Capítulo 4

1721 Words
Colíder Tempos Atuais    Tocava uma música dos anos 50 quando ela desferiu a primeira machadada no corpo do maldito stalker. Will You Love me Tomorrow?, na voz feminina e melancólica das The Shirelles, grudava nas paredes do porão do prédio onde ela morava. A porta trancada. A lâmpada de sessenta watts oscilando pendurada no teto. Nada de lustre nem qualquer adorno; apenas um cômodo de cimento sem reboco onde se guardava quinquilharias dos inquilinos pagando-se uma pequena taxa para isso. Pois bem, ela não pagaria taxa nenhuma. Deixaria o cadáver apodrecer até ser encontrado pelo zelador ou qualquer infeliz. Mas, agora, vestida na sua capa de chuva de plástico cujo capuz escondia-lhe o cabelo e parte do rosto, a mulher de menos de um metro e setenta, morena, arrasada e também obstinada, descia o machado no meio do pescoço do cara, separando a cabeça do corpo. O sangue esguichou, uma vez que ele ainda não estava morto. Por um segundo, os olhos se abriram expressando pavor. Os olhos na cabeça que ladeava o tronco. Eles viram então, os olhos assombrados, que o braço esquerdo estremecia, os dedos fechavam-se cerrando o punho num gesto de raiva. Até mesmo sem cabeça aquele homem era um perigo, pensou Natasha, inundada de desespero. Havia seis meses que era perseguida de todas as formas pelo cara. Vinte boletins de ocorrência. Desabafo nas redes sociais. Fugas na madrugada para endereços de colegas de trabalho. Mudança de emprego. Nada adiantava. Então o convidou para jantar. Ele topou. Olhos ardentes, ainda vivos, prometiam-lhe a morte depois do s**o. O revólver municiado na mochila, o buquê de rosas na mão, palavras doces ensaiadas. Tudo premeditado para abatê-la sem dor. Tiro na cabeça. Mais uma mulher chispada do planeta à bala. Se você não é minha, não será de ninguém. Seu corpo: minha propriedade. Você não é nada sem mim. Sou louco por você. Ela então só tinha uma coisa a fazer, mas fez duas: dopou-o e o matou. Agora o cortava em pedaços. Passaria boa parte da madrugada cortando carne. Para se certificar de que não seria pega, juntou a cabeça e as mãos e as colocou num saco de lixo preto. Jogou-o no porta-malas do automóvel e rodou pela cidade, distribuindo o presente nas lixeiras públicas. Incendiou o carro num beco. Voltou para o apartamento a pé. O resto do corpo ensanguentado e mutilado deixou no porão. Arrumou as roupas num bolsão de pano, meio hippie, meio encardido. Prendeu o longo cabelo preto, manteve nos pés os tênis sujos de sangue, lavou o rosto. Ingeriu seus comprimidinhos coloridos, gargalhou nervosa, chorou alto e depois se lembrou que devia chorar em silêncio. Tremia. Tremia tanto que não conseguiu sair do lugar. Pensou em se m***r, derrubar todos os comprimidos na goela e se atirar na cama, num canto, no porão com o tronco e os membros do stalker. Morrer junto. A sua vida acabava ali. Não antes, quando ele a perseguia, atormentava-a, telefonava a cada duas horas, mandava cinquenta mensagens por dia, aparecia no seu trabalho, na academia, no supermercado, na esquina, qualquer esquina de onde ela estivesse. Olhou para a cartela de fluoxetina, decidida a acabar com aquilo. Com a d***a. Com o medo. Com a vida de m***a que levava. Não seria pega pela polícia nem pela justiça. Por mais ninguém. Sairia do emprego, sacaria todo o seu dinheiro do banco e sumiria. Vai para aonde, mulher louca? Para o quinto dos infernos, pensou, relaxando totalmente a musculatura das costas.     ∞         Ouviu barulho de passos no corredor. E imediamente olhou para a mesa posta para o jantar. Os pratos vazios e sujos de restos de comida. A saliva do morto na borda do copo. As digitais dele por todo o seu apartamento de quarto e sala no edifício mais alto e mais velho de Colíder. Eram onze horas da noite. Quem iria até o porão àquele horário? Os maconheiros. Não, eles não. Mas os outros drogados, sim. E os caras que arranjavam programas com prostitutas e travestis. Aquele era um prédio de classe média decadente, que se fodera ao longo das décadas. A aparência contava, elevadores panorâmicos, sauna e piscina no andar térreo. Garagem privativa. Segurança 24 horas. Câmeras de vigilância inoperantes, havia-se certificado antes disso numa conversa informal com o cara da portaria. Uma porta foi aberta e depois se fechou. O som de passos cessou, e ela voltou a respirar. Tinha que limpar a mesa e queimar todos os vestígios da visita. Anos atrás, quando morava numa fazenda com os avós paternos, o pai a levou para o galpão que servia de matadouro e lhe disse: ― Para o seu azar, você nasceu mulher, o s**o frágil, precisa então aprender o quanto antes sobre os fatos dessa maldita vida. Ela tinha 12 anos de idade. Usava trança como se fosse uma índia. A pele tostada do sol, olhos imensos, verdes. Magra, muito, do tipo que parecia doente mas não o era. A magreza