Sandrinha narrando
Dinheiro acaba, é fato. E o meu… já tá com os dias contados.
A grana que eu guardei com a venda dos poucos moves que eu tinha já estava acabando. eu já contava chorando por dentro.
A Manuela precisa de ir para a escola, de comida, de roupa, de paz… E eu não tenho nem metade do que ela merece.
Mas o pior… É saber que a única saída que me resta tá debaixo do nariz do homem que eu mais queria evitar.
O JR.
Eu tentei de tudo, de verdade. Bati em porta, abaixei a cabeça, pedi favor, implorei. Teve uma hora que a vergonha nem me visitava mais. Já era minha companheira. Eu e ela, andando juntas por esse mundo sujo.
Um dia, ouvindo conversa de mulher na fila do posto, ouvi falar de um tal de Guto, dono do Morro do Dendê. Diziam que ele resolvia coisa pra mulher sozinha, que ele ajudava, dava casa.
Eu tava desesperada, né?
Peguei ônibus com a Manuela dormindo no colo, uma mochila nas costas e uma esperança morrendo dentro do meu peito.
Cheguei no Dendê suada, exausta, com o coração na mão.
O lugar tinha um peso diferente. Não era aparência, era energia mesmo. Pesada. Feia. Silenciosa. As mulheres me olhavam com pena. Os homem… com fome.
Fui anunciada pro Guto. Ele tava sentado numa cadeira, fumando um charuto grosso, e me encarando como quem cheira carne fresca.
— Tá precisando de casa, né, princesa? — disse ele, com um sorrisinho nojento no canto da boca.
— É… Tô atrás de um canto pra mim e pra minha filha. Pago o que for justo…
— Justo? — ele riu, se inclinando. — Não precisa pagar nada.
Só tem que me dar uma coisa…
Meu corpo gelou.
— Uma noite comigo. Só isso. Me dá essa b****a gostosa, e tu mora de graça. Com água, luz e geladeira cheia.
As palavras dele ainda ecoam dentro de mim. Suja. Asquerosa. Foi como se ele tivesse cuspido veneno na minha cara.
Peguei a Manuela, virei as costas e saí dali sem olhar pra trás.
Preferia dormir na rua, preferia morrer. Mas vender meu corpo por teto? Nunca.
Daquele dia em diante, eu entendi: Mulher sozinha com criança é isca fácil pra urubu de favela.
O mundo é c***l. A quebrada, pior ainda. E por mais que doa, por mais que eu queria distância, o único lugar que ainda podia me dar um recomeço… era a p***a da Maré.
Mesmo que isso significasse encarar o JR. Mesmo que isso significasse jogar meu orgulho no esgoto.
Sábado de manhã, Levanto-me pego a minha mala e arrumo todas as nossas roupas..
— Mamãe… Quando eu vou pra escola? Eu quero brincar com as criança…
A voz dela era baixa, tímida, doce. Como se ela pedisse desculpa por querer sonhar.
Eu ajoelhei e apertei ela nos braços com força.
— Logo, meu amor… Muito logo.
Mas meu peito sangrava por dentro. Porque eu sabia que o "logo" dependia da decisão mais amarga que eu já tomei.
Juntei o pouco que sobrou da nossa vida. Algumas roupas, um cobertor, uns brinquedos velhos, e a boneca sem olho que a Manuela se recusa a largar.
Peguei minha filha no colo, puxei a mala com a outra mão e fui.
Com medo. Com vergonha. Com tudo.
Mas fui. Pra Maré.
Quando cheguei, parecia que o meu coração ia explodir.
Cada passo, eu achava que o JR ia brotar do nada, gritando,
perguntando por que eu escondi que ele tinha uma filha.
Mas não foi ele que apareceu.
— Lobo…
Ele tava na barreira. Cigarro na orelha, rádio na cintura, aquele jeito largado que todo vapor da quebrada tem.
Me olhou de cima a baixo e soltou uma risadinha debochada.
— Cê lembra de mim, né? Eu vim aqui um tempo atrás atrás de uma casa…
— Lembro sim. A casa tá pronta. Vem, me segue.
— Me dá a mala — ele disse, estendendo o braço.
Entreguei. E agradeci num fio de voz.
A gente foi andando por dentro da Maré. Viela por viela, passo por passo, o meu coração batendo no peito como tambor.
Até que ele parou.
— É aqui.
Levantei os olhos. Uma casa de dois andares. Varanda. Pintura branca. Linda. Limpa. Cheirosa. Fiquei até com vergonha de pisar com chinelo sujo.
— Aqui? Tá de s*******m…
— Tô não. Toma a chave.
Ele esticou a mão. E eu fiquei ali… paralisada. Encarando a chave como se fosse faca.
— Eu… não posso aceitar. Essa casa é demais. Eu não tenho como pagar por isso, Lobo. O aluguel deve ser mais do que eu ganho em um mês.
Ele me olhou sério. Não tinha deboche no rosto, só firmeza.
— Essa casa é sua. Já tá arrumada. Se não gostar da decoração, fala com o VP. Ele muda tudo. Se precisar de qualquer coisa… qualquer mesmo… fala com ele que ele chega no JR.
Minhas pernas bambearam. O meu mundo girou.
E ele saiu andando, como se não tivesse acabado de mudar minha vida inteira.
Fiquei ali. Esticada. Com a Manuela ainda dormindo no colo.
Sem saber se chorava, se sorria, se fugia.
Quando o sol bateu no rosto dela, ela acordou devagarzinho.
Bocejou, se espreguiçou, piscou os olhos… e olhou ao redor.
— Mamãe… é uma casa de princesa?
Senti as lágrimas escorrendo sem nem pedir licença.
— É sim, meu amor… É sim.
Abaixei, botei ela no chão. Abri a porta com a chave.
O cheiro… De casa limpa, chão encerado. Móveis novos.
Geladeira cheia. Armário com arroz, feijão, leite em pó, bolacha. Roupa de cama. Cortina. TV. Sofá. Boneca nova no canto.
Tudo.
Ela começou a correr, rindo, gritando, pulando como se o mundo tivesse virado um parque de diversão.
E ali, com meu coração apertado e o choro entalado, eu entendi.
Não importa de onde a ajuda vem. essa casa… essa paz… essa nova chance… É pra minha filha.
Mesmo que o JR esteja por trás, mesmo que amanhã ele bata nessa porta. Mesmo que tudo exploda.
Dessa vez… eu não vou fugir.
Porque eu descobri que o medo me paralisa, mas ela…
Ela me faz levantar.
— “Podem tirar tudo de mim… menos a coragem de recomeçar por ela.” – Pensei
Manuela corria pelo corredor como se aquele chão fosse de nuvem.
Ela abriu a porta do quarto com o pézinho descalço e gritou:
— Mãe, tem cama! Tem cortina rosa! Tem uma boneca nova!
Ela voltou correndo, me abraçou pela cintura e me olhou com os olhinhos brilhando:
— É tudo nosso, mãe?
Segurei ela firme, beijei o topo da cabeça dela e sussurrei:
— É sim, filha. É tudo nosso. E ninguém vai tirar da gente.
Mas por dentro, eu tremia.
Porque no fundo eu sei .... Isso aqui tem dono. E o dono… é o homem que eu tentei evitar.
O JR vai aparecer, ele vai olhar pra Manuela e vai saber.
Vai ver o rosto dele nela. Vai entender. Vai explodir.
— “Podem tirar tudo de mim… menos a coragem de recomeçar por ela.” – Pensei, olhando a minha filha girar no meio da sala como se o mundo fosse um lugar seguro.
E naquele instante, eu fiz um juramento silencioso:
Nunca mais vou deixar ninguém apagar o sorriso dela.