Capítulo-VI. Beija-flor.
"... saudade de um beija-flor, lembranças de um antigo amor..."
Varuna
Dois dias depois...
Estou perdido em meus pensamentos, olhando o mar da varanda do meu quarto. Seguro um copo de bebida na mão. Uma música toca ao fundo, a noite é minha companheira e a lembrança dela, o meu fantasma.
— Essa p*rra só pode ser t*são. A novidade de alguém fora dos meus gostos me atrair... — falo sozinho, tentando me convencer de que é algo apenas da carne.
Dou um gole no uísque. Olho para a carteira de cigarros sobre o tampo da mesa. Me aproximo, pego um, acendo. Dou um trago profundo e solto a fumaça devagar.
Escuto o barulho das ondas quebrando no mar. Olho o relógio: quase vinte e duas horas. Suspiro, pego o celular do bolso da calça de moletom. Procuro o número de Everaldo. Quero notícias.
No terceiro toque, meu primo atende.
— Fala, galego. Espero que tenha guardado bem as suas plantinhas. Se a tia Anick jogou tudo no esgoto, vai se virar sem nada. 'Tô' fora, entendeu?
Ele anda assustado desde o "aperto" que dei nele sobre estar envolvido com o tráfico da região. Dou outro trago no cigarro, solto a fumaça bem devagar. Uma calma me envolve, embora algo em mim continue agitado.
— Não te liguei por essa razão.
— Então qual é a da vez?
— A menina. O que descobriu?
Coço a sobrancelha direita com o dedo anelar. Dou alguns passos pela varanda e me debruço sobre o guarda-corpo. Olho para a água límpida da piscina.
— P*ta que pariu! Ainda não desencanou da desconhecida? Galego, não tenho GPS de ninguém. Como vou saber quem é essa garota? Não tenho bola de cristal, só duas que estão pedindo alívio. P*rra, tá f*da conseguir alguma coisa diferente por aqui.
— Eu te pago bem, você sabe disso. Vai ganhar mais do que sendo aliado de traficante — jogo duro.
— C*ralho! Esse assunto de novo? Não vou te responder.
— Quero saber o final dessa história. Não quero conviver com a dúvida. Ela me atraiu, foi coisa de t*são, e você sabe: quando uma mulher mexe desse jeito com a gente, o lado caçador desperta.
— Sim, mas você quer o impossível, Varuna. Já rodamos essas ruas feito dois loucos e nem sinal da menina. Talvez ela já tenha até ido embora.
Ouvir essa suspeita fez minha pele arrepiar, mesmo que algo dentro de mim dissesse o contrário. Dei outra tragada, meus olhos se perderam na escuridão do mar. Puxei mais uma vez outro trago, meu corpo em estado febril — minha carne ainda não retornou à temperatura normal desde aquela febre absurda sem causa aparente.
— Ela não foi — afirmo, com a voz tomada de convicção.
— Como pode ter tanta certeza? Esse lugar é o paraíso dos turistas. Eles amam as dunas, as paisagens, as lagoas, as ruínas... aqui não falta o que conhecer. Mano, esquece. Procura outra. Tem tantas. E você, com essa carinha de galã, sorriso de ator das nove e olhos verdes, vai fazer fila. É só estalar os dedos e as calcinhas estão no chão, sabe disso. Não precisa ficar quebrando cabeça.
— Eu quero aquela menina — pontuo.
— Tu é um nó cego da p*rra... vou ver com uns conhecidos e... desgrama, Varuna, não temos nem uma foto da garota!
— Eu resolvo isso. Daqui a pouco te envio um retrato falado.
— Quê?! Ficou l**o? Vai desenhar a cara da mulher?
— Vou.
— Eita força de vontade pra comer um r*bo. Tá maluco! Não faço essa p*rra mesmo. Tenta fazer o desenho e me envia. Vai sair caro, hein! E' vê ' se não faz garrancho, que é bem capaz de alguém mandar eu enfiar a imagem no c*.
— Eu pago, não se preocupa. Coloca os teus traficantes pra revirar esse lugar, Everaldo.
Ele desliga, provavelmente contrariado. Entro. Vou até minha mesa perto da parede de vidro, pego uma folha e um lápis grafite. Sento à mesa da varanda, olho para o papel. Por um tempo, fecho os olhos e a imagem dela surge nítida, como se estivesse ali, na minha frente. Minha respiração se intensifica. É como se eu pudesse erguer a mão e tocá-la. A força que me impele a ir atrás dessa menina é magnânima. Sinto novamente aquele cheiro inexplicável que senti dentro do carro.
Travo os dentes, o corpo inflamando lentamente, estremecendo com calafrios.
