02

2797 Words
A propriedade pareceu rebuscada como sempre a Dean Connell. Gramados aparados, jardins bem-cuidados, arbustos meticulosamente podados... o lugar dava a impressão de ter recebido tratamento com­pleto do salão de beleza local. Uma cerca baixa e trabalhada, pintada de um branco impecável, circundava todo o grande terreno. No centro, havia uma casa que sempre parecera a ele um cartão-postal de uma câmara de comércio... a residência de sua avó, Beatrice Connell. Ignorando a dor fraca, mas persistente nos joelhos, nas costas e no ombro direito, Dean adiantou-se pelo caminho revestido de ladrilhos até a porta da frente. Perguntava-se, não pela primeira vez naquele dia, o que diabos estava fa­zendo ali. Claro, havia recebido um telegrama da avó, implorando-lhe para "abrir mão do exílio que impusera a si mesmo por tempo o bastante para ajudá-la a colocar seus assuntos em ordem". Vovó Connell, ao que parecia, estava se preparando para deixar esse mundo na tenra idade de oitenta e um anos. Não que não se tratasse de uma situação digna de compaixão e respeito. O detalhe era que ela já estivera ameaçando dar o último suspiro com exasperante freqüência durante a última década e meia. Bea sempre fora do tipo dinâmico, atarefado. Na ado­lescência, Dean passara muitos verões ali no golfo aju­dando a avó a cuidar de seus ostentosos jardins. Olhando para trás com certa relutância, admitia que não fora ado­lescente dos mais fáceis de lidar. Assim, sem dúvida, fora um alento para seus pais enviá-lo à Flórida durante os meses quentes do verão. Para ele, tinham sido meses de rigorosa disciplina, passados sob o pulso firme de vovó Connell. Mas, enfim, descobrira as garotas de Hurricane Beach. E uma delas fora Lauren MCCALISTER... Como adolescente, Lauren fora bonita, mas insegura. Pa­recera incerta com relação a tudo que fizera, parecendo esperar a permissão de alguém para se divertir. Ainda assim, não houvera o menor vestígio de insegurança nela na drogaria naquela manhã. Mostrara-se calma e sob ab­soluto controle. E seus traços graciosos mas ainda juvenis haviam desabrochado em genuína beleza. A nova confiança em seus olhos castanhos tornavam-nos mais expressivos e interessantes. Os cabelos tinham um corte moderno, de comprimento médio, e haviam escurecido ligeiramente, ad­quirindo um tom incrível de loiro mel. O corpo de garota transformara-se no de uma mulher sensual. Dean sentiu o despertar de alguma antiga emoção, mas manteve-a a distância. Seus verões em Hurricane Beach pertenciam a uma outra vida. E Lauren MCCALISTER também. Ignorando a campainha da avó, ele bateu à porta. Chamou-a algumas vezes: — Bea. Sou eu. — Sem esperar por uma resposta, abriu a porta, que nunca ficava trancada, e entrou. Quando se adiantava pelo vestíbulo, viu-a descendo as escadarias. Para uma mulher que ameaçava morrer, aparentava o vigor de um corredor olímpico. —  Pelos céus, Mathias T. Connell, pretendia anunciar sua chegada à vizinhança toda? —  É bom ver você também, Bea. Oh, e a propósito, não há de quê — disse ele estendendo-lhe a caixa de bombons. Apesar do típico cenho franzido, vovó Connell quase abriu um sorriso. — Bombons? Ora, Dean — disse ela, enquanto lhe tirava a caixa da mão. — Não era preciso. Você sabe que não poderei comê-los. Vão ficar mofando no armário. Dean conteve um riso. O fraco de vovó Connell por bombons era quase lendário. Encaminhando-se até a sala de estar, desabou, can­sado, numa poltrona. — E então? O que lhe deu desta vez? Toda essa con­versa sobre colocar seus assuntos em ordem... As rosas da velha Waverly superaram as suas outra vez? Ou o sr. Potts derrotou você no jogo de bingo? Sentada no sofá, Bea Connell já abrira a caixa de bom­bons e desembrulhava um. — Mathias, não seja rude. Janet Waverly é três anos mais nova do que eu. Se ela é uma "velha", então sou um dinossauro. — "Tiranossauro"... "Tiranossauro" Connell. Exceto que você é teimosa demais para estar extinta. Vovó Connell chegou a sorrir dessa vez, embora Dean desse por falta do costumeiro brilho em seus olhos. — Meu doce Mathias. — Bea inclinou-se, apanhando um pote de cristal da mesa de