A noite chega mansa, pintando o céu da Barra com tons de violeta e laranja. O barulho do trânsito vai se misturando com o som das ondas, e lá do meu apartamento o mundo parece um filme em câmera lenta. As luzes dos prédios se acendem uma a uma, e por alguns segundos eu fico parada na janela, observando. Gosto desse momento do dia, quando tudo começa a desacelerar, mas ainda não é silêncio completo.
Na cozinha, o som do vinho sendo servido na taça se mistura ao clique dos talheres. Um jantar simples, o suficiente pra enganar o estômago: massa com azeite, alho e pimenta. A taça de vinho é o meu pequeno luxo. Uma tradição que inventei pra fingir que tenho tudo sob controle, um brinde diário à minha própria liberdade.
Abro o notebook na mesa da sala e espalho os cadernos em volta. O trabalho de Sociologia está me matando. "As estruturas de poder e desigualdade nas grandes cidades." Ironia pura. Eu, falando de desigualdade, sentada num apartamento que o meu irmão comprou com dinheiro que eu nunca perguntei de onde veio, mas sabia exatamente.
Suspiro, tomo um gole do vinho e começo a digitar. As palavras vêm devagar, misturadas com pensamentos soltos. A cada frase que escrevo, me pego lembrando do Heitor. Ele sempre disse que eu tinha cabeça pra coisa grande, que devia sair daquele bairro antigo e estudar, e eu saí. Tinha acabado de fazer 18 anos, quando ele me trouxe pra barra.
Meu irmão nunca me deixou livre no morro, nunca. Era da escola pra casa, e só. Não lembro de ter uma amiga se quer, no Vidigal. Sem contar as meninas que se aproximavam de mim por causa do Heitor.
Ele dizia que eu não era mina de “rua” que deveria continuar assim. E quando fiquei de maior, ele me deu um lar e faculdade. Mas ele nunca deixou de me observar de longe, como um guardião invisível.
O celular vibra ao lado do notebook. Uma mensagem dele:
"Cheguei no ponto. Tá tudo tranquilo. Se cuida, pequena."
Sorrio. Respondo rápido, como sempre:
"Tô estudando e tomando vinho. Você devia tentar um dia."
A resposta vem quase instantânea, como se ele estivesse esperando:
"Beber, eu bebo. Estudar, já é outra história."
Dou risada sozinha. A gente briga, implica, mas a verdade é que ele é meu porto seguro. Mesmo sem entender metade das minhas escolhas, o Heitor sempre me protegeu do jeito dele, meio bruto, meio torto, mas sincero.
O relógio marca quase dez da noite quando fecho o notebook. O som do mar ainda entra pela varanda, misturado com o ruído distante da cidade. Lavo a taça e deixo secar virada na pia, enquanto canto baixinho uma música que nem lembro o nome.
Sento no sofá, descalça, enrolada num cobertor fino. A brisa entra pela janela, e por um momento me sinto exatamente onde deveria estar. Nenhum problema pra resolver, nenhuma urgência.
A vida, naquele instante, é um mosaico de coisas pequenas: o cheiro do vinho, o brilho suave da cidade, o som do ventilador girando, o conforto de estar sozinha e em paz.
Espreguiço no sofá, alongando as pernas e sentindo o silêncio confortável do apartamento, o tipo de silêncio que só existe quando a gente mora sozinha.
As luzes da cidade piscam pela janela como se o mundo lá fora ainda estivesse acordado, mas aqui dentro o tempo desacelera. A louça do jantar está na pia, a taça vazia no escorredor, e o cheiro de alho ainda paira no ar, misturado com o perfume leve de lavanda que deixei no difusor da sala.
Levanto e caminho até o quarto, tirando a blusa enquanto passo. O espelho do corredor devolve minha imagem com o cabelo bagunçado e as olheiras de quem estuda demais, nada glamouroso, mas real.
Ligo a luz do banheiro e deixo a água do chuveiro esquentar. O vapor começa a tomar conta do espaço, e o som constante da água caindo cria um tipo de paz automática.
Deixo o vinho e os pensamentos escorrerem junto com a espuma. É nesses momentos sozinha que tudo parece mais simples: o futuro, a faculdade, até o Heitor e sua mania de querer controlar o mundo.
Penso em como ele é exagerado às vezes, mas logo rio sozinha. Ele sempre foi assim, o tipo de pessoa que vive com um olho aberto mesmo dormindo.
Quando a água começa a esfriar, desligo o chuveiro e me enrolo na toalha. O apartamento está fresco, iluminado apenas por uma luz suave vinda da janela. Visto uma camiseta larga, amarro o cabelo num coque alto e passo um hidratante que tem cheiro de baunilha. Gosto dessa sensação de pele limpa, roupa confortável e sono chegando devagar.
Deito na cama e pego o celular. Notificações: duas mensagens da Lídia, memes e um áudio de quatro minutos falando sobre o professor "gato demais pra ser casado". Sorrio, respondo com um emoji de risada e deixo o celular na mesinha.
Amanhã acordo cedo pra ir pra academia. Prometi pra mim mesma que dessa vez vou manter o ritmo, nada de pular dias ou inventar desculpas. Quero começar a semana me sentindo leve, disciplinada, viva.
Apago a luz. O quarto mergulha num breu aconchegante. O som distante do mar continua lá, insistente e familiar. A cabeça encosta no travesseiro, o corpo relaxa, e o mundo inteiro parece suspenso por alguns instantes.
Respiro fundo e deixo o sono me levar. Sem pressa. Sem medo. Amanhã vai ser só mais um dia normal.