###Entre Sombras e Luz

1469 Words
O silêncio da madrugada no hospital fora rompido apenas pelo alarme breve da parada cardíaca. Os médicos agiram rápido. Estabilizaram. Mas ninguém ali sabia que, naquele instante, Maris atravessava um túnel que não era deste mundo. A mente dela flutuava como em transe. Não havia mais dor física — ao menos não da forma que conhecia. Era como se o tempo parasse. De repente, escuridão. Profunda. Densa. Silenciosa. — Onde... eu estou? — murmurou ela, olhando ao redor, mas sem ver nada além do n***o absoluto. Um frio cortante tocou suas pernas, e foi quando ela percebeu que conseguia caminhar. A mão pousou instintivamente sobre o abdômen, como se buscasse a ferida. A dor estava ali, mas não a impedia de mover-se. Lá na frente, uma luz branda começou a pulsar. Pequena, mas firme. Como uma vela acesa no fim de um labirinto escuro. — Que luz é essa? — sussurrou, assustada e confusa. Foi então que uma voz feminina, suave como brisa em tarde de primavera, ecoou do além. — Venha, filha... Precisamos conversar. — Quem está aí? — indagou Maris, hesitante, ainda dando passos lentos. — Venha. Eu vou curar você. Mas você precisa vir até aqui... As palavras a envolviam como um cobertor quente. Havia algo reconfortante naquele timbre. Familiar... mas impossível de reconhecer. Maris seguiu em direção à luz. Seus passos a levaram por uma longa caminhada, até que o túnel se abriu. E ela viu. Um campo imenso, florido, cheio de jardins impecáveis e seres de aparência tranquila. Vestiam-se com tons suaves de azul, rosa, verde-claro e dourado. Alguns cuidavam de plantas. Outros estavam sentados lendo. Alguns acolhiam outros espíritos visivelmente cansados. Tudo era harmonia. — Isso é... o céu? Uma mulher de olhos serenos e cabelos ondulados respondeu, parada ao seu lado: — Não. Este é um dos lugares de transição. Aqui é onde os espíritos vêm para se recuperar. Alguns desencarnados ficam por um tempo. Outros, como você, vêm apenas em espírito, em momentos críticos. — Então eu morri? — os olhos de Maris se arregalaram. — Ainda não. Mas você esteve perto. Por isso foi permitida essa visita. Precisamos conversar... — Conversar sobre o quê? A mulher não respondeu com palavras. Apenas estendeu a mão e, com um toque leve na testa de Maris, abriu uma janela na mente dela. Imagens começaram a surgir. Uma avalanche. Ela viu a si mesma rindo das empregadas. Ignorando a dor da filha. Humilhando Lana, Tereza, Francisco. Envergonhando o ex-marido. Pisando em pessoas com menos recursos. Incentivando a filha a fazer o mesmo. Sendo c***l com palavras, com gestos, com atitudes. — Pare... por favor... PARE! — gritou Maris, tentando fechar os olhos. Mas não adiantava. A dor agora era moral. O peito queimava de vergonha. — Esse é o peso que você carrega, Maris. E é o que está adoecendo sua alma. — Eu... eu não sabia que era tanto assim... — Sabia, sim. Mas escolheu ignorar. Agora, tem a chance de recomeçar. Maris caiu de joelhos, tremendo. — Eu não quero morrer. Eu não quero deixar minha filha... Eu não quero ser assim... A mulher se agachou diante dela e sorriu com ternura. — Então comece a mudança dentro de você. Enquanto há tempo. Porque talvez não haja outra oportunidade. O Hospital das Almas A mulher serena pegou a mão de Maris com doçura. — Agora venha, vou te levar até a enfermaria. — Enfermaria? — Maris arqueou as sobrancelhas. — A senhora está me levando para outro hospital? A mulher sorriu com ternura. — Sim. Mas este é um hospital espiritual. Um lugar onde tratamos as doenças da alma. Você está em coma no plano físico, Maris. Mas aqui, há muito a ser curado. Seu corpo dorme... mas seu espírito despertou. — Eu estou... em coma? Ela assentiu. — Sim. E agora, filha, você precisa fazer uma escolha: ficar ou partir. Permanecer nesse plano definitivamente... ou voltar e reconstruir sua jornada com humildade e amor. Maris baixou os olhos, e lágrimas finas começaram a escorrer. — Eu... me tornei uma pessoa que eu mesma não reconheço. Uma mulher amarga, arrogante... Mas eu não era assim... A mulher a conduziu até uma cama branca, em um ambiente suave, com aromas florais e sons como de harpas ao fundo. — Você foi se tornando assim, sim... Por mágoas, traumas, escolhas. Mas não é tarde. Olhe para dentro de você, Maris. O seu