centro, onde despejou os bombons da caixa. A danada já estivera com um reci­piente separado e à espera... — Você sabe, meu rapaz, seu avô Mathias sempre teve muito orgulho de você. "Não foi mesmo ótimo lhe colocarem meu nome?", costumava dizer. "E um garoto tão esperto". — Deve estar brincando. Vovô Connell m*l me dizia duas palavras além de me lembrar que vagaroso eu era quando ia ajudá-lo lá na fundição. "Ande mais depressa, Dean. Nunca vi ninguém trabalhar tão devagar em toda a minha vida. Tem certeza de que não está dormindo em pé? Mexa-se, garoto!" Bea lançou-lhe um olhar de reprimenda. — Esse era apenas o jeito dele, ser exigente com aque­les a quem mais amava. Primeiro com seu pai... depois com você. Seu avô amava você demais. Diante da menção a seu pai, Dean sentiu uma instan­tânea tensão. Era perigoso deixar que as lembranças vol­tassem. Se começasse a pensar nele, pensaria nos demais também. Não podia permitir que isso acontecesse. Agia como de costume em momentos iguais àquele. Com força de vontade, bloqueou o passado e concentrou-se firmemente no presente. Tornando a estudar a avó, notou-lhe os olhos marejados. — O que aconteceu, Bea? — Dean levantou-se, agachando-se diante dela. — Está tudo bem, não é? Mas a única resposta que recebeu foi um abraço; um abraço frágil e terno de sua avó Connell. Enquanto separava pratos, copos, talheres e arrumava a mesa para o almoço, Lauren observou Mary Anne colocando o espaguete na água fervente. — Sabe, mãe — disse, num tom casual —, não é sempre que todos temos a chance de nos reunirmos. — Percebo isso, acredite — assentiu Mary Anne, parecendo saudosa. — Por tantas vezes desejei ter vocês três aqui. Você, Amy e Maggie. — Ela virá na semana que vem — lembrou-a Lauren. — Seu desejo se realizará. — Não por completo. Seria tão melhor se vocês três pu­dessem morar perto. Poderíamos voltar a ser uma família. — Acho que é tudo que queremos. Voltar a ser uma família. — Lauren esperava ter soado sincera. A verdade era que passara a última década tentando manter o má­ximo de distanciamento possível da família. Esse, porém, não era o ponto da discussão. — Penso muito nisso — murmurou Mary Anne, mexendo o espaguete distraidamente por alguns momentos. — Lembro-me bem de como vocês três vieram ao mundo quando eu já havia até perdido as esperanças. Vocês fo­ram as minhas dádivas inesperadas e preciosas. Primei­ro, uma surpresa feliz; depois outra... e mais outra. Eu não podia acreditar no quanto tivera sorte. Ter sido aben­çoada não com apenas uma linda garotinha, mas três, como para compensar todos os anos sem conseguir ter filhos. Lauren já ouvira aquelas palavras com freqüência. Eram parte do repertório MCCALISTER, tão familiares quanto as histórias que Mary Anne lera para as três filhas dormirem. Mas costumara dizer: "vocês foram nossas dádivas", dei­xando claro que ela e o marido tinham ficado radiantes com o tão desejado e tardio nascimento das filhas. Nos últimos tempos, porém, qualquer menção a John Paul MCCALISTER parecia ser deixada propositadamente de lado. — Mamãe, você sabe o que estou querendo dizer. Não podemos voltar a ser uma família sem papai. — Pronto, pensou Lauren. Abordara o assunto. Não fariam mais de conta que o pai simplesmente desaparecera. — Acho que o molho já está no ponto — disse Mary Anne, ignorando-lhe por completo o comentário. — Vou tirá-lo do fogo. — Mamãe — tentou Lauren outra vez. — Se você falar a respeito, talvez ajude. — Não há nada para falar. Exceto o fato de que estamos todos famintos. Hum... o molho do espaguete está uma delícia. Por que não experimenta? — O sorriso de Mary Anne pareceu forçado. Ela não perdera nada de sua suave beleza ao longo dos anos. Sua pele, apesar das marcas do tempo, tinha uma bela tonalidade rosada. Lauren se lembrava bem das vezes em que, quando criança, sentara no colo de sua mãe e lhe tocara a face macia. Mary Anne sempre fora afetuosa com suas crianças. Se as palavras nunca tinham fluido naturalmente entre ambas, sempre houvera abra­ços e beijos. — Ouça, isto simplesmente não está certo — persistiu ela. — Eu sei que papai quer estar do seu lado. Quero