmporas começavam a latejar. Quer estivesse falando com Amy ao telefone, ou conversando sobre algo pessoalmente, acabava ficando irritada com a irmã. Parecia um talento especial seu. E como tudo o mais que se referia à sua família, não sabia o que fazer a respeito. Permaneceu na banqueta junto ao balcão, absorta. So­zinha, enfim, os pensamentos que tentara reprimir vol­taram à tona. Dean Connell... Na verdade, ele a reconhe­cera; provavelmente desde o primeiro minuto. Era estra­nho, mas o fato não lhe causava nenhuma satisfação. Tudo o que podia pensar era em quem seria agraciada com aquela caixa de bombons. Uma mulher... Fora o que o levara de volta a Hurricane Beach? Pelo que Lauren entendera no passado, ele conhecera poucas pessoas na cidade. Morara no Estado do Novo México, indo apenas passar os verões na casa dos avós em Hurricane Beach, mas sempre fora vago quanto a isso. Ela soubera bem pouco de sua vida pessoal, o que o tornara ainda mais interessante e misterioso na época. No verão em que completara quinze anos, vira-o pela primeira vez, caminhando pela praia. Fora tímida demais para tentar uma aproximação. Apenas ficara parada lá, observando o sopro da brisa em seus cabelos pretos e o tom bronzeado de seus ombros largos sob o sol. Parecera tão inatingível, um rapaz com o qual apenas se sonhasse. Mas, então, Dean voltara à cidade no verão seguinte tam­bém, na época em que Lauren fizera dezesseis anos. Com um suspiro, ela se levantou para verificar o molho caseiro de tomate. Vendo que poderia apurar um pouco mais, mexeu-o com uma colher, ainda o deixando no fogo. — Eu disse a Amy que ajudaria com o almoço. Ela está me tratando com luvas de pelica, mas sou perfeita­mente capaz de fazer um espaguete. Lauren sobressaltou-se com a voz da mãe atrás de si. — Mamãe... olá — disse, num tom contido. Ela e Mary Anne já haviam trocado saudações um tanto desconfortá­veis naquele dia, mas nada do que haviam dito dissipara a antiga tensão entre ambas. Lauren nunca tivera discus­sões ou diferenças de opinião com a mãe. Não, era algo mais sutil do que isso, como uma incapacidade que ti­vessem de ir além do superficial uma com a outra. Mesmo na infância, Lauren controlara quaisquer extremos de emo­ções diante de Mary Anne, sabendo instintivamente como con­tê-las. Talvez apenas quisesse agradá-la. Afinal, sua mãe sempre fora uma mulher tão calma e graciosa. Tentara contentá-la, aperfeiçoando seu papel como a filha quieta, complacente. Mas, então, completara dezesseis anos e fizera algo que nenhuma filha obediente deveria. Fora longe demais com Dean Connell... tão longe que um mun­do novo e assustador se descortinara diante de si. Se ao menos pudesse ter confiado aquilo à sua mãe! Mas o condicionamento que impusera a si mesma na infância fora forte demais. Assim, continuara fingindo que era a filha comportada, a que não causava nenhum problema. Ninguém soubera de seu medo. Nem seus pais, nem as irmãs. Estivera sozinha no meio de sua própria família, mas aquilo parecera bem melhor do que correr o risco de perder o amor de todos. Na época, não pudera imaginar nenhum deles continuando a amá-la depois, caso a ver­dade fosse descoberta. Era adulta agora, não a garota vulnerável do passado. O que lhe acontecera aos dezesseis anos era algo que fora enterrado havia muito... não havia sentido em re­velar aquilo depois de tanto tempo. De qualquer modo, a cuidadosa polidez que ela e mãe tinham cultivado du­rante anos começava a se desgastar. Sim, havia uma inegável tensão que se manifestava nas pausas descon­fortáveis, nas frases que ficavam no ar. Lauren se perguntou o que aconteceria se, algum dia, tentasse ter uma con­versa de verdade com a mãe. Não sobre sua vida pessoal, claro... seria algo verdadeiro demais. Mas havia vários outros assuntos que talvez pudessem levá-las a um enten­dimento menos superficial. Mary Anne ficaria horrorizada com a possibilidade? Será que conversava sobre emoções com alguém? Ou será que o problema existia apenas entre ela e a filha caçula? Lauren acabara se distanciando tanto de toda a família que não tinha nenhuma dessas respostas. — Eu disse a Amy que eu e você poderíamos terminar aqui — prosseguiu Mary Anne. Adiantara-se até a pia, onde preenchera uma grande panela com água e colocava-a para ferver. — Ela precisa passar mais tempo com Luke. Lauren lançou um olhar para a sala de estar. Luke e Amy estavam sentados juntos a um canto do sofá, conversando com Patrick. Ou melhor, os dois trocavam um olhar apai­xonado, enquanto ele tagarelava. — O seu Patrick parece ser um bom homem — co­mentou Mary Anne. Aquelas eram as mesmas palavras que Amy usara: o "seu" Patrick. E aquilo ainda aborrecia Lauren. Lembrou a si mesma quanto tinha sorte em estar com alguém como ele. —   Sim — assentiu. Procurando dissipar tais pensa­mentos, elaborou: — E tem bastante consideração tam­bém. Afinal, não precisava ter me acompanhado nesta viagem. Teve que agendar de novo alguns compromissos profissionais para poder vir. O que significa que é soli­dário. E responsável. —   Fico feliz por você, querida. Ele me parece uma ótima pessoa, exatamente o tipo de homem que você me­rece. — Mary Anne declarou tais palavras num tom formal, como se estivesse parabenizando uma simples conhecida. Sua expressão calculada não denunciava nada além de benévolo interesse. Lauren foi tomada por uma onda de irritação que a surpreendeu por sua intensidade. Mais uma vez, perguntou-se como seria ter uma conversa de verdade com a mãe. Talvez já fosse tempo de descobrir.
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