Prólogo
19 de maio de 1972
“Querido diário, hoje eu vi coisas estranhas acontecerem. Minha mãe está diferente, falando sobre coisas que nunca ouvi antes, ela está cada dia mais pavorosa, mais medonha. Hoje ela estava fazendo o almoço e meu tio, seu irmão mais novo, a perguntou: ‘Ken, por que não vais mais ao bosque?’ Ela simplesmente o encarou e disse: ‘Porque ando ocupada fazendo preparações, irmão.’ E então, ela olhou para mim e apontou. ‘Ela é a chave de tudo.’
Eu ainda não sei se ela enlouqueceu ou se está com algum problema muito grande que não queira compartilhar conosco, só sei que anda muito estranha ultimamente. Vive falando que o poder vai sugar nossas almas, mas ninguém sabe dizer que poder é este, tão grandioso. Nós somos feiticeiros, uma família de feiticeiros. Mas isso não quer dizer que devamos morrer por sermos quem somos. Certo?”
Anellise Cosmos Green.
Anellise era filha única de Kerina Cosmos.
Kerina tinha dois irmãos, ambos eram homens. Phelipe, seu irmão gêmeo, era super autoritário e narcisista, achava que era melhor que tudo e todos ao redor. Uma vez ele saiu pra buscar o almoço e voltou revoltado pois o porto estava lotado de pessoas esperando alguém importante chegar. ‘Não havia lugar suficiente pra pescar, do outro lado não havia peixes, eu odeio esse lugar’; August, o mais novo, por sua vez era calmo e despreocupado. Ajudava com as despesas de casa, ensinava Anellise com seus deveres de casa e era prestativo com toda a vizinhança. Além de ser muito bonito, mas não se gabar disso como Phelipe.
Os dois eram praticamente iguais quando se tratava de aparência. Eram ruivos dos olhos esverdeados. Tiravam o fôlego de muitas meninas da vila, enquanto Phelipe se esforçava para ficar com a maioria das meninas, August era reservado e esperava a menina certa, o momento certo. Já Kerina era loira e tinha olhos castanho-claros, com alguns fios brancos começando a aparecer. Ela vivia cantarolando e dizia a todos que tudo ficaria bem. Era alegre na maior parte do tempo, embora nos últimos dias apresentasse um comportamento completamente oposto. Sua filha tinha cabelos castanho claro como mel e olhos verdes muito expressivos, havia muito de seu pai em sua aparência e isso as vezes parecia entristecer sua mãe, Kerina.
Seu pai havia morrido quando ela era pequena, Hondigues, era seu nome. Era um pescador e tanto. Homem forte e muito valente. Morreu durante uma invasão católica que tinha como objetivo m***r todos os “bruxos”. Hondigues claro, não deixou. Ele e mais alguns moradores enfrentaram um batalhão de vinte e três soldados enquanto suas famílias fugiam em segurança para o abrigo dentro da floresta. Sua vila era afastada e eles só praticavam magia de cura. Mas só isso bastava para eles os aniquilarem. Os homens da vila lutaram bravamente e morreram com honra, levando dezessete soldados com eles. A igreja bateu em retirada e por algum motivo, talvez m*l explicado, ela nunca mais voltou. Alguns dizem que os moradores lançaram uma p******o e a igreja jamais nos achou por conta dela. Outros que ela apenas se acovardou por ver nosso imenso poder. Ninguém sabe ao certo. Kerina nunca mais foi a mesma após a morte do marido. Vivia falando em presságios, maldiçoes e acabou se tronando a louca da vila com o passar do tempo. Criou sua filha como uma guerreira, pois pensava ela que uma guerra estava muito próxima de eclodir.
Anellise soube que sua mãe havia recebido uma missão, da qual nunca mencionara em casa, e que por isso, estava enlouquecendo. Ela não acreditava nos habitantes que chamavam sua mãe de louca, ela conhecia sua mãe como ninguém. Anne passava horas em cima de livros, tentando entender o que se passava na vida de sua mãe para tentar ajudá-la. Mas jamais encontrou algo promissor.
Após fechar seu pequeno diário, que escrevia em seu quarto à noite, viu seu tio Phelipe em sua porta, encarando-a. Ele possuía um olhar vazio e assustador em seu rosto.
- Oh, que susto! – riu - Precisa de algo, tio?
Ele nada respondeu. Parecia confuso, mas ao mesmo tempo com raiva. Seu rosto começou a se retorcer e Anellise deu um pulo da cama e caminhou até o batente da porta, encostando em seu braço.
- Phelipe? Está tudo bem? – perguntou Anellise, com um tom de preocupação.
Sua expressão mudou de raiva para tristeza profunda, e então se virou e saiu do quarto sem nada dizer. Anellise achou sua atitude um tanto macabra e decidiu não ir atrás, o deixando ter seu espaço e desligou a luz ao se deitar, deixando a noite engoli-la por inteiro. Afinal, logo completaria quinze anos.
O dia amanheceu sombrio. Era bem cedo ainda, mas na janela não havia luz. Anellise acordou com o chão tremendo e ouviu o tumulto que se formava lá fora. Ficou com medo, não sabia se ficava em casa, onde estaria segura, ou se sairia para tentar ajudar. Ela procurou sua família e não conseguiu encontrar ninguém. Seu coração gelou.
Meu Deus, eles estão lá fora. – logo pensou. Ela se trocou rapidamente e saiu aos tropeços porta a fora. Mas o que ela encontrou do lado de fora, a paralisou de imediato.
O dia parecia noite, o céu era n***o e caíam cinzas por toda parte. Em quase toda a aldeia havia fogo. As pessoas pegavam o que podiam de seus pertences e corriam para o abrigo na floresta, outras tentavam apagar as chamas em vão. O fogo vinha dos céus em forma de chuva, como se os Deuses chorassem sua dor em cima de nós. Anne corria pelos becos gritando por seus parentes, mas em lugar algum os encontrava. Ela em meio ao seu desespero, com as lágrimas varrendo sua face, decidiu ir ao lado contrário ao que as pessoas corriam e acabou parando na entrada do cemitério onde, ao lado de uma grande fogueira, havia um grande círculo n***o. O círculo estava rompido, logo constatou. Seja lá o que fosse que haviam invocado ali, não conseguiram contê-lo e o mesmo estava solto pela aldeia. Por que alguém faria algo assim? Ela procurou por qualquer coisa que lhe desse alguma pista e avistou de longe um grande livro vermelho perto da fogueira. O livro de feitiços de sua família...
- Ah, não mamãe... as lágrimas já brotavam em seus olhos novamente à medida que seus soluços aumentavam. – O que foi que você fez?
Ela estava confusa e entristecida, cheia de incertezas. Agarrou o livro e correu de volta para a aldeia.
No meio da aldeia, enquanto ela andava, percebeu dois homens jovens estirados no chão.
Seus tios.
E lá estava sua mãe, toda encharcada de sangue, ajoelhada diante dos corpos sem vida. Foi então que Anellise entendeu tudo. Suas mãe havia assassinado os próprios irmãos. Mas por que?
Ela enlouquecera.
Quando Kerina percebeu a presença de sua filha, levantou-se e caminhou até a menina aterrorizada. Tentou tocá-la, mas Anne se afastou e balançou a cabeça em negação.
- Você enlouqueceu completamente, Kerina.
A mulher abriu seus dentes em um sorriso macabro – Sua mãe não está presente no momento, criança.
Anne se afastou ainda mais, percebendo os olhos negros do demônio que possuía o corpo de Kerina.
- Eles precisavam morrer, sabe? A sua linhagem termina hoje. – ela olhava os corpos com desdém. – Tive de fazer isso para você chegar até mim. – o demônio se aproximou da menina. – Anellise, você dentre os últimos guardiões adormecidos é a que tem o cheiro mais forte. – Anellise deu uns bons passos para trás, encarando a face demoníaca que um dia fora sua mãe.
- Se afaste, demônio!
- Não posso permitir que você tenha filhos.
A criatura voltou a se aproximar da menina amedrontada que ao ver sua morte se aproximando agarrou o livro contra o peito e começou a correr.
Alguém, pensou. Alguém me ajude, por favor!
Annelise olhava para aquilo tudo ainda sem acreditar. Sua família, morta. Sua mãe, perdida nas garras de um monstro e seu futuro provavelmente não existiria depois daquele dia. Ela corria com as lágrimas segando sua visão sobre o caminho e acabou por trombar em um grande homem que a fez cair.
A próxima coisa que ela viu, a deixou sem fôlego ainda mais. Arregalando seus olhos cinzentos para o homem, ela viu o que jamais achou que veria novamente. Seu pai. E ele não estava sozinho. Existiam outras quatro pessoas perto dele, olhando para o demônio que caminhava lentamente e dando gargalhadas na direção da garota.
- Papai? Eu já estou morta? – o homem lhe olhou com afeição e sorriu brevemente, lhe fazendo um leve carinho nos cabelos.
- Não, querida. – Hondigues voltou seu olhar para Ken e tentava não parecer abalado. Uma mulher que estava com ele se agachou para ajudar Anellise a se levantar.
- Vai ficar tudo bem agora, nós vamos acabar com todo esse caos, mas por favor, não olhe. Ela ainda é a sua mãe.
A mulher abraçou Anellise forte, para que a menina não se virasse, enquanto os três homens e uma outra mulher se aproximavam da b***a.
- Em nome da Ordem dos Guardiões, nós o expulsamos! – gritaram. A cada passo que chegavam mais perto de Ken, outro grito era proferido em direção à ela. – Em nome da Ordem dos Guardiões, nós o expulsamos!
Em suas mãos, anéis de cores diferentes brilhavam e ao apontar a palma da mão para o demônio, uma luz branca começou a iluminar o caminho, e a cada passo mais perto do demônio, o seu sorriso ia sumindo.
- O que estão fazendo? – perguntou. A criatura parecia aterrorizada com o ritual que se seguia e furtivamente foi andando para longe deles.
A mulher que estava com Anellise em seus braços ergueu a mão e uma barreira apareceu logo atrás do demônio, que ao tentar atravessar se queimava. Ele no desespero, se voltou para a menina.
- Anellise, amor. Por favor, faça eles pararem. Sou eu! Sou a mamãe. Anellise! ANELLISE!
Seu grito fez a menina cair de joelhos, aos prantos, com a mulher ainda a segurando forte. A mulher lhe sussurrou nos ouvidos:
- Fique forte, já vai acabar. Já está terminando.
Os quatro membros da Ordem alcançaram Kerina e a luz branca inundou sua face amedrontada e ao mesmo tempo com ódio.
- Outros virão atrás dela. Se acham que estou sozinho, se enganam. Logo reinaremos na Terra.
Um grande portal se materializou e o demônio foi sugado para dentro, sendo assim a porta fechada e o rito silenciado.
Ao ouvir o silêncio que se estendeu por poucos minutos, os soluços de Anellise se tornaram mais presentes. Ela se soltou da mulher e olhou a sua volta, procurando o corpo de sua mãe, mas nada encontrava.
- Onde está? – perguntou quase num sussurro. – Onde ela está? – ela se direcionou a Hondigues agora, com certa dureza em sua voz.
- Kerina se foi, Anellise. Seu corpo e alma foram corrompidos pelo demônio, não havia nada que pudéssemos fazer.
- Vocês baniram o demônio ainda no corpo de minha mãe? – ela olhada incrédula o rosto entristecido de seu pai, mas outra pessoa respondeu.
- Se separássemos ele do hospedeiro, ele poderia fugir, tomar outro corpo e voltar atrás de você, não podíamos permitir isso.
- Você é nossa maior prioridade. – disse outra mulher.
- Por que isso tudo está acontecendo? Por que meu pai ainda está vivo, quando me disseram que morrera, por que minha mãe foi banida com um demônio para Deus sabe aonde e por que eu? O que está acontecendo?
A mulher que estava com Anellise se aproximou novamente sorriu, tentando transmitir algum amor.
- Me chamo Agnes. Esses são Jules, Betty, Thiago e claro, Hondigues, seu pai. Somos da Ordem que protege a linhagem dos guardiões da sua família. Nos imagine como cavalheiros que protegem a realeza. A sua família vem da linhagem mais poderosa de bruxos. Herdaram o livro vermelho, que chamamos de Sagrado, para colocar os seus maiores feitos e descobertas. Técnicas de combate, poções e feitiços que possam ajudar o Guardião, quando ele despertar.
Seu pai se aproximou e tocou o ombro da menina.
- Não há tempo de explicar por que eu sumi, espero que você já tenha entendido o real significado disso.
Mais claro do que ela esperava. Claro que se utilizasse a analogia de cavalheiro x realeza, você entenderia que eles nunca poderiam e nem deveriam ter ficado juntos. Mas o que ela não compreendia era a mentira. A dor que sentiu ao saber que ele falecera. Antes dela começar a questioná-lo, ele a abraçou forte.
- Eu sempre te amei muito, pequena. Me desculpe. – sussurrou. – Precisamos te mover daqui. A sua mera presença vai atrair mais deles para onde você for. Precisa se refugiar o mais longe possível daqui e, principalmente, longe de bruxos. É onde eles vão procurar primeiro.
A menina enterrou os tios, com a ajuda de seu pai e o restante da Ordem, ajudou a restaurar o vilarejo e trazer as pessoas de volta do abrigo. Ela podia ver que seu pai estava sofrendo muito, mas não queria demonstrar. Ele ainda amava muito sua mãe.
- Você precisa pegar as suas coisas para a viagem, já temos um navio pronto para nossa viagem, como suprimentos suficientes.
A menina nada disse e apenas se levantou e andou arrastada para casa. Ela não conseguia mais chorar, ela só pensava em se vingar.
Foi até sua casa e arrumou uma trouxa de roupas. Limpando as lágrimas no rosto, pegou uma adaga e cortou seus longos cabelos castanhos, os deixando bem curtos, amarrou um amuleto de sua mãe à sua bagagem e caminhou, saindo da aldeia em direção ao mar.