- Você me chamou, doutor? - a voz rouca dele fez meu coração pular no peito, como sempre. - Sim. Eu queria saber, já que você e ela estão juntos, se você poderia me responder algumas coisas.- Pausa. Wilmer deve ter assentido com a cabeça. - Eu quero saber se a Demi teve algum tipo de raiva ou depressão ou tristeza recentemente. - Na verdade, ela nunca me pareceu feliz demais ou triste demais. Mas nesses últimos dias, ela parecia um tanto... Não sei explicar... Vazia. Sem cor nenhuma. - Na mosca. Ele continuou. - E não havia nada que justificasse aquele comportamento dela, mas acho que tem a ver com a morte do pai. - Não sei como Wilmer pôde apontar uma coisa dessas, mas, apesar de eu não fazer a mínima ideia do por que eu me sentia assim, talvez a morte do meu pai fosse uma das razões. - Sabe, faz um tempo que ele se foi, e ela não tinha lá um relacionamento muito bom com ele. - Bom, eu vou ser bem direto com você. Estou suspeitando de que ela esteja com crise de depressão e, pelo que a mãe dela me falou lá fora, ela já teve isso antes. Queria até corrigi-la, porque uma vez que você tem depressão, ela nunca some. Mas eu quero que você preste bastante atenção agora. Se ela estiver com crise de depressão, talvez esse seja o estágio mais avançado. Se ela realmente estiver com esse diagnóstico, quando ela sair do hospital, eu quero que você tenha paciência com ela. Porque, se ela estiver assim, as coisas vão ficar um pouco complicadas, pelo menos por um tempo.
Wilmer não disse nada. Queria conseguir abrir os olhos para vê-lo e dizer que era tudo mentira. Eu não estava com depressão, eu estava bem, aquilo havia sido apenas uma tentativa de me desligar do mundo - não uma das melhores opções, mas era uma tentativa. Eu não estava com depressão. Eu não podia estar com depressão. Estar com depressão significaria que eu teria que passar por tudo de novo. Ir pra clínica de novo. Não poder mais nem me depilar, por receio dos médicos de eu fazer alguma besteira lá dentro. Não poder mais ter privacidade em relação aos meus pensamentos mais sombrios. Não poder ter contato com ninguém, salvo visitas agendadas com antecedência. Não poder isso, não poder aquilo. O que seria de mim voltando à estaca zero? O que seria da minha carreira? Todos meus esforços de tirar a imagem de coitadinha-vítima-de-si-mesma seriam jogados no lixo. Não que eu me arrependa de já ter tido essa imagem mais forte um dia; serviu para ajudar muita gente, e no fim das contas, esse era o propósito de tudo. Eu poderia ter mentido para a mídia e amenizado meu problema, mas não o fiz. Consegui abrir os olhos de novo. Wilmer estava sentado na cadeira, como da última vez que o vi, mas dessa vez me encarando. Posso dizer que não gostei do olhar dele sobre mim. Ele me olhava como se eu fosse feita de vidro, e que eu cairia a qualquer momento e me quebraria em pedaços. Como se eu fosse frágil como um passarinho, ou como um vidro mesmo. Eu senti nojo - de mim, claro; ele não tinha culpa de sentir pena. Aliás, ele tinha razão em sentir pena. Uma pessoa como eu, que não consegue se controlar ao mais simples momento de possibilidade de descontrole, só merece pena dos outros (e nada mais). -Você está bem? - sua voz estava cansada e isso me fez morrer por dentro (de novo). -Sim, estou ótima - sorri, mostrando os dentes. "Hora do show", pensei. Ele fechou a cara. Oh-oh, isso não é algo bom. -Não minta para mim. A última vez que eu te perguntei isso você respondeu a mesma coisa, e olha onde você tá agora. - ele cuspiu as palavras olhando ao redor enquanto falava. - Sinceramente Demi, onde que eu tô errando? Pode dizer, eu não me importo. Quer dizer, claro que eu me importo, mas em relação a... -Eu entendi, eu entendi - fiz um sinal para ele parar. Analisei-o da cabeça aos pés. Ele parecia abatido. Que ótimo. - Eu posso explicar, eu... -faço uma pausa para tentar pensar em alguma coisa. Nada. Eu só queria pegar o cobertor e esconder minha cara. Só queria dizer a ele a verdade. Que eu agi por impulso. Que talvez o médico tivesse razão e eu estivesse mesmo com depressão, porque não havia outra razão para eu ter ido contra meus princípios. Que eu claramente me arrependo, mas não sei se isso é o suficiente. Que eu estou morrendo de vergonha e de medo do que todos estão pensando e que tudo o que eu queria era que ele me ajudasse, porque eu sinto que estou perdendo a luta. Tudo o que eu queria dizer a ele está claro em minha mente, mas eu não posso dizer nada a ele, porque isso o mataria.- Na verdade, não posso. - ele piscou, atônito.
-Não pode? COMO? COMO NÃO PODE? DEMI, QUER DIZER QUE VOCÊ FEZ ISSO INVOLUNTARIAMENTE? BATEU UM LAMPEJO DE VONTADE E CORRE PRO BANHEIRO? ENTÃO É ASSIM QUE AS COISAS SÃO? - Meus olhos marejaram e ele percebeu. Merda. Era exatamente desse choque que eu estava precisando, e não de alguém alisando minha cabeça para dizer que ia ficar tudo bem. Porque eu sei que vai, só não sei quando. Ele se sentou e escondeu o rosto com as mãos, como se estivesse pensando nas coisas que tinha acabado de falar. -Desculpa. Eu não queria ter dito isso, é só que... Eu não sei mais o que fazer, Demi. Eu não quero te perder pra uma merda de vício. Acho que ninguém que te conhece quer isso, aliás. Você sabe muito bem de quem eu estou falando, né? Você não parou para pensar em todas essas pessoas que se importam contigo quando inventou de fazer essa besteira? Você não parou para pensar, sei lá, na sua família? -É fácil falar, sabe. Mas não, não parei. Quer saber o porquê? É porque não dá tempo. O tempo é relativo, Wilmer. O tempo é relativo e nessas horas ele passa muito rápido. Não dá tempo. Quando você pensa nas consequências, o sangue já está ali, jorrando. Você acha mesmo que eu faço isso por vontade própria? É claro que não. É e******o pensar que alguém se machucaria por vontade própria. Eu não sou masoquista. Mas há momentos em que a dor que eu sinto quando faço isso parece tão pequena diante de tudo. É como se fosse um prêmio. Mas, repito, eu não sou masoquista. Eu não gosto da dor. Mas tem horas que ela precisa ser sentida. -Será mesmo? E porque eu não tenho isso? Porque suas irmãs não tem essa necessidade? Porque a maioria das pessoas não tem isso, e você fala como se fosse um fato universal? -É universal no meu mundo. E no das pessoas que tem esse problema também. - Passam-se vários séculos entre nós, e eu sinto que minha palavra final criou um muro de concreto que me separava dele. Ele passou um tempo brincando com o zíper do casaco, como se quisesse evitar olhar para mim. -Como está indo as gravações para a série nova? - Tentei puxar assunto, esboçando um sorriso. -Legais. - Mais um tijolo para o muro de concreto. -Você está bem? - Tentei puxar outro assunto, na maior cara-de-p*u. Ele me encarou por longos segundos. -Como você acha que estou depois de minha namorada ter quase se matado? -É, aí você falou certo. Quase... -É, um quase que poderia não ter existido, né Demi? Olha, eu não sei o que aconteceu que você continua viva. Vai ver foi Deus que percebeu a tempo a besteira que você ia fazer. - Eu quase consigo enxergar o muro. Céus, ele está realmente irritado com tudo isso. - Responde uma coisa para mim: se eu tivesse aparecido momentos antes de você... É... Fazer isso daí - o jeito como ele tratava a questão dos cortes era quase um tabu. E depois ainda me perguntam por que é que eu acho tão importante falar abertamente sobre esse tipo de assunto com os adolescentes. -, você ainda teria... É... -Me cortado? - Ele quase pulou da cadeira quando percebeu o tom de normalidade na minha voz - Não sei, Will. A vida não é feita de "se's" e eu não tenho esse dom de ficar prevendo as coisas. -Hum - ele resmungou. Mais séculos se passam entre nós; eu quero alcançá-lo de alguma forma, mas ele parece já estar longe demais, apesar de estarmos a menos de cinco metros de distância um do outro. Vejo o que eu não queria ver, pelo menos não naquele momento: ele finalmente se levanta e sai, sem olhar para