Capítulo 2
GUEPARDO NARRANDO
Eu não sou homem de dormir muito. Três, quatro horas de sono já são o bastante. Minha mente não descansa, meu corpo não relaxa. É sempre alerta, sempre pronto. Quem manda num morro não pode se dar ao luxo de apagar.
Quando o sol bate no Alemão, eu já tô de pé. Café preto, cigarro e pistola na cintura. Esse é meu ritual.
Eu até fiquei um tempo no morro que foi do meu vô e depois do meu pai, mas deixei o Portuga lá e vir conquistar o meu império e assim venho seguindo.
Saio de casa, subo na moto, desço o morro e logo sinto os olhares. As crianças brincando de pipa param, os moleques mais velhos me cumprimentam de longe, abaixando a cabeça em respeito. É assim que eu gosto. Não preciso falar nada, minha presença já basta.
Na esquina, vejo Pardal me esperando, encostado na moto. Ele tá sempre aqui antes de mim, como se conseguisse adivinhar meus passos. Braço direito não se atrasa.
— Bora descer pra boca — ele diz, me entregando o rádio. — Ontem à noite a carga chegou, mas tem uns boatos de polícia rondando.
Assinto com a cabeça e sigo. Meus passos são firmes, não porque eu faço pose, mas porque eu sei que cada um deles tem peso. Quem manda tem que andar como dono.
Chegando na boca, o movimento já tá no pique. Vapores gritando as ordens, clientes encostando rápido e saindo rápido. O dinheiro passando de mão em mão. Tudo funcionando como deve ser. Mas basta eu aparecer que o silêncio desce por alguns segundos. É respeito, é medo. É Guepardo no pedaço.
— Bom dia, patrão — um dos vapores fala, ajeitando o boné e tentando disfarçar o nervosismo.
— Bom dia não, caralhö. Aqui não tem essa porrä de “bom dia”. Aqui é foco, atenção. — Minha voz ecoa firme. — Qualquer vacilo, qualquer cochilo, polícia entra e föde todo mundo.
Eles assentem em silêncio. Pardal me acompanha, anotando tudo no caderno de couro que ele carrega. Não é porque eu não confio na minha memória, mas porque eu gosto de organização. E organização é poder.
Passo pelos sacos fechados, pela contagem de dinheiro. Checo tudo, um por um. Quem manda precisa olhar de perto. Se eu não botar os olhos, amanhã tem alguém me roubando.
— Como tá a segurança do baile? — pergunto, olhando pro Pardal.
— Já deixei dois na contenção, mas tô achando pouco. A movimentação vai ser grande. — Ele coça a barba, pensativo. — Se a polícia resolver dar o bote, a gente pode se föder.
Paro, penso por alguns segundos e balanço a cabeça.
— Então dobra. Quero o dobro de fuzil lá. Baile não é só festa. Baile é demonstração de poder. O povo vem pra dançar, mas também vem pra lembrar quem manda nessa porrä.
Pardal anota e me olha firme. Ele sabe que eu não falo à toa. Cada decisão é calculada.
Enquanto andamos, dois moleques novos se aproximam. São novatos, ainda com cara de quem não sabe se segura a arma ou se a arma segura eles.
— Patrão, tamo pronto pro serviço — um deles fala, quase gaguejando.
Eu encaro sem pressa. O silêncio dura o bastante pra fazer eles suarem frio.
— Pronto? — pergunto, com um sorriso torto. — Vocês não tão prontos nem pra segurar a bucetä de vocês, imagina pra segurar o Alemão.
Eles abaixam a cabeça, envergonhados. Pardal segura a risada, mas eu continuo sério.
— Aqui não tem moleque brincando de bandido. Aqui tem soldado. Se vacilar, não dura uma semana. Aprende a calar a boca e a observar. Só abre a porrä da boca pra atirar.
Eles assentem rápido, quase tremendo. É isso. O morro precisa de obediência.
Tô ligado que me tornei frio pra caralhö e grosso também, mas não foi atoa, foi necessário, dono bonzinho não vive muito tempo.
Meu celular vibra e na tela aparece notificação de mensagem.
"Dona Cecília"
"Filho estou com saudades, te amo."
Minha mãe sempre mandava mensagens, mas nem sempre eu respondia, as vezes passava batido, mas tô ligado que isso é errado pra caralhö com ela. Mas não faço por mäl, é a correria do dia a dia do corre.
"Também te amo dona Cecília"
Eu evitava chamar ela de mãe por celular, vai saber se essa porrä não tá grampeada. E desde do que aconteceu eu não quero minha mãe passando perrengue nunca mais.
( ... )
Mais tarde, já no barraco central, Pardal chega com as atualizações.
— O fornecedor confirmou. Mais duas caixas de munição chegam até amanhã. E sobre o baile… — ele hesita. — Vai vir gente de fora. Rival, polícia disfarçada, tudo.
— Deixa vir. — Eu acendo outro cigarro, tragando devagar. — Quanto mais gente, mais eles veem que o Alemão tá blindado.
Ele me encara, meio desconfiado.
— Você não acha arriscado demais?
Solto a fumaça e rio baixo.
— Arriscado é viver, Pardal. Se eu tivesse medo de risco, não estaria aqui.
O baile não é só música e corpo suado dançando até o chão. O baile é território marcado, é bandeira erguida. Quem sobe o morro sabe quem manda. Quem pisa na pista sabe de quem é o domínio.
E eu vou estar lá, no camarote, whisky na mão, fuzil na contenção, olhando cada detalhe. Porque eu não sou só dono no papel. Eu sou dono na presença.
Eu construí esse império sozinho.
Eu protejo esse império sozinho.
E se precisar, eu morro por esse império sozinho.
Quando saio da boca, o céu já tá ficando alaranjado. Pardal me acompanha em silêncio. A rua vai se enchendo de gente, o batuque dos tamborzões já começa a subir, avisando que logo a noite vai estourar.
Eu olho pro morro lá de cima e sinto o peso e o orgulho ao mesmo tempo. Todo esse concreto, cada viela, cada barraco… tudo carrega minha marca.
E amanhã, quando o baile estourar, todo mundo vai lembrar disso.
Porque eu sou o Guepardo.
E aqui, no Alemão… quem manda sou eu.