dizer, essa discussão toda acabou fugindo do controle! Se a propriedade está causando tantos problemas a vocês... simplesmente a vendam. Livrem-se dela. Então, talvez vocês possam... eu não sei, viajar juntos. Vá co­nhecer alguns dos lugares sobre os quais sempre falou. — Você acredita mesmo que isto entre nós é apenas por causa do impasse quanto a vendermos ou não a pro­priedade? É o que acha? A pergunta pegou Lauren de surpresa, pois esperara outra evasiva. E realmente não sabia o que pensar. Na última primavera, fora Amy quem lhe telefonara em Connecticut e a informara que seus pais estavam enfrentando uma crise conjugal. Nos poucos meses que se seguiram, o cen­tro da questão viera à tona: o representante de uma construtora de Atlanta, chamado Palmer Boyce, queria comprar a extensa propriedade de frente para o mar dos MCCALISTER, incluindo a casa em que Mary Anne e John Paul haviam criado as três filhas. E os dois não pareciam ter chegado a um acordo quanto a decisão sobre o assunto. Naturalmente, Lauren se perguntara se esse desenten­dimento era ou não o único problema entre os pais. Mas eles sempre tinham parecido tão devotados um ao outro... e estavam casados havia quase cinqüenta anos, afinal. Que outro problema poderia haver? — Sou uma boa ouvinte — declarou Lauren, procurando manter um tom casual. — Ao menos é o que já me dis­seram. Talvez possa comprovar por si mesma. Por um momento, ela teve certeza de flagrar um lam­pejo de dor nos olhos da mãe. Mas, então, viu-a sacudindo a cabeça com firmeza. — Eu já lhe disse. Não há nada para falar. Agora, que tal se escorrer o macarrão daqui a pouco para mim, enquanto vou dizer ao pessoal na sala que o almoço está quase pronto? Lauren viu o momento lhe escapando, mas não sabia como fazer sua mãe abrir seu coração. Havia algo novo em Mary Anne recentemente, um certo ar implacável que demonstrava vez ou outra; algo que destoava de sua antiga doçura. Vendo-a afastar-se, Lauren perguntou-se por que parecia não conseguir conversar com ninguém de sua família. Falar com pessoas que tinham problemas e ouvi-las tornara-se sua especialidade. Seu doutorado em psicologia tinha-lhe dado as credenciais que precisava. Mas também era-lhe algo intuitivo saber quando estimular uma ado­lescente relutante, a falar, ou quando deixar o silêncio cumprir sua função. Era até hábil como mediadora entre adolescentes e seus pais. Por quê, então, não conseguia conversar com uma única pessoa da própria família? —  Hum... o aroma aqui está tentador — disse Patrick, adiantando-se pela cozinha. — Estou começando a sentir o apetite voltando. Já estou bem melhor. O remédio que me comprou nesta manhã surtiu efeito. —  Oh, que bom. —  Deixe-me ajudá-la a escorrer esse macarrão — ofereceu-se ele, aproximando-se da pia. — Já lhe contei que trabalhei como ajudante de chef'uma vez, não é? Eu tinha apenas quinze anos, mas já labutava num restaurante seis noites por semana. Lauren ouvira sobre cada um dos empregos de Patrick na adolescência. Tinha todo o direito de se vangloriar do fato de que trabalhara desde o colegial e durante a fa­culdade para custear os estudos e, depois, abrira seu próprio negócio. Agora, possuía três lojas de trancas e fechaduras em Connecticut, com planos para abrir uma quarta. Se queria explicar pela centésima vez que fora assistente de chef, empacotador, frentista ou caixa... com certeza, tinha todo o direito. Depois de ter escorrido o espaguete, ele se adiantou até o fogão para provar um pouco do molho, e Lauren disse a si mesma que era melhor aprender a relaxar seu ma­xilar rijo. —  Hum... Sua irmã é uma ótima cozinheira. E uma pena que você não tenha aprendido algumas dicas com ela. —  Amy tem todos os tipos de talentos. Talvez você acabe descobrindo que escolheu a irmã errada... exceto que ela já está definitivamente comprometida. No mesmo instante, Patrick pareceu arrependido. — Doçura — disse-lhe, enquanto a abraçava pelos om­bros. — Eu estava apenas brincando. Gosto de cozinhar para nós quando é preciso. Você tem coisas mais impor­tantes a fazer. Ele demonstrava simultaneamente várias de suas me­lhores qualidades: era um homem