Capítulo 3

1942 Words
Dilan tinha uma pequena fazenda com cinco vacas. Também tinha um galinheiro com vinte aves; ao lado dele, suas codornas. Atrás da casa-sede, que era um grande chalé de madeira contornado pelo alpendre, a plantação de milho e o celeiro onde guardava duas preciosidades. Ao voltar do galpão usado como depósito, encontrou o que havia deixado para trás ao ser preso. Decadência. Tirou o chapéu e o segurou em frente ao corpo como se, com o gesto, rezasse de joelhos diante de uma tragédia. A queda de um avião na sua plantação de milho, por exemplo. Mas não era isso o que havia acontecido. Embora tudo estivesse consumido pelo abandono, pelo mato crescido, pela ferrugem e podridão. Sua fazenda fora invadida, saqueada, os equipamentos roubados, o trator e as ferramentas. Os animais haviam sumido. Todos. A sala da ordenha parecia ter sofrido algum tipo de ação de vandalismo. Garrafas de vodca quebradas. Embalagens de preservativos e seringas atiradas no piso fedendo a mijo. A farra antecedera o roubo. Quem se importaria em respeitar a propriedade de um ladrão? Ainda mais quando estava encarcerado num presídio. Voltou seu olhar desanimado para o celeiro, as portas duplas batiam discretamente convidando para ver o estrago no seu interior. Mesmo assim, precisava acreditar que não tivesse presenteado ninguém com uma Silverado e um Buick Riviera 1964. Doce ilusão! Apertou os maxilares com força e balançou a cabeça devagar se negando a aceitar que uns merdas tivessem se aproveitado de sua situação para lucrar. Tudo que podiam levar haviam levado. Tiveram quatro anos para isso, ora bolas! Os funcionários que cuidavam do plantio do milho haviam partido, e agora somente lhe restava saber como encontraria o seu lar. Mas antes de entrar em casa, ele precisava sofrer mais um pouco. Atravessou a pequena distância de alguns metros e se pôs diante das folhas secas e as espigas sem grãos, o solo escavado e morto. O milharal se curvava à ação devastadora da última estiagem de Sacramento. O deserto ameaçava se expandir ano a ano engolindo a vegetação que esmorecia após tanto tempo sendo queimada. Suspirou pesadamente. Estava tudo perdido e teria que recomeçar do zero. Ao entrar na sua casa, verificou que os vagabundos haviam deixado os móveis ainda encobertos por lençóis duros de poeira. Roubaram apenas o resto, todo o resto. Dilan decidiu que não ia aproveitar a sua primeira noite de liberdade socando a cara dos desgraçados. Sabia quem fizera o serviço, era a vingança de um corno. Mais um corno. Seu celular vibrou e no visor o nome do líder do clube. Trejo o queria de volta nas ruas como motorista dos seus assaltos a banco. Não era decisão de Dilan viver na m***a. Pegou seu Stetson roubado, enterrou na cabeça e saiu porta afora. Voltaria com dinheiro. Muito, por sinal.     ∞     Era um cabron forte que o recepcionou no desmanche de automóveis que funcionava nos fundos de uma oficina mecânica. Tinha o aspecto de um meio pesado do boxe amador. Ou seja, corpo grande e olhos de fome. Ainda assim, Dilan estava cagando pra ele, o tal de Giuliano. Até pensou em argumentar com os três camaradas que o fitavam com suas chaves de f***a, de roda, do d***o na mão. Pedir o seu carro importado de volta. Podia lhes dizer que fora herança de família ou o fruto de um dos assaltos que cometera. Podia inclusive informar que o comprara à época em que o dólar não estava alto. Dilan era bom na arte da argumentação. Mas raramente tinha saco para conversar, juntar sílabas, palavras, frases, um período inteiro, parágrafos cheios de pausas, não, ele não exercia com prazer essa arte. ―Voltei