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1942 Words
Eu sei que o gato está com fome, mas eu preciso terminar de limpar atrás da geladeira de qualquer jeito ou não consigo ficar sossegado. Molho a escova mais uma vez e passo no restante da sujeira atrás da geladeira. O gato mia mais três vezes e eu me ergo do chão vencido pela insistência dele. Will vira a cabeça de lado e salta do balcão ao chão e caminha rebolando até o pote de ração. — É, eu sei que é isso que você quer — o gato apenas solta um miado e se afasta do pote para eu pegar. O sábado de hoje está frio e silencioso, não tem carros passando na rua e ninguém caminhando pela calçada. Há uma suave neblina no meu quintal, mas não há nenhum sinal de neve. Agora faltam poucas semanas para o inverno chegar e dar fim a este longo o verão. Despejo a ração na vasilha do gato e em seguida fecho o pote no instante que ele vem correndo por baixo das minhas pernas até a vasilha. Fico feliz de ter negado o convite de Terrye de ir beber na tarde de hoje. Eu realmente estou cansado de beber, já tive que misturar álcool com café o mês inteiro para suportar a dor na perna. Não é fácil tomar sempre analgésicos. Eles me deixam cansado e lento, então é melhor me embebedar, que não é uma das melhores opções, mas o álcool não me deixa sonolento, apenas um pouco mais atrevido. Tive de reduzir a dose de álcool que colocava no café nessas últimas semanas após quase ter transado com Angus na sala ao lado da que estava dando aula, e por Alice ter nos pego no mesmo dia. Me arrasto até a sala de estar e me jogo na poltrona, levanto o apoiador de pés da poltrona e coloco minha perna para descansar. Sinto o controle da TV pressionar minha coxa, afasto um pouco a perna e retiro o controle de baixo de mim. É raro as vezes que assisto a televisão, na verdade, é quase sempre muito raro eu vim para sala. Geralmente prefiro ficar descansando na poltrona do escritório ou do quarto. Se eu trouxesse Angus para morar comigo com certeza ele passaria horas aqui assistindo TV. No internato quase nunca eles tinham direito de assistir a algum filme. Ele realmente adoraria assistir TV. Ligo a TV e troco para o noticiário. Novamente estão noticiando sobre o Rio Saskatchewan e os longos períodos de chuva que estão fazendo ele encher. Encosto a cabeça no topo da poltrona e arrumo a perna no apoio. Já faz mais de uma semana desde a última vez que vi Angus. Bem, não estávamos nos vendo muito, e agora que ele está no subsolo não nos vemos mesmo. Depois da nossa conversa no banheiro, eu andei pensando incansavelmente na proposta de tirá-lo do internato. Não teria problema em Angus morar comigo. Nenhum. O grande problema seria conseguir tirar ele de lá. É impossível sumir com um garoto do internato de North Battleford sem ninguém perceber, é muito mais impossível se tratando de Angus, que todos os professores sabem quem é. Eu queria esperar ele completar 18 anos para tirá-lo do internato, conforme a lei, mas ainda está longe e ele precisa disso para agora. Angus não iria aguentar esperar mais alguns meses para isso acontecer, ele faria antes, e provavelmente sem minha ajuda. É melhor ser eu a trazê-lo para morar comigo do que um desconhecido do internato que poderia levá-lo para a prostituição ou algo pior. Ele pensa que é inteligente, mas não é. Só é um ingênuo que acha ser. Não sabe o quanto está seguro, o quanto está fora de perigos lá dentro. Longe da prostituição, do tráfico de drogras e de órgãos. Claro que esses perigos ainda o rodeiam lá dentro, mas não tem como retirar um aluno sem ninguém dar falta ou a polícia ser acionada. De qualquer forma, ainda não sei se amo Angus o suficiente para trazê-lo para morar comigo, só sei que o que sinto por ele é muito diferente do que senti por Alice, ou pelos outros, ou até mesmo pelos clientes do meu passado. Angus é visivelmente diferente, não existe como explicar. Ele é sexy de todas as formas, eu poderia usar o exemplo do ator pornô para explicar esse sentimento por ele. Mas Angus não é um ator pornô. “Sabe quando você está tão solitário que acaba meio se apaixonando pelo seu ator pornô favorito?” Esse exemplo é uma grande porcaria se tratando de Angus. Não é assim que o vejo, é não esse sentimento que tenho por ele. Faço carinho no gato até o sono aparecer. Saindo da sala para o banheiro, já sabia que iria fazer a minha preparação rotineira para dormir. Tomar banho; escovar os dentes; massagear o joelho; se punhetar; engolir os remédios e por fim dormir. Já era um costume fazer isso, eu não conseguiria dormir se deixasse de fazer ao menos uma dessas coisas. Quando tomei os dois últimos medicamentos para já ir dormir, Will começou a miar, mas desta vez ele está miando para a janela. Manco quatro passos em direção à janela. Olho ligeiramente pelo meu quintal. Um pouco de névoa cobre a grama que eu tinha cortado recentemente. No cercado mais névoa vem entrando para o quintal. Levo os olhos para a entrada, e por fim, vejo os motivos dos miados de Will. É novamente um panfleteiro da prefeitura colocando avisos no portão, deve ser claramente em relação ao transbordamento do rio. A prefeitura está nessa preocupação desde o começo do mês de chuvas. O panfleteiro me vê e dá um aceno com a mão e se desaproxima do cercado para a escuridão da rua. Will deixa a janela, e em sequência, faço o mesmo desligado a luz da cozinha. Com a ajuda da muleta, manco para o