coração não nasceu mau. Ele foi machucado, e se cobriu de orgulho e egoísmo como uma armadura. Mas agora, Deus te dá uma chance. Quer permanecer aqui? Ou deseja voltar? Maris ergueu o olhar marejado. — Eu... quero ficar. Quero tentar consertar tudo. Quero voltar. A mulher sorriu. Puxou uma pequena jarra cintilante e encheu um cálice com um líquido que brilhava em tons de lilás e azul. — Beba. Essa água cura. Alimenta o espírito. Parece suco... mas é medicamento para a alma. Maris bebeu e se emocionou com o sabor fresco, puro, diferente de tudo que já havia experimentado. — Agora deite. Descanse. Quando você acordar... será o início da mudança. Ela se deitou com leveza, os olhos começando a pesar, quando ouviu uma voz doce e familiar. — Você não reconheceu a sua mãe? Maris girou o rosto, e então arregalou os olhos. — Mamãe?! — Sim, minha filha... — disse a mulher com os mesmos olhos da infância dela, agora repletos de luz. — Eu e seu pai estamos aqui para te ajudar. — Papai?! — murmurou surpresa, ao vê-lo aproximar-se sorrindo. Ele se curvou com carinho e a beijou na testa. — Sempre estivemos com você. Mesmo quando você se afastou de tudo. Agora é hora de se perdoar. — Eu quero mudar... — sussurrou ela, chorando. — Eu quero ser a jovem que eu era. Antes da vaidade, do orgulho. Eu quero pedir perdão à minha filha, ao Francisco, à Tereza... — Só depende de você — respondeu a mãe, emocionada. — Agora, vamos deixá-la repousar. Você está no caminho certo. Eles se afastaram lentamente, deixando a luz suave tomar conta do ambiente. Maris fechou os olhos, sentindo o calor da presença deles ainda por perto. O Tratamento Espiritual Maris abriu os olhos devagar. Tudo ao seu redor era suave, luminoso, harmonioso. Os lençóis brancos exalavam um perfume floral. Ao lado da cama, sentada em uma poltrona feita de algo que parecia ser luz sólida, sua mãe a observava com um sorriso calmo. — Você acordou, minha filha. — Onde estou?... — ela murmurou, ainda confusa. — No hospital espiritual. Aqui, você será cuidada. Mas o cuidado maior será o da alma. Você ficará em repouso no corpo físico por cerca de trinta dias, e durante esse tempo, sua alma vai trabalhar. Vai se limpar. Vai estudar. Vai despertar. — Trinta dias? A mãe assentiu. — E para começar... — estendeu um livro de capa clara com letras douradas — ...este será seu companheiro diário: O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Esse é o início da sua caminhada de autoconhecimento. Maris pegou o livro com respeito, e ao abri-lo, sentiu um leve calor vibrar entre os dedos. A primeira página parecia brilhar sutilmente. Seus olhos pousaram na introdução: “Para se compreender certas passagens do Evangelho, é preciso que se lhes conheça o sentido verdadeiro. Muitos fatos e palavras, que à primeira vista parecem inverossímeis, ou absurdos, e até contrários à razão, não passam, na maioria das vezes, de alegorias m*l compreendidas, que só o conhecimento das leis do mundo invisível pode explicar.” (Allan Kardec – Introdução, O Livro dos Espíritos) — Isso aqui... parece que foi escrito para mim... — sussurrou ela, emocionada. — Foi escrito para todos nós, filha — respondeu sua mãe com doçura. — Este livro vai te ajudar a entender por que você se desviou... e como pode voltar. E aqui, você terá palestras todos os dias. Trabalhadores da luz virão falar sobre o perdão, o amor, a reencarnação, o arrependimento, a reforma íntima... Você vai aprender. Vai refletir. — Eu... eu nunca imaginei que existisse algo assim — disse Maris, virando mais páginas. — Esse lugar... essa paz... — Porque você passou muito tempo presa no orgulho. No materialismo. Agora está livre para começar de novo. Mas... a cura será sua escolha. Ninguém pode forçar sua mudança. Nem mesmo Deus. O livre-arbítrio é sagrado. Maris assentiu com lágrimas silenciosas. — Eu quero. Quero aprender. Quero mudar. — Então, comece hoje. Leia o capítulo introdutório. Depois, iremos à primeira palestra. E lembre-se: estamos aqui com você. Quando tiver dúvidas, nos chame com o pensamento. A sintonia é nossa ponte. Maris se ajeitou melhor na cama espiritual, o livro em mãos, o coração ainda apertado... mas, pela primeira vez em muitos anos, havia dentro dela um sopro leve de esperança.
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