para o Trejo e quero meu carro. Era certo que a moto já estava na Bolívia ou Colômbia. Não adiantava gastar saliva. Lembrando: quatro anos haviam-se passado. Quatro malditos anos na carceragem. Giuliano era maior que os outros dois, por isso tomou a dianteira e matou no peito a situação: ― Tá de deboche? Você sai da cadeia e vem direto pra cá? Quer o quê? Dinheiro emprestado? ― Você sabe o que eu quero. Um dos detrás bateu a ponta da chave de roda na parede. O barulho do metal no concreto, o som seco, agudo e irritante. ―Não tem nada aqui pra você, Dilan. Só três caras a fim de amassarem o seu nariz. Dilan sorriu. Bateu a cinza do cigarro no ar e tornou a tragá-lo sem deixar de olhar para o i****a. Ninguém tocava no seu nariz. Nem quando lutava boxe para juntar grana e assim evitar cair na bandidagem. Tinha um rosto apresentável. Um rosto que chegava antes dele, abria portas, baixava calcinhas, desarmava machões. Era o seu cartão de visita. Seus olhos azuis entravam nos lugares e vasculhavam tudo sem chamar a atenção. Cara de anjo bandido. Loiro sarado. Bem nutrido. Até parecia que vivia na academia, mas era o trabalho duro na fazenda, carregando toras de madeira, demolindo paredes, amarrando bichos em cordas. Sua aparência aliada à personalidade aloprada o tornara um sobrevivente. ― Por que não tentam? ― desafiou-os, um sorrisinho de troça. ― Acabei de t****r, estou entediado. ― Sua irmã tá de volta à cidade? ― Não tenho irmãs. ― É estranho. Vi uma p*****a com a sua cara ontem mesmo no Parque do d***o. ―  disse Giu, o semblante de escroto. ―O lugar se chama Hell’s Park, é chique. ― corrigiu-o, o colega que usava um moicano platinado. ― Sou brasileiro e falo brasileiro, p***a. ― Só falei. ― Fala quando eu mandar. O do moicano fez uma careta de desagrado. ― Se você fosse meu patrão. Giuliano suspirou irritado. ―É uma p***a. ―virou-se para o colega de desmanche e emendou: ― Faz alguma coisa pelo nosso amor, pega aquelas correntes e vamos dar uma tunda na loirinha aqui. ― Faz o que seu patrão mandou. ― disse Dilan, sereno, fumando, esperando a cena toda. ― Ele não é o meu patrão, c*****o! ― Acabou de mandar em você, é o que então? Sua mulher? ― Precisa de corrente, Giu? ― voltou-se para o outro. ―Meto bala agorinha! ― O Patrício limpou o piso ontem, sangue custa a sair do concreto. Agora tem aquele trem chamado Luminol. ― Quero meu Buik. ― insistiu Dilan. ― O seu carrinho de puto já era, foi pro saco faz mais de anos. ― Giuliano, não me faça perder a cabeça. ― afirmou, retesando os maxilares. ― Olha aqui, não vem bancar o fodão pra cima de mim, certo? Teu carro não foi roubado por nós, a gente só separou tudo e vendeu. Se quer descobrir quem c***u tudo na tua fazenda, é só andar pela cidade que vai descobrir. Tem um povo te esperando, cara, um povo louco pra acabar com você. Dilan conseguiu ouvir apenas o início da declaração do i****a. ―Você desmanchou o meu Buik 1964? ― Aqui é um desmanche, amigo. Queria o quê? Que eu blindasse a p***a? ― Não vim argumentar com você. ― Achei mesmo que tivesse vindo para nos pagar. O Trejo levou coca da boa e até agora nada. Cadê o dinheiro? ―É com ele. ― Dilan falou baixo, olhando nos olhos do Giuliano, sem deixar de perceber que todos ali não portavam arma de fogo. Jogou o cigarro no chão e o esmagou com a sola da bota. ― Vocês foram até a minha fazenda, sim, e roubaram o meu carro e a minha picape. Vandalizaram o lugar. Cagaram no chão da minha sala. ― ele falava devagar, sério, olhando nos olhos de Giuliano. ―Não entendo como vocês conseguiram sobreviver em Sacramento tendo uma mentalidade tão i****a. Giuliano estreitou as