trás, acenar, falar comigo ou qualquer coisa parecida. Eu senti um vazio com isso. O mesmo vazio que me fez parar aqui. E senti outras coisas. A vontade, a ansiedade de fazer algo foi crescendo e eu não sabia até quando eu poderia controlar aquilo. Se eu nem ao menos me controlei quando pensava que estava sã, imagine agora, que eu estou condenada a passar pelo menos uns dois dias tomando soro e mais um bom tempo na clínica de reabilitação de novo. Aquilo era uma derrota para mim. Preferia ter morrido, a ter que encarar todo aquele processo de retorno à estaca zero. Fiquei encarando a cadeira onde ele estava minutos atrás, lutando contra si mesmo para não berrar comigo. Por um momento, pensei que ele fosse voltar correndo para dentro do meu quarto, dizer que tudo ia ficar bem e me abraçar, mas nada disso aconteceu. Por quanto tempo ele aguentaria ficar longe? Mais do que eu aguentaria, com certeza. Homens podem ser bem durões nesse aspecto, para minha infelicidade (ou seria felicidade? Qualquer coisa é melhor do que vê-lo naquele estado deplorável, e ainda por cima por minha causa). Não era a primeira vez que ele via meu pulso ou meu braço daquela forma, mas imagino que só a ideia de ter sido eu a autora daqueles golpes deve afetá-lo. E muito. Para ele, aquilo significava que eu preferia morrer a continuar vivendo a vida que eu estava levando no momento. Até aí tudo bem, porque era verdade. O problema era que eu tinha certeza que ele pensava que aquilo era culpa dele. Que, se eu não estava feliz, era culpa dele. Que, se eu estava deprimida, era ele quem deveria se cortar, e não eu - claro que essa parte não era sempre verdade. Talvez eu esteja errada sobre ele. Tomara que eu esteja errada sobre ele. Parece até que ele ficou traumatizado ao me ver anos atrás na Clínica, sob observação de médicos e lutando contra mim mesma para comer tudo o que estava no prato. Lembro-me de sua expressão ao me ver em volta de todas aquelas pessoas com todos aqueles problemas, e ele parecia um tanto assustado. Mais assustado ainda ele ficou, depois de ver a papelada que diagnosticava minha bipolaridade e meus distúrbios. Lembro-me também de ver que ele lutava - e continua lutando - para aceitar que eu era daquele jeito, mas que não precisava me tratar como se eu nunca mais fosse ficar bem de novo. Sinto meus olhos marejarem quando vem à minha mente seu rosto ao me ver depois de ter recebido alta. Parecia que ele tinha carregado o mundo em seus ombros durante aqueles três meses e só depois de me ver ali, na sua porta, ele percebeu que não precisava mais carregá-lo.
Apesar de não ter conhecimento de como ele soube que eu estava naquele hospital, concluí: Wilmer estava carregando o mundo em seus ombros de novo, e dessa vez ia ser difícil mostrá-lo que ele não era nenhum Atlas da sociedade moderna. Porque ele nunca tinha me visto internada em um hospital por causa de meus problemas antes. Porque eu nunca tinha parado em um hospital por causa de meus problemas antes, e não me admiraria em ver a expressão de Wilmer estampada na cara de todo mundo. Medo, medo e mais medo. Confesso que, se eu tivesse um espelho e visse minha cara refletida nele, acho que aquela expressão também estaria na minha cara. Pior é que eu estava 100% certa, pois Maddie acaba de entrar e devo admitir que nunca vi aquela menina tão arrasada em toda sua vida. Em um mundo onde houvesse o Prêmio Nobel da Idiotice, Demi Lovato seria a ganhadora dele.