quarto na companhia de Will. É ainda bem cedo para dormir, no entanto, para alguém que toma mais de oito tipos de medicamentos e mais uma seringa, oito horas da noite é muito tarde. Deito-me na cama colocando um travesseiro embaixo da perna. Nem os analgésicos estão adiantando hoje. Ela está pulsando, o joelho parece estar dilacerando por dentro. Toda essa dor sempre me faz imaginar uma centopéia andando por dentro da carne. Encravada nos ossos deformados do joelho rodeando com suas antenas e pernas causando todas as variações e níveis de dor. Arrumo melhor o travesseiro embaixo da perna, finalmente podendo descansar o corpo. Apenas estive desejando dormir durante esse final de semana. Não quero mais dar um passo sequer nesses dois dias. Talvez até encomende uma cadeira de rodas para usar em casa. Não seria algo r**m. Uma das dicas do Dr. Tofolli é de que eu compre uma cadeira de rodas com a intenção de conviver melhor com a dor ou faça a operação para amputar a perna até o joelho. “Você terá capacidade de usar prótese, não precisará tomar mais analgésicos e injeções atrás do joelho. Este é o caminho mais adequado para você ter uma vida melhor. Opte pela cirurgia, é o mais recomendável, Hector”. Nasci com o joelho pútrido, ser enterrado com ele é o mínimo da obrigação. Além do mais, só alguns anos sem dor não cobre o tempo vivido com a dor. Posso aguentar mais alguns anos com o joelho podre. Não demoro a dormir, os analgésicos costumam agir dentro de pouco tempo. Geralmente não costumo sonhar, mas nesta noite foi um problema. Pesadelos com e*****o e sangue são tão frequentes nos meus sonhos quanto ir para o trabalho. Eles costumam sempre ser os mesmos, da mesma forma e do mesmo modo, só com pequenas variações ali e aqui. Eles se iniciam em um lago de noite. Eu sou uma criança catando pedras na margem enquanto olho o reflexo da lua na água escura. Conto quatro pedras, a primeira e a terceira são as mais chamativas. Gotas vermelhas-arroxeadas rodeiam pelas pedras enquanto as outras restantes são brilhantes e claras. Nos sonhos sou sempre um garotinho magricela com gigantes cabelos ruivos cacheados, pernas magricelas e um olhar curioso para as pedrinhas. Os pés estão um pouco cobertos de lama e, de longe, os galhos dos carvalhos balançam. Som de folhas sendo amassadas despertam meus olhos para distantes das pedras. Na maioria das vezes, é um homem grande de mãos monstruosas que se aproxima no instante que mexia no cinto e abria o zíper. O tinir do zíper podia sentir no coração como um raio profundo e rápido.. Meus olhos não piscavam até ele ter chegado suficientemente perto, mas quando chegava, eles se fechavam e demoravam a abrir. Entretanto, desta vez está mais escuro, o homem de mãos grandes foi substituído por Akhlut, poderia me sentir pior, porém me senti um pouco melhor por saber que tudo devia ser um grande pesadelo. Akhlut é um monstro da mitologia canadense, metade lobo e metade orca. E sempre que deixa o lago vem à terra para se alimentar de qualquer coisa de carne. É irônico sonhar com algo que estava dando aula a semana inteira. O sonho continuou se estendendo do lago para o bordel, onde morei a infância quase todo. Akhlut, agora substituindo o homem de mãos grandes, ficava rodeando cada lado do pequeno quarto no bordel. Enquanto eu estava deitado na cama com todo o pouco de gordura que tinha. Tinham mais crianças em camas próximas escondidas entre véus de afastar mosquitos. Era frio, e eu estava nu tentando esquentar os braços com as mãos e os joelhos junto ao peito. O coração novamente estava pulsando de horror, conseguia sentir o sentimento que tantas vezes senti. Muitos monstros começaram a surgir no quarto e o medo rasgou meu coração até a garganta. Tinha soluços e lágrimas em mim, não só em mim, mas nas outras crianças também. Os Akhluts passaram a se dirigir para as camas. O que andou até mim mostrava a quantidade h******l de dentes enquanto me observava com olhos de orca. O monstro afastou o véu e sussurrou: será rápido. Minha respiração voltou tão forte que despertei em segundos. O gato saltou do meu peito e foi rastejando para um lado seguro da cama. Sento-me e afasto o suor deslizando da testa ao tempo que me agarro ao meu pingente de cruz. Ligo a luz do abajur e solto toda a respiração presa pela boca. Pensado que talvez assim, o coração sossegasse. ____∞____ “Gosta disso?” Perguntou Keitlyn apontando para uma camiseta preta pendurada para o lado de fora da loja. “Parece boa, mas não tenho dinheiro. Esqueceu dos remédios?” Hector movimentou os olhos pela loja e pelos preços. Não era cara. Haviam algumas roupas da Zara e da H&M, se tivesse conseguido algum cliente a mais no dia, com certeza teria comprado algumas peças. “Então vamos. Lily e Tarcel vão nos esganar se não chegarmos às seis.” “Seis? Não era às oito?” Hector observou o rosto dela ficar confuso e depois a viu tirar uma mecha escuro dos olhos. “Você me deixou confusa, i****a”, ela sorri. “Só queria ter certeza se você estava com boa memória.” Atravessaram a rua e viraram a esquina rindo de alguma coisa que tinham visto.Na mesma noite, Hector encontraria sua amiga degola e violentada sexualmente em um beco próximo da boate. Seria o único a ligar para a polícia e os policiais ainda iriam rir na sua frente de uma piada de como as prostitutas acabam. Mas sua amiga não era p********a, ele sim.
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