pálpebras, esquadrinhando seu oponente. Era ele o líder. Era ele quem tinha que ser respeitado. Ergueu a chave de roda ao mesmo tempo que avançou na direção de Dilan. ― Vou acabar com você! ― gritou, rouco e raivoso. No instante em que o outro se jogou para, assim, desferir a ferramenta na cabeça de Dilan, ele deu um passo para trás. Puxou com precisão a adaga do coldre no cós do jeans e a enterrou na barriga de Giuliano. Toda. Até o início do cabo. A pele das dobras dos dedos sentiu a textura do tecido da camisa do bandido. A lâmina penetrou na carne macia da barriga, não encontrando qualquer obstáculo que a impedisse de forçar a camada de gordura, arrebentando os músculos do abdômen. Quando ele puxou de volta a adaga, o fluxo de sangue escorreu pelo corte feito. Giuliano levou as mãos à linha do estômago, ainda olhando para Dilan com os olhos arregalados, incrédulos. Como se fosse impossível que levasse uma facada. Impossível que alguém tivesse coragem de feri-lo. Ele segurava as tripas, mas cada víscera sua estava no lugar, no lado de dentro do corpo. Porém, retalhadas. No minuto seguinte, os joelhos flexionaram-se e o corpo grande tombou com tudo no chão da oficina. Então Dilan, ainda segurando a adaga pingando sangue de bandido (assim como sua própria mão), assimilou dois fodidos ameaçando cercá-lo para o embate. ― A coisa com você será rápida. ― avisou Dilan. O do moicano sorriu como um demente, mas o seu companheiro, não, manteve-se sério, firmando com a mão a chave de roda. Será que ele não havia percebido que aquela ferramenta e m***a eram as mesmas coisas? Os dois vieram para cima. Dilan arremessou no ar a adaga ensanguentada e, com isso, recebeu um golpe na barriga com a chave de roda. Entortou o corpo, sentindo a força da p*****a. Apenas isso. A raiva que ele sentia, o tempo todo, era um combustível faminto que queimava nas veias. E ela irrompeu feito um raio vindo do centro da terra. Fechou a cara e se jogou para cima do cara do moicano, o corpo inteiro, o peso todo. A ponta da lâmina encontrou a carótida do outro. O sangue jorrou escuro e morno. Ao se voltar, deu de cara com o terceiro bandido. Ele o fitava como se Dilan fosse de outro mundo. Pálido, os braços pendendo ao longo do corpo, imóvel. − Onde tá a p***a do meu Buik? Dilan sentia que havia tomado um banho de sangue, a camiseta molhada e pegajosa aderia ao tórax. − O seu Buik foi roubado e vendido na noite em que você foi preso. − Obrigado pela informação. – respondeu, com amargor. Passou pelo bandido, acendeu um cigarro e exalou a fumaça pelas narinas. Ouviu-o dizer: − Eu não vi nada que aconteceu aqui. Bandido quando encontrava outro, mais forte e violento que ele, se borrava todo. Dilan se voltou e ofereceu-lhe um de seus sorrisos frágeis e tortos, o canto torto, um trejeito todo seu que expressava o sorriso de um fodido. − Eu sei. – sacou a pistola .380 e atirou na testa do outro. – Não viu nada mesmo. Puxou a camiseta pela cabeça e a trocou pela roupa do defunto. Voltou para a picape caindo aos pedaços, abriu a porta e entrou. Deitou a cabeça para trás no banco. Suspirou, irritado. Era tudo uma m***a, essa volta ao lar vandalizado. O Buik era dela. Sua última recordação de Brigite. Tudo que ela havia deixado para ele depois que a polícia a prendera por r***o e a***o de menor. Quando Sacramento se encheu de mães de família erguendo bandeiras de protesto contra a “estupradora de adolescentes”, a “professora pervertida”, “a depravada”, “a p**a”. A pedófila que poderia comer os menininhos da cidade. A mulher que ensinou tudo a Dilan.  
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