Capítulo 3

1408 Words
Sandrinha narrando — Não… por favor, moça… me diz que é mentira — eu implorava, agarrada no braço da enfermeira, sentindo meu peito desabar, enquanto via eles retirarem o corpo da minha vó do leito. A mulher nem conseguia me encarar. Só fez um sinal de cabeça, baixo, triste, e desviou o olhar. — NÃO! — meu grito rasgou o corredor. — VÓ, NÃO ME DEIXA! Quase quatro anos lutando contra esse maldito câncer. E agora... agora ele venceu. Ele arrancou de mim a mulher mais forte que eu conheci. A mulher que me criou, me ensinou o certo, me deu teto, comida e amor… Quando ninguém mais quis saber de mim, foi ela que me segurou no colo, me chamou de filha e disse que o mundo era duro, mas eu era mais. Agora ela tava ali, dentro daquele saco preto, sendo levada pro IML, como se fosse só mais um corpo. Mas não era. Era a minha vó. A minha base. A minha raiz. Eu caí de joelhos. Minha respiração falhava, meus dedos tremiam. Uma enfermeira tentou me levantar, mas minhas pernas pareciam de papel molhado. Ela sentou do meu lado, passou o braço pelos meus ombros e deixou eu chorar. Ali mesmo, no chão frio do hospital. — Chora, filha… chora. A dor precisa sair de algum jeito — ela falou baixinho. Fiquei ali até minhas lágrimas secarem no rosto, até minha alma ficar muda. Quando consegui me acalmar um pouco, com a ajuda das enfermeiras, fui pra casa. A nossa casa. A mesma que agora parecia só um amontoado de paredes vazias. Cada canto dela tinha a minha vó. O cheiro do café, o barulho do terço balançando, a risada baixa vendo novela. Tudo gritava o nome dela. Mas não podia me afundar naquela dor. Tinha coisas pra resolver. Velório, papelada, IML, certidão de óbito... um mundo de burocracia quando tudo que eu queria era um tempo pra sentir. Foi aí que Dona Maria apareceu. Vizinha da minha vó há anos, mulher da igreja, coração de ouro. — Filha, tua vó sempre dizia que você era forte. E que se um dia ela partisse, era pra eu te ajudar. Então vambora resolver isso tudo. Ela merece o melhor — falou segurando firme minha mão. Com ela do meu lado, consegui resolver tudo. Dona Maria sabia os caminhos, os nomes, os jeitos. Foi meu anjo quando o céu parecia ter me abandonado. Organizamos o velório simples, mas bonito. A igreja ficou cheia. Muita gente chorando, falando o quanto a vó era luz, era bênção, era mãe pra quem não tinha mãe. Eu fiquei de pé, firme, como ela teria ficado. Mas por dentro, eu tava em pedaços. O enterro foi no dia seguinte. E quando jogaram aquela primeira pá de terra, foi como se tivessem jogado em mim. Eu gritei de novo. Eu me ajoelhei. Eu quis cavar com as mãos e trazer ela de volta. — NÃO ME DEIXA, VÓ… EU TÔ SOZINHA! Ninguém me respondeu. Só o som seco da terra, abafando a tampa do caixão. Mas como dizem por aí, quando a dor acha que acabou, vem a vida e taca mais um pouco. No dia seguinte, Seu Zé, dono da casa onde eu morava com a minha vó, apareceu. Frio, direto. — Então, Sandrinha… sinto muito pela sua perda. Mas a casa vai ser vendida. Tô te dando trinta dias pra sair, tá bom? — Trinta dias? — repeti, em choque. — É o que dá, filha. Não posso esperar mais. Já tem gente interessada. Olhei pra sala vazia. Pro sofá onde minha vó dormia nas noites de dor. Pro quadro de Santa Rita pendurado na parede. — Trinta dias… — sussurrei, engolindo o choro. Sem mais ninguém em São Paulo, sem chão, sem dinheiro… não me restava opção. Era hora de voltar pro Rio. Pro morro. Pro lugar de onde saí jurando voltar um dia. Em uma semana, graças à Dona Maria, consegui resolver tudo. Vendi os poucos móveis que a gente tinha a cama, o armário velho da minha vó, até a televisão da cozinha pra juntar um dinheiro. O suficiente pra mim e pra Manu sair de São Paulo. Não era muito, mas dava pra