Abro os olhos. Pego o lápis e ele escorrega pelo papel, enquanto a ponta do cigarro aceso solta uma linha fina de fumaça no cinzeiro.
Levo alguns minutos, fazendo traço por traço. Ela vai nascendo, tomando forma. Dedico mais tempo aos olhos, que me são estranhamente familiares... Mas como? Como?
Paro, analiso, retoco os lábios. Desenho cada pequena fissura. Observo, repouso o lápis e ergo o desenho.
— Quem é você que despertou essa curiosidade em mim? Por que seus olhos me parecem familiares?
Pego o celular, uso um aplicativo de escanear e envio a imagem para Everaldo. Deixo o desenho sobre a mesa, volto a observar o horizonte. O vento traz o cheiro da praia, o barulho do mar como se ele tecesse uma longa conversa com o céu noturno.
E o mais estranho é essa saudade louca que sinto. Como se ela me pertencesse há muito tempo e tivesse ficado longe, só agora estivesse voltando.
Passo a mão pela cabeça e sorrio, incrédulo com tudo isso. O problema é se ela já tiver alguém... Aquele tipo de pessoa que faz esquecer todas as outras. Aí, sim, será difícil entrar na vida dela.
Quero aquela menina. Desejo saber como beija, como sorri. Preciso ouvir o som da sua voz, sentir modo como abraça, escuta os gemidos quando tr*nsa. Quero desvendá-la. Tenho essa necessidade em mim. É algo que berra, que grita.
Fiquei preso naquele olhar. No brilho dos olhos dela. Nos contornos suaves do seu rosto. É como se tivesse me reencontrado e me perdido, muito insano e intenso.
— Alguém precisa explicar o que está acontecendo comigo. Mas quem?
Estou perdido. Não posso levar isso ao conhecimento dos meus por uma razão bem óbvia.
Suspiro frustrado. Pego o desenho, o celular, entro no quarto e me jogo na cama, admirando o retrato que fiz dela. Percorro as linhas com a ponta do meu indicador.
— Você vai ser minha, assim como esse desenho que está nas minhas mãos.
Olho para ela como se fosse a maior saudade que carrego. Tudo muito estranho.
— Vem pra minha vida. Eu te quero entre o fogo e o desejo. Meus olhos estão em você. As outras não me interessam. — Meu dedo para nos lábios dela. Me pergunto como será beijá-los, como será sentir seu cheiro direto da curva do pescoço.
Ergo-me e guardo o desenho dentro da pasta de couro onde trouxe alguns documentos. Retorno para a cama, sentindo um frio na barriga, uma tremedeira discreta no corpo.
Meus olhos se fixam no teto. Passo a mão por baixo do travesseiro e retiro uma gaita de boca. Toco uma canção. Penso nela, na menina dos cabelos castanhos.
Escuto alguém abrir a porta. Sei quem é, por isso não me levanto.
— Que canção linda, filho. Melancólica, mas linda!
Olho em sua direção. Anick senta na beira da cama.
Sinto uma vontade imensa de pegar o carro e ir atrás dela. Mas onde? Onde ela está?
Anick canta, uma música que fala sobre flor e beija-flor. Quando encerro, minha mãe sorri com os olhos.
— Você sempre toca lindamente. Mas hoje... senti que tocava com a alma, com uma energia incomum. Tem alguma coisa acontecendo?
— Não... só senti vontade de tocar — minto. Não quero trazer à tona que estou praticamente obcecado por uma desconhecida. Sei como reagiriam. Não seriam amigáveis, muito menos compreensivos.
— Anda tão quieto esses dias. Você não é assim, Varuna. Está mais calado, pensativo. Quando não está preso nesse quarto, vai à praia, senta na areia e passa horas olhando o mar...
O olhar dela é de extrema preocupação.
— Estou bem, mãe.
— Eu sei que não se sente à vontade aqui, que prefere São Paulo e...
Estranhamente, algo desperta em mim. Não me sinto mais deslocado por causa dessa inquietação. Voltar para São Paulo o mais rápido possível não está entre os meus planos.
— Gosto daqui, mãe.
— Varuna, meu amor... você não está depressivo, está?
— Não, senhora Anick. Aceita um Mojito de coco? Bebe comigo?
Largo a gaita e levanto da cama.
— Apenas um copo. Seu pai tem um almoço amanhã e quer que eu esteja presente.
— Tudo bem. Faço bem fraquinho pra senhora.
Anick se levanta. Minha mãe me acolhe num abraço longo.
— Eu te amo, meu filho. Meu Varuna.
— Eu sei, mãe. Também te amo.