Capítulo 1 Daniel

1361 Words
📖 CAPÍTULO UM – O MENINO QUE QUERIA PAZ Narrado por Daniel — ainda ele, inteiro, antes da queda O céu tava rosa. Rosa mesmo. Tipo um algodão-doce esfarelado, meio laranja, meio dourado, daquele jeito que só Angra sabe fazer quando o dia se despede devagar. O mar se mexia preguiçoso, e a areia tava morna, grudando nas costas da Luísa, que se esticava ao meu lado com a barriga pra cima e os olhos fechados. Ela era linda. Linda do tipo que não sabe. Do tipo que sorri com os cílios e fala palavrão como quem reza. Tava de biquíni preto e uma canga velha amarrada na cintura. A pele dourada do sol, o cabelo preso num coque bagunçado e a boca sempre com gosto de sal e provocação. Eu olhava pra ela e me perguntava como caralhos eu tive tanta sorte. — “Tá olhando o quê?” — ela perguntou, sem abrir os olhos, com um sorrisinho de canto. — “Tô contando quantas sardas apareceram hoje.” — “Mentira. Tu tá é pensando safadeza.” — “Talvez.” Ela riu e virou de lado, apoiando a cabeça no meu ombro. — “Tu pensa muito. Fica com essa cara de quem carrega o mundo. Tá proibido pensar quando tá de frente pro mar.” — “Faz parte do pacote. Filho de Viviane com Jonatha não nasceu pra ser leve.” Ela ergueu uma sobrancelha. — “Aí vem ele com o drama.” — “Não é drama. É só... real. Cê sabe. Eu cresci ouvindo que tinha que ser o contrário do meu pai. Que meu nome ia ser minha salvação. Que eu podia ser outra coisa.” — “E foi. É.” — “Tô tentando.” — “Tá conseguindo.” Ela segurou minha mão, entrelaçou os dedos nos meus. A aliança fina que ela usava de enfeite bateu na minha falange. Eu gostava desse som. Pequeno, íntimo. Como se o mundo tivesse espaço pra paz. — “Dani, cê fez faculdade, p***a. Tu tá fazendo Direito. O Jonatha com 19 já matava gente. Tu com 20 tá defendendo o povo.” — “Tô tentando defender. Mas o sistema não ajuda.” Ela sentou, puxando os joelhos pro peito. — “Tu ainda pensa em largar?” — “Todo dia. Mas todo dia eu fico. Porque... sei lá. Se eu largar, quem é que vai ficar na trincheira?” Ela olhou pro mar. A luz dourada fazia a pele dela brilhar. — “Tu já reparou que quando tu fala sério tua voz fica mais grave?” — “E quando tu me olha assim eu esqueço tudo que tava falando.” Ela sorriu de canto. Aquele sorrisinho que ela dava quando sabia que me tinha na palma da mão. — “Cê é um trouxa apaixonado.” — “Sou. Teu trouxa.” — “Ainda bem.” Ela deitou de novo e puxou minha camiseta pra usar de travesseiro. A ponta da perna dela encostava na minha. A gente cabia um no outro sem esforço. Ficamos um tempo em silêncio. Só o som do mar, do vento, de uma criança rindo ao longe e o meu coração batendo do lado do dela. — “Tu acha que teu pai se arrepende?” — ela perguntou de repente. — “De quê?” — “De ter largado tudo. O morro. A grana. A guerra.” — “Não sei. Nunca perguntei. Mas acho que sim. E não. Ele vive entre dois mundos, Lu. Às vezes ele olha pra mim como se eu fosse redenção. Às vezes... como se eu fosse lembrança.” Ela virou de lado, me olhando nos olhos. — “E tu? Cê se arrepende de ter nascido dele?” — “Não. Me arrependo é de achar que podia apagar de onde vim. A quebrada não sai, Lu. Ela gruda na gente. No jeito de andar, de falar, de amar. E eu amo que nem favelado mesmo. Com medo de perder. Com garra. Com fome.” Ela me puxou pelo colarinho da camisa, que tava jogada ao lado. — “Então me ama agora. Com tudo.” Beijei ela ali mesmo. Deitado na areia. Com o sol morrendo atrás da cabeça dela. E a certeza de que não existia nada mais importante do que aquele instante. O beijo dela tinha gosto de promessa. Daquelas que o tempo guarda, mas o destino adora cuspir. Ela me empurrou devagar, rindo. — “Cê não tem vergonha? Vai querer t*****r no meio da praia?” — “Não. Tô querendo eternizar. É diferente.” — “Poético agora?” — “Sempre fui. Tu que só percebeu depois do segundo beijo.” Ela se deitou por cima de mim, os cabelos caindo sobre meu rosto, e me olhou como se tivesse tentando ler o que tava escondido atrás dos meus olhos. — “Promete que não vai mudar?” — “Eu sou todo mudança, Lu.” — “Promete que não vai desistir de ser bom. Mesmo que o mundo tente te quebrar.” Demorei pra responder. Porque no fundo… eu sabia que o mundo ia tentar. — “Eu prometo tentar.” Ela encostou a testa na minha. — “Já é mais do que a maioria faz.” Ela suspirou, fechou os olhos e ficou ali, com a testa colada na minha, por longos segundos. O som das ondas quebrando atrás da gente era tipo um lembrete de que o tempo ainda tava passando — mesmo que naquele instante tudo parecesse suspenso. A respiração dela era quente contra minha bochecha. A ponta do nariz roçando o meu. E eu pensei: “Se isso aqui for sonho, não me acorda nunca.” Mas do nada, ela se levantou. Deu um salto ágil, como se tivesse acabado de lembrar de alguma coisa muito importante, sacudiu a canga, o cabelo, e saiu andando em direção à beira do mar, toda cheia de graça. — “Pra onde cê vai, doida?” — perguntei, ainda deitado, com o braço cobrindo os olhos. — “Buscar inspiração poética.” — ela gritou, debochada. — “Vai que eu viro escritora depois de te aturar tanto.” — “Vai escrever o quê? ‘Manual de sobrevivência a um namorado gostoso’?” Ela riu. — “Manual de como aturar cara intenso e dramático que faz Direito achando que é herói da quebrada.” — “Invejosa.” — “Convencido!” E foi aí. Do nada. Sem aviso. Ela encheu as duas mãos de areia e… TCHÁ. Jogou tudo em cima de mim. A areia caiu na minha cara, no meu peito, dentro da orelha e, pior — na minha boca. — “LUÍSA, TÁ MALUCA?” — engasguei, cuspindo areia. Ela gargalhava alto, com a barriga dobrada, se segurando pra não cair. — “Ahhh, Dani, tua cara foi impagável! Parecia uma tartaruga virada!” — “Tu é muito atrevida!” Levantei de um pulo, ainda cuspindo areia, e corri atrás dela. Ela tentou escapar, correndo pela areia fofa, mas eu era mais rápido. Alcancei ela no segundo passo, segurei pela cintura e levantei. — “NÃO, NÃO, NÃO!” — ela gritava entre risos, se debatendo. Mas era tarde. Girei ela no ar, como se ela fosse só vento nos meus braços. A risada dela explodiu no meu ouvido, e juro, foi o som mais vivo que já ouvi na vida. Ela se pendurou no meu pescoço, ainda ofegante, os olhos brilhando de alegria. — “Tu não presta…” — “Mas tu ama.” — “Fazer o quê, né? Gosto de viver perigosamente.” — “Então cê ama errado.” Ela encostou a cabeça no meu ombro, o nariz na curva do meu pescoço. — “Promete que não vai deixar esse amor virar tristeza?” Fiquei quieto por um instante. O coração batia forte demais. Aquela pergunta era maior do que parecia. — “Enquanto eu viver, Lu... o que eu sinto por ti vai ser abrigo, não tempestade.”
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