pegar a estrada e recomeçar no Rio. Só que uma coisa eu já sabia: o Alemão não era mais opção. Não sei como o JR tá hoje… se mudou, se seguiu a vida, se arrumou outra. Talvez tenha até se esquecido de mim. Mas o que eu sei, de verdade, é que eu não posso arriscar botar a Manuela perto daquele mundo. Ela não merece crescer com medo. Não merece ver arma, escutar grito, sirene, nem saber o que é perder gente pra guerra. Minha filha merece paz. Por isso, escolhi meu novo destino: Morro da Maré. Longe do passado. Longe do JR. — Mamãe? A vozinha fina e doce me tira dos pensamentos. Me viro devagar e vejo Manuela, com o cabelo todo bagunçado, ainda inchada de tanto chorar na madrugada. — Oi, minha princesa. — Mamãe… cadê a vozinha? Ela vai vim brincar comigo? Meu coração falha. De novo. Seguro suas mãozinhas pequenas. O rosto dela tá tão inocente, tão cheio de esperança… Como eu vou explicar o que nem eu consigo aceitar? — Amor… lembra quando a gente olhava pro céu e via as estrelinhas? Ela balança a cabeça, com os olhinhos já marejando. — Então… a vozinha virou uma delas. Tá lá no céu agora, brilhando e cuidando da gente. — Mas… mas ela não vai mais me contar história? — Vai, meu amor… — puxo ela pro meu colo — …mas agora, ela vai contar baixinho, bem no seu coração. Toda vez que você fechar os olhos e pensar nela, você vai sentir a vozinha perto, abraçando você. Manuela começa a chorar baixinho, soluçando contra meu peito. — Não quero estrelinha… quero ela aqui... Eu aperto ela com força, tentando segurar minha própria lágrima. — Eu sei, filha… eu também queria. Mais do que tudo. Mas a gente vai ficar bem, eu prometo. Porque agora a gente tem uma estrelinha só nossa lá em cima, cuidando da gente todo dia. Ela se agarra no meu pescoço, e ali, no meio daquela sala simples, eu entendi que mesmo com o mundo desabando, eu ainda tinha um motivo pra levantar da cama: minha filha. Porque se a vó foi minha luz, agora a luz da minha vida é a Manuela. E por ela… eu vou recomeçar. Mesmo que doa. Mesmo que falte. Mesmo que tudo pareça perdido. — Descansa, minha estrelinha — sussurro olhando pra janela. — Eu vou cuidar da nossa princesa. Eu prometo. Saí de casa ainda no escuro. O céu cinza, carregado. O tipo de manhã que parece chorar com a gente. Com uma mochila nas costas, outra nos braços, e a Manuela dormindo encostada em mim, peguei o primeiro metrô rumo à rodoviária. Cada passo era um adeus. Um suspiro. Uma lembrança da vó. Da casa. Da vida que a gente teve que deixar pra trás. Mas era isso. Era isso ou morrer de tristeza naquele lugar. Na rodoviária, o cheiro de café velho e desespero batia forte. Gente indo, vindo, com sacola, mala rasgada, criança no colo… A mesma cena de sempre. A cena de quem tá tentando sobreviver. Comprei as passagens com o pouco que tinha. Rio de Janeiro. Terminal Novo Rio. Destino: Morro da Maré. Não era luxo. Não era conforto. Mas era longe do JR. Porque por mais que uma parte de mim ainda sinta… ainda arda… eu não posso vacilar. Eu não posso jogar a Manu nesse mundo. O JR foi o meu amor. Foi fogo. Foi paixão. E agora ele é passado. A Maré vai ser nosso recomeço. Lá, ninguém me conhece. Ninguém vai apontar o dedo. Ninguém vai saber que eu fui mulher do cara mais temido do Alemão. Lá… eu vou ser só a Sandrinha. Mãe da Manuela. E isso basta. O ônibus começou a se mover devagar. Olhei pela janela uma última vez. São Paulo ficando pra trás. — Tchau, vó… — sussurrei baixinho. — Me guia, me protege. Apertei a mãozinha da minha filha, que dormia tranquila no meu colo. A estrada é longa, mas eu vou até o fim. Porque agora… eu sou tudo que ela tem. E eu vou ser f**a. Por mim. Pela minha vó. Pela minha filha. O Rio que me aguarde.
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