Capítulo 4
GUEPARDO NARRANDO
O baile é mais que música alta e corpo suado dançando até o chão. O baile é o coração pulsando do morro. É aqui que o povo esquece a miséria, esquece a dor, esquece até que amanhã pode acordar sem nada. É no baile que todo mundo se mistura: o moleque que passa o dia inteiro na contenção, a mina que trampou a semana inteira como doméstica, o playboy que subiu só pra sentir o gostinho da favela.
Mas, acima de tudo, o baile é palco.
E eu sou a atração principal.
Quando desço com a tropa, a rua se abre como se fosse mar partindo. Os fogos já estão estourando no céu, os tamborzões batendo forte, o DJ gritando meu nome no microfone.
— GUEPARDO TÁ NA PISTA, PORRÄ!
O povo vibra. Grita. As mulheres rebolam mais ainda, os moleques levantam os braços, todo mundo quer mostrar respeito, quer mostrar que tá na sintonia.
Eu entro de cabeça erguida, whisky numa mão, cigarro na outra, pistola na cintura e a tropa fechando atrás de mim. É presença. É poder. É deixar claro que eu não preciso falar nada pra ser ouvido.
Subo pro camarote montado no alto, de onde consigo ver tudo. Daqui eu sou os olhos do baile. Nada passa despercebido.
Pardal já tá me esperando, organizando a contenção. Fuzis posicionados em cada beco, olheiros espalhados, rádio chiando de informação a cada dois minutos.
— Tá tudo sob controle — ele diz, me entregando mais gelo pro copo. — Movimento tá bonito.
Dou um gole no whisky e observo a pista.
As luzes piscam, o chão treme com o som grave, a massa de gente se movimenta como um só corpo. É energia bruta, é caos organizado. Quem nunca viveu isso não entende. Pra muitos, baile é só festa. Pra mim, baile é estratégia.
Cada cara que pisa aqui tá sendo observado. Cada olhar atravessado, cada grupo que chega junto, cada estranho que tenta se misturar. Eu vejo tudo. Eu sinto tudo.
Porque baile também é risco. Polícia pode estourar a qualquer momento, rival pode tentar entrar de surpresa, traíra pode tentar passar informação errada. E se eu vacilar, o morro inteiro paga.
Eu não vacilo.
Uma mina se aproxima do camarote, rebolando como se o corpo fosse dela e do mundo inteiro. Me olha como quem implora pra ser escolhida. Eu ignoro. Mulher aqui nunca me faltou. Se eu quisesse, já teria meia dúzia no meu colo. Mas eu não sou moleque pra ficar impressionado com bundä balançando.
Outro cara, bêbado demais, tenta subir sem autorização. Pardal já intercepta antes mesmo de eu precisar levantar a voz.
— Desce, porrä. Aqui não é lugar de curioso. — Ele empurra o cara de volta pra escada, e os outros vapores caem na risada.
O baile segue. Gente dançando, rindo, vivendo como se amanhã não existisse. Eu observo. Sempre observando.
Dou mais um gole no whisky e sinto o gosto amargo queimando a garganta. Esse gosto me lembra quem eu sou. Eu não tô aqui pra me divertir. Eu tô aqui pra mostrar. Mostrar que o Alemão tem dono, que o nome Guepardo não é brincadeira.
E o povo entende. Quando eu passo o olhar pela multidão, eu vejo o respeito. Uns desviam os olhos, outros fazem questão de encarar só pra testar. Eu encaro de volta. Nenhum sustenta muito tempo.
Pardal se aproxima de novo.
— Guepardo, os meninos da boca da Grota chegaram. Querem trocar ideia com você.
Assinto e deixo que subam. Dois caras se aproximam, cumprimentam com aperto de mão firme, aquele código silencioso de quem sabe onde tá pisando. Conversamos rápido sobre carga, sobre rotas, sobre manter a paz temporária. Nada de sorriso, nada de tapinha nas costas. Aqui tudo é cálculo.
Eles descem, e eu volto a observar.
A madrugada avança. O baile fica cada vez mais lotado. A fumaça sobe, a batida parece tomar conta até do meu peito. O cheiro de cerveja, perfume e pólvora se mistura no ar. É favela pura. É minha marca.
Mas, no meio de tudo isso, algo começa a me incomodar. Uma sensação estranha, como se algo estivesse prestes a acontecer. Não é medo, não é insegurança. É instinto.
Meu corpo todo fica em alerta. O tipo de alerta que salvou minha vida mais vezes do que eu consigo contar.
Olho de novo pra pista. Gente demais, corpos demais, olhares demais. Tem algo fora do lugar, mas eu ainda não sei o quê.
Pardal percebe meu silêncio e pergunta:
— Tá sentindo o quê?
— Não sei — respondo, estreitando os olhos. — Mas tem alguma coisa diferente no ar.
Dou mais um gole no whisky e continuo observando.
Meu coração não acelera, minha mão não treme. Mas a sensação continua aqui, firme.
Como se o destino tivesse decidido brincar comigo essa noite.
No baile, tudo parece igual. Mas eu sei que não tá.
E quando eu sinto… é porque alguma coisa vai acontecer.
E vai mudar tudo.