O céu ainda estava tingido de um leve tom alaranjado quando Lana e Lena saíram do prédio, cada uma com sua mochila nos ombros. O ar da manhã estava fresco, e a cidade parecia respirar lentamente, como se soubesse que aquele dia seria especial para alguém.
— Tchau, mamãe! — Lena gritou do corredor, a voz animada, mas com o coração apertado de nervosismo.
— Deus acompanhe vocês, minhas filhas! — Teresa respondeu da cozinha, onde o cheiro de pão fresco já dominava o ambiente.
Francisco ajeitou o boné na cabeça, a farda impecável como sempre. Ele beijou Teresa na testa com ternura e caminhou até as filhas com aquele sorriso cansado, mas repleto de orgulho.
— Bom dia, minhas meninas. Hoje é um grande dia.
Lana segurou a mão do pai por um instante, sentindo o calor daquela pele calejada pelo trabalho duro.
— Papai… em breve eu vou poder ajudar vocês. Se Deus quiser.
Francisco apertou a mão da filha com carinho, os olhos marejando discretamente.
— Deus quer, minha filha. E vai ser mais breve do que você imagina.
Teresa apareceu na porta da cozinha, enxugando as mãos no avental florido, como sempre fazia. Seu olhar era de quem segurava o mundo nos braços, mas ainda assim achava forças para ser doce.
— Eu vou ao mercado daqui a pouco. Tenho umas encomendas de tortas para entregar. Mas não se preocupe, filha, a gente vai dando conta de tudo. Você só cuide dos seus estudos e desse estágio.
Lana assentiu, esboçando um sorriso que escondia a vontade de chorar. Sabia que cada torta vendida era um tijolo a mais na construção do seu futuro.
— Pode deixar, mamãe. E boa sorte com as tortas!
— Obrigada, querida. Vá com Deus.
Depois de um último beijo em Teresa, Francisco saiu para o trabalho com passos decididos. No coração, levava um misto de orgulho e responsabilidade. Aquele não seria um dia qualquer. Seria o dia em que ele abriria as portas para o sonho da sua filha. E não havia honra maior para um pai do que ver suas filhas conquistando o próprio caminho.
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O edifício Salvattori imponente erguia-se diante de Francisco, como sempre, mas naquela manhã ele parecia mais grandioso. Cada passo até a entrada era uma reafirmação silenciosa de que, apesar de ser porteiro, ali estava um homem digno, que educou suas filhas com valores e princípios que dinheiro nenhum comprava.
Francisco cumprimentava os colegas com a simpatia de sempre, como quem entende que respeito não depende de cargo. O relógio marcava 7h15 quando ele viu Patrick Nottingham Blackwood atravessando o saguão, impecável em seu terno escuro, passos firmes e olhar de quem carrega o mundo nos ombros.
Francisco ajeitou a postura e caminhou até a recepção da portaria.
— Bom dia, dona Vera. Tudo bem?
— Bom dia, seu Francisco! Tudo ótimo, e o senhor?
— Tudo bem, graças a Deus. Vera, você poderia, por gentileza, ligar para a senhora Shirley, secretária do doutor Patrick? Gostaria de saber se ele teria um tempinho para falar comigo.
Vera, sempre solícita, sorriu e pegou o telefone.
— Claro, seu Francisco. Aguarde só um minutinho.
Enquanto ela fazia a ligação, Francisco olhava para o elevador como se pudesse enxergar o futuro da filha através das portas de aço inox. A cada toque do teclado, seu coração batia mais forte.
— Senhora Shirley? Aqui é a Vera, da portaria… o seu Francisco está aqui. O doutor Patrick teria um momento para recebê-lo?… Sim, ele está aqui, aguardo. — Vera tapou o microfone com a mão e sorriu para Francisco. — Ela está confirmando com ele agora.
Segundos depois, Vera retomou a ligação e assentiu, ainda com o sorriso gentil.
— Seu Francisco, a senhora Shirley disse que o doutor Patrick acabou de chegar e pediu que o senhor suba antes do horário comercial. Ele já está lhe esperando.
Francisco sentiu o coração aquecer. Aquela consideração não tinha preço.
— Muito obrigado, Vera. Que Deus abençoe seu dia.
— Amém, seu Francisco. Boa sorte!
Ele caminhou até o elevador com passos firmes, mas dentro do peito carregava uma emoção difícil de disfarçar. Sabia que aquele momento era mais do que um simples pedido de estágio — era a realização de um esforço silencioso de anos. Enquanto subia, pensava em cada madrugada acordado, cada uniforme passado, cada portão aberto… tudo para garantir que suas filhas tivessem uma vida melhor.
O elevador chegou ao andar executivo. As portas se abriram suavemente, como se aquele instante estivesse escrito em seu destino.
Shirley o recebeu com um sorriso cordial.
— Bom dia, seu Francisco. O doutor Patrick já o aguarda. Pode entrar.
Francisco respirou fundo, ajeitou o boné com respeito e caminhou até a porta do escritório. Antes de entrar, olhou para o teto como quem agradece em silêncio. Sabia que Deus estava ao seu lado.
Era hora de abrir uma nova porta para sua filha.
E nada… absolutamente nada… o faria falhar.
Francisco adentrou o escritório com passos respeitosos, tirando o boné da cabeça como fazia sempre que estava diante de alguém que estimava.
Patrick, de pé junto à janela, observava a cidade lá embaixo com as mãos nos bolsos. A luz da manhã desenhava sua silhueta imponente, mas seus olhos estavam cansados. Ainda assim, ao ouvir a porta, ele se virou com um sorriso genuíno.
— Seu Francisco, bom dia. Que surpresa agradável — Patrick disse, estendendo a mão.
Francisco apertou-lhe a mão com firmeza, mas com a humildade que lhe era natural.
— Bom dia, doutor Patrick. Perdão incomodá-lo tão cedo. Sei que sua agenda é lotada, mas precisava falar com o senhor antes que o dia começasse de verdade.
Patrick fez um gesto com a mão, indicando uma das poltronas à frente de sua mesa.
— O senhor nunca me incomoda, Francisco. Sente-se, por favor. Diga-me, o que posso fazer por você hoje?
Francisco sentou-se, ajeitou o boné sobre o joelho e respirou fundo.
— Doutor Patrick… é sobre minha filha, Lana. O senhor a conhece de vista, acredito. Ela está no último semestre da faculdade e precisa começar o estágio obrigatório para concluir a tese. Eu me lembrei do que o senhor disse, tempos atrás… que se um dia precisasse, era para procurar o senhor.
Patrick inclinou-se levemente para frente, apoiando os antebraços sobre a mesa. Sua expressão ficou séria, mas havia um brilho de interesse nos olhos.
— Claro que me lembro, Francisco. Eu disse isso porque conheço a honestidade da sua família. E sua filha… é uma moça dedicada, não é?
Francisco sorriu com um orgulho que transbordava.
— É, doutor. A Lana é estudiosa, esforçada, e de uma honestidade que eu e minha esposa fizemos questão de ensinar. Ela carrega nossos valores, doutor Patrick. Só precisa de uma oportunidade.
Patrick recostou-se na cadeira, entrelaçando os dedos sobre a mesa. Pensou por um instante. Ele conhecia Lana, sim. De vista. Lembrava-se da moça de olhos firmes e sorriso discreto, sempre educada ao cruzar com ele pelos corredores, sem jamais se aproximar com bajulações.
— Seu Francisco, sabe o que mais admiro em você? — Patrick perguntou, com um sorriso contido. — A sua lealdade. Durante todos esses anos, nunca vi o senhor se curvar para ninguém além do necessário. O senhor nunca pediu nada em troca do seu trabalho, mas sempre esteve ali, atento, zelando não só pela segurança do prédio, mas pela dignidade de todos aqui dentro.
Francisco abaixou os olhos, emocionado.
— Eu só cumpro meu dever, doutor Patrick. Sempre ensinei para minhas filhas que o nome da gente vale mais do que qualquer dinheiro.
Patrick assentiu, com respeito.
— E é exatamente por isso que quero sua filha aqui. Não porque o senhor me pediu, mas porque acredito que precisamos de mais pessoas assim nesta empresa. Pessoas que entendem o verdadeiro valor das coisas.
Francisco ergueu o olhar, emocionado, e Patrick continuou:
— Seu Francisco, sua filha vai começar o estágio aqui. Mas vou ser honesto com o senhor: este ambiente nem sempre é fácil. Existem pessoas aqui que não carregam os mesmos valores que o senhor. Quero que saiba que, enquanto estiver sob minha supervisão, a Lana será respeitada. Se alguém ousar desrespeitá-la, responderá diretamente a mim.
Francisco sentiu os olhos marejarem. Sua voz saiu firme, mas com o tom embargado.
— O senhor não sabe o quanto isso significa para mim e para minha família, doutor Patrick. A Lana é o orgulho da nossa casa. Eu confio que, com o senhor, ela estará em boas mãos.
Patrick sorriu, levantando-se.
— Confie em mim, seu Francisco. Agora vá tranquilo. Peça para ela passar na recepção amanhã cedo, antes do expediente. Vou orientá-la pessoalmente.
Francisco levantou-se, com o boné apertado nas mãos.
— Deus lhe pague, doutor Patrick. Que Deus lhe abençoe grandemente.
Patrick, com um gesto sincero, respondeu:
— Quem será abençoado somos nós, Francisco. A Salvattori precisa de mais pessoas com a fibra da sua filha. Conte comigo.
Francisco caminhou até a porta, mas antes de sair, virou-se mais uma vez.
— Doutor Patrick… a Lana não é do tipo que se deixa deslumbrar por essa vida de luxo. Ela vem de um lar humilde, mas de cabeça erguida. Só queria que o senhor soubesse disso.
Patrick observou o homem simples diante dele e, naquele momento, entendeu que aquela jovem seria diferente. Talvez a única capaz de lhe devolver a fé na humanidade.
— Eu sei, Francisco. E é justamente isso que me interessa nela.
Francisco assentiu e saiu, com o peito estufado de orgulho. Deixava ali sua filha, mas sabia que ela estava destinada a ser muito mais do que apenas “a filha do porteiro”.
Patrick permaneceu olhando para a porta fechada, pensativo.
Ele não sabia, mas aquele pedido simples acabara de dar início a uma reviravolta que nem ele, com todo seu poder, seria capaz de controlar.