Não existe prisão que segure um homem como o Heitor por muito tempo, não quando ele é meu. No mesmo instante em que recebi a notícia, já sabia o que precisava fazer. Justiça é uma palavra bonita, mas aqui em cima, no morro, ela só existe quando a gente compra.
Desci pro galpão principal, onde o Vinícius me esperava com o olhar atento, o tipo de olhar de quem entende ordens antes mesmo de ouvi-las.
— Quero contato com o Heitor até o fim do dia — disse sem rodeios. — Sem visita, sem advogado, sem espera. Quero falar com ele direto.
Vinícius franziu a testa, mas não perguntou como. Ele sabe que comigo não existe "como". Só existe "quando".
— Conheço um guarda que já me deve uns favores — respondeu. — Posso fazer o acerto agora.
Assenti com um leve movimento de cabeça.
Enquanto ele pegava o telefone e saía, fiquei observando o mapa do morro pregado na parede, cheio de marcações em vermelho. Cada ponto era uma história, um pedaço de território, uma lealdade comprada com sangue. O Heitor era mais que um nome naquele mapa, era o equilíbrio. Se ele caísse, tudo desandava.
— O guarda aceitou. Disse que resolve em troca de "um agrado" mensal. — Ele fez aspas com os dedos e sorriu. — Até o fim do dia, o celular tá na mão do Heitor.
Peguei um maço de notas do cofre e entreguei sem olhar.
— Não quero rastreio, não quero nome, não quero vestígio. Só quero ouvir a voz dele.
A noite desceu pesada. A favela se iluminava aos poucos, fogueiras improvisadas, janelas piscando, risadas perdidas. Enquanto esperava, sentei no escritório, o ventilador girando devagar, jogando ar quente de um lado pro outro.
Peguei um cigarro, mas não acendi. O gosto do fumo me lembrava de noites antigas, das conversas que eu e o Heitor tínhamos sobre o que faríamos "quando tudo isso acabasse". Mas isso nunca acaba. Nem pra mim, nem pra ele.
Quando o telefone finalmente vibrou sobre a mesa, já passava das nove. O número era desconhecido.
Atendi em silêncio.
— Tô bem, chefe. — A voz dele veio rouca, abafada, mas firme. — Só quero saber o que fazer agora.
Fechei os olhos por um segundo, deixando a tensão escorrer dos ombros.
— Fica quieto. Não reage. Eu cuido daqui. Você só segura a onda.
— Eu devia ter previsto isso. Foi armação, Murilo.
— Eu sei — interrompi. — E eu vou descobrir de quem.
Por um instante, o silêncio entre nós pesou mais do que qualquer palavra. Lealdade não precisa de muito, só de um fio de voz e a certeza de que o outro não vai te abandonar.
— Obrigado — murmurou, quase num sussurro.
— Não me agradece. — A minha voz saiu firme, seca. — A gente se deve isso desde sempre.
Ele estava mais calmo, a respiração firme, tentando não deixar transparecer o medo que devia estar ali, orgulho é uma peste que cobre até a traição. Mesmo assim, quando ouvi a voz dele, havia algo diferente: um fio de urgência escondido atrás das palavras.
— Chefe — começou Heitor, a voz arranhada pelo ar de cela. — Preciso de um favor.
Fiz silêncio. Favores em situação assim não são pedidos. São ordens disfarçadas de apelo. E eu sei ler as entrelinhas melhor que ninguém.
— Fala. — A minha resposta saiu curta, direta. Não por frieza, mas porque tempo é mercadoria que não se desperdiça.
— É a Bárbara. — A palavra saiu baixa, como se tivesse soprado uma chama que pudesse apagar. — Não quero que ela fique perdida no meio disso tudo. Ela não tem que pagar por nada do que eu fiz. Por favor... — A última parte veio puxada, sincera, quebrando o resto de retórica dura que o resto da voz tentava manter.
Vi as coisas com clareza imediata: o tom, a escolha das palavras, a verdade nua por trás da proteção. Heitor sempre soube dos riscos, sempre aceitou as consequências por viver desse jeito. Mas havia limites que ele não queria que tocassem nela, a irmã era território sagrado.
— Você quer que eu... cuide dela? — perguntei, sem suavizar. Cuidar é uma palavra vasta nesse mundo, tinha tudo para significar prisão dourada, liberdade monitorada, decisões impostas.
— Sim. — Heitor não hesitou. — Leva ela pro morro. Faz ela sumir, por um tempo. Protege. Não deixa ninguém se aproximar demais. Se alguém perguntar, diz que é ordem sua. Eu confio em você.
Aquela confissão veio carregada de algo que não era orgulho: medo. Medo de perder o pouco que ficou de família, medo do que a cadeia faz com as pessoas quando não há um ponto de apoio lá fora. Heitor sempre fora bruto pra proteger, agora pedia, pela primeira vez, que eu fosse o muro.
Fechei os olhos por um segundo e imaginei garota na varanda do apartamento, o vento no rosto, alheia ao que acontecia. A ideia de tirá-la daquele horizonte me deu um peso novo no peito, um tipo de responsabilidade que eu não costumava aceitar de bom grado.
— Eu cuido — disse, finalmente.
— Eu sei quem mexeu — murmurou. — Não foi armação de fora. Teve alguém de dentro. Promete que vai... que vai olhar por ela com os olhos que eu não tenho agora.
Prometi. Não porque confiasse em promessas alheias, eu prometo pouco, mas porque sabia que aquela voz no telefone precisava ouvir aquilo. Porque, no fim, Heitor e eu já dividimos sangue demais para negar esse juramento.
— Fica quieto aí — ordenei. — Não responde ninguém que tente provocar. Não briga. Quando sair, a gente resolve com cabeça fria.
— Tá. Obrigado, chefe. — respirou aliviado, e por um segundo a dureza se dissolveu. — Diz pra ela que eu... que eu volto.
Desliguei sem resposta imediata. O telefone caiu sobre a mesa com um estalo seco, e eu fiquei olhando pro nada. Cuidar dela. A promessa fez eco no meu peito como uma fera acordando. Não por piedade, não é meu modo, mas porque algumas linhas não se cruzam: família é uma delas, mesmo quando a família é composta por ossos e lembranças queimadas.
Levantei, caminhei até a janela e olhei o morro iluminado. No mapa da favela, já começavam a surgir movimentos, homens indo e vindo, papéis sendo passados, lealdades sendo checadas. Eu tinha trabalho a fazer. Tinha que organizar o que seria o próximo passo: como trazer Bárbara para dentro de um lugar onde ela estaria segura, e, ao mesmo tempo, onde ninguém ousaria quebrar as regras sem pagar caro.
Prometi a Heitor. Agora era hora de cumprir.