que não„se importava em assumir tarefas na cozinha; respeitava a imersão dela na carreira, nunca reclamando sobre o excesso de horas que dedicava ao trabalho. Era também dono de grande percepção. — Sabe — começou ele —, você está agindo de uma maneira peculiar desde hoje de manhã. É como se algo a estivesse preocupando. — Eu avisei você que essa viagem não seria fácil. Mi­nha família e eu... Vamos apenas dizer que não sabemos como lidar um com o outro. — Não... É mais do que isso. Você está agindo de ma­neira estranha desde que voltou à pousada nesta manhã. Está zangada com o fato de eu ter ficado doente e feito você cuidar do resto. — Bobagem. Você nem sequer ficou doente. Apenas teve uma pequena indigestão. E não me custou nada ter saído para lhe comprar um remédio. Fico contente que tenha melhorado. — Lauren se desvencilhou do abraço e foi inspecionar a mesa para ver se não se esquecera de nada. Patrick recostou-se no balcão. — Há algo mais incomodando você. Pode se abrir comigo. Ali estava ele novamente... avaliando suas emoções. — Não é nada — murmurou Lauren. — O que aconteceu nesta manhã? — insistiu o namorado. — Não seja tolo... Patrick tinha aquela expressão no rosto, a que dizia que estava na trilha da descoberta. Era quando se tornava mais persistente, ao especular acerca das emoções dela. Se percebia.que algo a estava aborrecendo, ainda que ligeiramente, parecia considerar seu dever trazer a ques­tão à tona e resolvê-la. Se com isso a submetia a uma verdadeira tortura, achava que era apenas um m*l ne­cessário. — Nesta manhã, nós estávamos relaxando na pousada, tendo uma ótima manhã. Exceto por meu estômago, é claro. Então, você saiu para me comprar algo na farmácia. Desde que voltou, tem estado... diferente. Parece tensa. — Quer esquecer? Eu simplesmente não gosto de estar nesta cidade. — Deixe-me mostrar-lhe. — Ele tornou a abraçá-la pelos ombros. — Viu? — disse, triunfante. — No instante em que a toco, aí está. Você retesa o corpo. E se não estou enganado, nos próximos instantes vai encontrar uma desculpa para se soltar do meu abraço. Lauren precisou fazer algum esforço para não se soltar. Lembrou a si mesma que aquela era uma das principais qualidades que a atraíra em Patrick logo no início: a sen­sibilidade dele às suas necessidades emocionais. Quantos homens podiam afirmar que possuíam semelhante dom? —  Está fazendo tempestade em copo de água. —  Bem, se fosse apenas a cidade que a estivesse in­comodando, você teria começado a agir de maneira es­tranha desde ontem quando o avião pousou. Mas não... Foi algo que começou nesta manhã... —  Pelos céus! — Tarde demais, Lauren deu-se conta de que elevara a voz. Os ocupantes da sala, Amy, Luke e Mary Anne, viraram-se com olhares curiosos na direção da cozinha. Ela respirou fundo e, quando tornou a falar, sua voz soou quase num sussurro: —  Sabe qual é o seu problema? Você não sabe como tirar férias. Quando não está trabalhando, simplesmente não tem o bastante com que ocupar a mente. —  Você sabe que há algo que quer me dizer — sussurrou ele de volta num tom de cumplicidade. — Andou me enviando esses pequenos sinais, e coube a mim inter­pretá-los. Por alguma razão, parece não poder me dizer como se sente. Quer que eu assuma a responsabilidade de extrair a confidência de você. É um problema de comunicação. —  Aquela foi a gota d'água. Lauren soltou-se do abraço e virou-se para confrontá-lo. —  Eu deparei com alguém na drogaria, está certo? Uma antiga... amizade. Foi um encontro inesperado que me fez refletir sobre algumas coisas. Apenas isso. Não há nenhum mistério. Foi um incidente corriqueiro. — A última parte, porém, era mentira, pensou ela. Não havia nada de corri­queiro em suas lembranças sobre Dean Connell. — Homem ou mulher? — perguntou Patrick. — O quê? — Essa sua antiga amizade — disse ele, com exagerada paciência. — É homem ou mulher? — Homem — respondeu ela entre dentes. Patrick abriu um sorriso triunfante. — Ah... então, agora chegamos ao fundo da questão. Você acabou deparando com um antigo namorado. E isso a está incomodando ao extremo.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD