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O sol entrou rasgando pela fresta da cortina como se tivesse sido chutado do céu.
Meus olhos ainda tentavam entender onde acabava o sonho e começava o calor real daquela manhã.
A pele dela, grudada na minha.
O braço jogado por cima do meu peito, a respiração calma, o cabelo embolado no meu queixo.
Luísa dormia como quem não devia nada a ninguém.
Nem ao relógio.
Nem ao juízo.
Muito menos à minha sanidade.
Fiquei ali um tempo, só olhando.
O ventilador girava com aquele chiado de quem já viveu demais.
O quarto cheirava a incenso velho e pele recém-amada.
E o mundo lá fora… que se explodisse.
Mas o mundo sempre dá um jeito de lembrar que existe.
BATERAM NA PORTA.
Com força.
Três socos.
— “DANIEEEEEEL! TU TÁ COM MEU FONE, c*****o?”
Luísa deu um pulo.
Eu levei a mão ao rosto.
— “Helena, PELO AMOR DE DEUS!”
— “MEU FONE, c****e!”
— “EU TÔ NU, HELENA!”
— “E EU TÔ SURDA, p***a!”
— “Essa casa é um hospício,” Luísa murmurou, enterrando o rosto no travesseiro.
Me levantei ainda zonzo, tropecei no tênis, peguei a toalha do encosto da cadeira e amarrei na cintura como se fosse capa de super-herói cansado.
Abri a porta com a cara amassada:
— “Tu é doente?”
Helena, dezessete anos de sarcasmo no talo, cabelo preso num coque bagunçado e a cara azeda do capeta em véspera de Enem.
— “Quero meu fone. Aquele branco. Da JBL. Que tu ‘pegou emprestado por cinco minutos’ faz DUAS SEMANAS.”
— “Tá no meu moletom. Na cadeira.”
Ela entrou sem cerimônia, passou por mim igual carreta sem freio, pegou o fone, olhou a Luísa deitada e soltou:
— “Vocês transaram com a porta trancada, né?”
— “HELENA!”
— “Relaxa, eu shippo vocês. Mas se eu engravidar com esses gritos, a culpa é de vocês.”
E saiu. Tranquila. Como se tivesse ido buscar pão.
Fechei a porta devagar, ainda em choque.
— “Essa menina não tem filtro.”
— “Essa menina vai dominar o mundo,” Luísa disse, rindo, já sentada na cama, puxando o edredom pro colo.
Me sentei ao lado, passei a mão no cabelo e respirei fundo.
— “Bom dia.”
Ela encostou a testa no meu ombro.
— “Bom dia, marido sem papel.”
— “Marido sem fone, no caso.”
— “A gente vai ter que esconder os nossos filhos dela.”
— “Se a gente tiver filhos com a língua da Helena, eu fujo de casa.”
Luísa riu alto.
— “Tu ama ela.”
— “Amo. Mas só porque não posso vender.”
O cheiro de café começou a invadir o quarto.
— “Tua mãe fez café…”
— “E tapioca.”
— “E bolo de milho.”
— “E vai perguntar se a gente usou camisinha.”
— “Vai.”
— “E vai comentar o volume da tua risada.”
— “Com certeza.”
— “E vai mandar eu tomar banho antes de sentar à mesa.”
— “Já considero ela minha sogra.”
— “Ela já te considera nora há meses.”
— “E teu pai?”
— “Vai fingir que não ouviu nada.”
— “Mas vai olhar torto.”
— “Vai.”
— “Ótimo. Então vamo tomar café juntos como um casal desavergonhado.”
— “Do jeito que tu disse ontem à noite.”
Ela me puxou pela mão.
E a gente desceu rindo.
Minha mãe tava na cozinha, de costas, mexendo uma panela com cheiro de coisa boa.
Usava um avental florido e cantarolava Alcione.
Meu pai tava na varanda, lendo jornal como se morasse num filme dos anos 90.
A gente entrou de mãos dadas.
Minha mãe virou, olhou a gente e deu aquele sorrisinho com canto de boca de quem sabe exatamente o que rolou — e faz questão de deixar a dúvida plantada.
— “Dormiram bem?”
— “Dormimos,” Luísa respondeu, plena.
— “De porta trancada?” — perguntou, piscando.
— “Mãe…” — reclamei.
— “Só perguntei. Porque o ventilador tava no ritmo do É o Tchan.”
Meu pai tossiu no jornal.
Luísa segurou o riso.
E eu… eu só agradeci por viver num lar que era loucura, amor e café passado na hora certa.
Ela se sentou na mesa, aceitou a tapioca, pegou um copo de suco e disse, como quem comenta o tempo:
— “Quando a gente casar… quero que nossa casa tenha esse cheiro aqui.”
— “De quê?”
— “De riso. De coisa feita com amor. E de gente que não tem vergonha de se amar.”
Minha mãe sorriu.
Meu pai levantou os olhos do jornal.
E eu?
Eu soube de novo.
Se eu fosse casar um dia… seria com ela.
E o convite ia dizer:
"traga fone de ouvido. Essa família grita, ama e transa com a janela aberta."
A manhã seguiu entre garfadas de tapioca e piadas veladas da minha mãe, que parecia ter feito um pacto com o demônio do constrangimento doméstico.
Luísa já tava na terceira fatia de bolo de milho, toda confortável no nosso caos familiar, quando apoiou o cotovelo na mesa, olhou pra mim por cima do copo de suco e soltou, no maior estilo casual:
— “Tu me leva na faculdade depois?”
Eu já sabia que vinha golpe.
— “Levo. Aula agora de manhã?”
Ela balançou a cabeça, com aquele sorriso de canto que só aparece quando ela vai pedir coisa com açúcar.
— “Não é pra aula. Só vou lá pegar uns documentos, resolver uma parada da monitoria… e pegar uns cadernos que esqueci na sala da prof de linguística.”
— “Hum…” — encostei na cadeira e cruzei os braços. — “Só isso?”
— “Só.”
— “E por acaso essa sala de linguística é perto do pátio?”
— “Bem do ladinho.”
— “E tu vai querer passar pelo pátio?”
— “Talvez.” — ela mordeu o canto da boca, cínica. — “É que a Fernanda estuda lá ainda, né? E eu gosto de fazer exercício de convivência.”
— “Tu quer me exibir.”
— “Eu quero te usar como escudo humano contra ranço, inveja e recalque.”
— “Tu é abusada.”
— “E tu é bonito. Dá nisso.”
Minha mãe fingia que não tava ouvindo, mas deu um sorrisinho escondido enquanto lavava a louça. Meu pai virou mais uma página do jornal como se o mundo lá fora não tivesse acabando de ouvir que eu era um escudo humano contra recalque universitário.
— “Tá bom, Luísa. Eu te levo.”
— “De carro?”
— “De carro.”
— “De jaqueta preta e óculos escuro?”
— “Tu quer causar, né?”
— “Eu quero marcar território.”
— “Eu não sou poste, mulher.”
— “Mas é meu. E eu marco do jeito que eu quiser.”
Ela piscou, folgada.
Minha mãe tossiu pra disfarçar o riso.
Eu ri também, mas sem conseguir esconder o quanto eu gostava daquela audácia. Aquele jeito dela de pegar tudo que queria — até o silêncio do meu pai e o escárnio da minha irmã — e transformar em cenário pra ser feliz comigo.
— “Tu não presta.”
— “E tu me leva mesmo assim.”
Luísa tava prestes a terminar o copo de suco quando Helena surgiu no batente da cozinha com o andar de quem já chega decidida a causar.
— “Lu! Tu vai lá na facul com o Daniel?”
— “Vou. Só resolver umas paradas rápidas.”
— “Então vem comigo! Vou te emprestar um vestido LINDO. Tipo, lindo nível ‘a Fernanda vai engasgar com o próprio recalque’.”
Luísa riu, meio sem entender, mas levantou.
— “Vestido? Pra ir pegar papelada?”
— “É. Porque autoestima é armadura. E recalque, minha filha… a gente enterra com look bom.”
— “Tá bom, coach de beleza espontânea. Me mostra o tal vestido.”
As duas sumiram rindo pelo corredor, Helena puxando Luísa pelo braço como se fosse stylist de celebridade atrasada pro red carpet.
Ficou só o barulho de passos correndo pelo piso de madeira.
E eu ali, com o garfo ainda no ar, a boca meio aberta, e um aperto repentino bem no meio do peito.
Seco.
Rápido.
Incômodo.
Tipo quando tu ouve uma sirene longe, mas não sabe se é pra ti.
Minha mãe, que até então tava entretida com a louça, virou devagar, enxugando as mãos no pano de prato, e me olhou com aquela calma de quem não precisa perguntar duas vezes pra saber quando o filho tá pensando demais.
— “O que houve, Daniel?”
Demorei dois segundos pra responder.
Porque nem eu sabia direito.
Mas respondi mesmo assim, porque mãe sente antes do filho falar.
— “Nada… acho.”
Ela veio até a mesa, puxou a cadeira devagar e sentou de frente pra mim. Não falou nada logo de cara. Só ficou ali, me olhando como quem conta batimento em silêncio.
— “Foi só um aperto estranho,” murmurei, finalmente. — “Como se alguém tivesse desligado a luz um segundo e ligado de novo.”
Ela assentiu.
Com aquela serenidade que só mãe tem quando o instinto fala mais alto que qualquer ciência.
— “Às vezes é só o coração avisando que ama mais do que consegue carregar.”
— “Tu acha que isso é possível?”
— “Com mulher igual a Luísa? Acho. Tu ama até quando ela te faz de escudo emocional e ainda pede pra tu posar de galã no campus.”
— “É.”
Suspirei, cocei o queixo, olhei pro corredor como se conseguisse enxergar ela lá longe, dentro do quarto da minha irmã, rindo, experimentando vestido, bagunçando tudo que era meu — até o eixo do meu mundo.
— “Mas não é só isso.”
— “Então o que é?”
Olhei pro copo na minha frente. O suco já quente. A tapioca pela metade. E aquele silêncio que faz mais barulho do que qualquer briga.
— “É como se… algo fosse mudar. Não sei. Tô com essa sensação.”
— “Mudança nem sempre vem gritando, meu filho. Às vezes ela vem de vestido emprestado e sorriso fácil.”
— “E se não for boa?”
Minha mãe sorriu com doçura.
— “Toda mudança que começa com amor tem chance de ser boa. Mas se doer… tu volta. E a gente junta os pedaços.”
Fechei os olhos por um segundo.
Respirei.
Apertei a xícara entre os dedos e me prometi, ali mesmo, que se esse aperto no peito significasse alguma virada de estrada… então que eu tivesse braço pra segurar.
Porque se fosse pra perder, que não fosse por falta de abraço.
Nem por medo de sentir.
No fundo do corredor, ouvi o riso das duas. E o som de um zíper fechando.
Luísa apareceu na porta da sala.
E eu?
Eu esqueci o aperto por dois segundos.
Porque ela tava linda.
Linda num nível que a Fernanda ia engasgar sim — com inveja, com recalque, com tudo.
Mas o tal aperto…
Ele não foi embora.
Só se escondeu por enquanto.