física revelava a subnutrição emocional. Sempre foi uma faminta, catando migalhas de sentimentos daqui e dali. Ao menor sinal de carinho, enrolava-se em si mesma e ficava do tamanho de que precisava, cada vez menor, esfarelava-se para agradar. A começar pelo pai. Ansiava por sua aceitação. Veja, sou a sua única filha. Veja, eu não choro tanto como a minha mãe. Veja, serei forte e aguentarei os “fatos da vida”. Ele então pegava uma galinha e torcia o seu delicado pescoço. Natasha fechava os olhos. Não podia com aquilo. Veja, eu sou o SEU pai. Você precisa me obedecer. Veja, se não prestar atenção no que tô te ensinando, vou enfiar a sua cabeça na água da privada. Ela precisava manter os olhos bem abertos. Outro dia foi o porco de que gostava, o Bob Cara Suja. ― Não. Por favor. ― Não o quê? Vamos comer grama, é? Seus olhos encontraram os de Bob. Ele pediu para ser salvo. Implorava, pendurado de cabeça para baixo num gancho, o som que saía de sua boca era o som do lamento desesperado. ― O Bob não. ― pediu, num fiapo de voz. Não conseguia desviar os seus olhos do bichinho, o coração crescendo como um balão de gás prestes a explodir. O Bob não. O pai pegou o facão e admirou a lâmina. ― Vou furar o pescoço, o sangue pingará enquanto ele morre. Assim a carne não fica dura. ― comentou, como quem fala sobre uma receita culinária. Bob lançou-lhe um último olhar, grunhiu selvagemente, tentou se soltar do gancho. ― O Bob não. Ele se virou para ela, o bigode preto encimava a boca seca de onde pendia um cigarro barato. ― Um bicho, Tasha. Um bicho criado por Deus para alimentar as pessoas. ― É meu amigo. É inteligente, tem sentimentos. ― procurou não chorar, o choro irritava o pai. Ela era mulher, não podia chorar, senão pareceria duas vezes fraca. ― f**a-se. Voltou-se para o animal gordo, no formato de um barril, o pelo duro encobrindo a pele cor-de-rosa encardida. As orelhas balançavam no ar, e era detrás delas que Natasha o beijava todas as manhãs quando acordava com Bob na sua cama. Não, o Bob não. ― Prometo ser forte, pai. Não precisa m***r ninguém para ser forte, pai. Sou forte, muito forte, pai. Deixa o Bob viver. O pai sorriu, parecendo satisfeito por ouvir tais palavras. ― O mundo é um lugar sórdido, filha. Ele ergueu o facão para enterrar no pescoço do bichinho que era o único amigo dela. O Bob não, pai. Pensou em implorar, nada saiu da sua boca nem o ar. O ancinho acertou em cheio detrás dos joelhos do homem, a força usada o fez se curvar para frente e depois cair de quatro. ― Eu sou forte. ― ela afirmou, ofegando, nervosa e trêmula. Viu-o rastejar para pegar o facão, sem desviar os seus olhos dos dela, admirando-a com raiva e algo indefinível. Medo, talvez. Ela pisou na mão do seu pai. Ele urrou de dor. ― Vou m***r esse bicho hoje ou amanhã. Não adianta bancar a louca, Natasha. Ser forte era ser louca, ela assimilou. Chutou o facão para longe dele. ― Ninguém toca no Bob. Assim que falou, a cabeça de Bob explodiu, o sangue espirrou na camiseta de Natasha, a orelha que ela amava beijar grudou no seu jeans e despois deslizou junto com o sangue grosso. Olhou para trás e viu outra mulher. A avó com a espingarda. A dor a atingiu como um tiro, o soluço subiu à garganta e saiu num urro grosso, um “Nãooooo” que a jogou contra o corpo com metade da cabeça, o sangue ainda jorrando. A força do abraço que deu no animal o arrancou do gancho e ambos caíram no chão. Deitou a testa na barriguinha gorda e sem vida. Não conseguiu chorar. Mas viu quando uma pessoa muito boa e inocente saiu de dentro do seu corpo, foi até a porta do galpão, virou-se para ela e, sorrindo, abanou num gesto de adeus. Natasha levou uma surra por ter atacado o pai e quem bateu nela foi a sua avó e depois a sua mãe. Assimilou que ser forte era ser louca e que as mulheres eram perigosas. Até que começou a namorar um fotógrafo assim que fez vinte anos. Já havia saído de casa aos 17. Fugiu, arrumou as malas, jogou suas roupas simplórias e pensou em trabalhar como stripper. Não precisou, arranjou emprego como atendente de um Café. Alugou um apartamento, conheceu um fotógrafo, trepou com ele, não quis mais, tentou ser educada ao despachá-lo com diplomacia.  O cara começou a persegui-la. As ameaças se intercalavam às declarações de amor. Ele a amava. Ele a odiava. Ninguém parecia disposto a ajudá-la a resolver o problema. Ela sabia que o seu pai estava certo, o mundo era um lugar sórdido. Mas, no fundo, tentava manter o seu coração puro como a pureza do coração de Bob Cara Suja. Sentou na cadeira e deitou a cabeça sobre os braços cruzados na mesa. Chorou novamente. Se o porco estivesse com ela, agora tudo estaria resolvido. Não haveria medo nem dor emocional, e não teria se transformado em uma assassina. Ou o Bob Cara Suja podia comer os pedaços do corpo do fotógrafo.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD