Assim que a porta se fechou, Britney ficou alguns segundos em silêncio. O olhar perdido na colcha branca da cama, o corpo ainda um pouco curvado, como se estivesse abraçando pensamentos antigos.
— Sabe... — começou, com a voz mais baixa, quase num sussurro — depois que a doutora saiu... depois que ela falou comigo assim, com tanta verdade... e com vocês aqui do meu lado, me ajudando... eu parei para refletir.
Lena e Nisse se entreolharam em silêncio, dando-lhe o tempo de que precisava para continuar.
— Eu acho... — respirou fundo, os olhos se enchendo d'água — eu acho que para eu ter sido aquela pessoa insuportável que eu fui... eu devo ter algum problema emocional, algum trauma. Não é possível que alguém consiga afastar tantas pessoas boas sem estar machucada por dentro.
Ela se virou para Lena.
— Amanhã... se eu me esquecer, você me lembra, tá? Eu quero pedir para a doutora me recomendar um terapeuta quando eu sair do hospital com os bebês. Eu quero fazer terapia. Eu preciso fazer. Porque... eu quero ser melhor.
Nisse segurou a mão dela com ternura.
— Você já está sendo.
— Eu quero ser melhor por mim, por vocês que estão aqui, mesmo sem obrigação nenhuma. Mas principalmente pelos meus filhos... e pelo meu pai. Porque o meu pai... — a voz embargou — eu não sei nem explicar. Mas eu estou começando a ver que talvez tenha sido eu quem me distanciei dele. Eu achava que ele era ausente, que ele era frio... mas agora... agora eu estou vendo que ele é um homem maravilhoso. Meu pai é especial. Ele me ama. E ama os netos dele de um jeito que eu não sei nem descrever.
— O seu pai sempre foi assim, Britney — respondeu Lena, emocionada. — Mas ele é discreto. E ele te ama. Ama esses netos. Ele só precisava de uma chance para mostrar isso.
— Eu vou dar muito gosto a ele. Eu prometo. Vou dar orgulho a ele ainda.
Nisse acariciou o braço dela.
— Mas primeiro você tem que se realizar como pessoa. Se curar. Se fortalecer. Ser feliz por você mesma. Só depois vem o orgulho dos outros. Seu pai não quer que você mude para agradar ele. Ele quer que você mude por você. Porque você merece ser inteira.
Britney assentiu lentamente.
— É verdade. Eu sei disso. Mas me lembra, tá? Amanhã. Eu quero pedir à doutora que me indique alguém bom. Eu tenho certeza de que eu carrego traumas. Problemas emocionais que eu nunca tratei. E que moldaram essa Britney amargurada que ninguém aguentava, nem eu mesma.
Ela suspirou fundo, agora com a mão sobre o ventre.
— Eu quero que os meus filhos tenham orgulho da mãe que eles têm. Não medo. Não vergonha. Orgulho.
17h55 da tarde
O relógio marcava quase dezoito horas quando uma leve batida na porta chamou a atenção das três. Lena foi até lá e abriu com cautela. Do outro lado, uma senhora elegante, de cabelos grisalhos presos em um coque baixo, trajando um uniforme branco simples, mas impecável, sorriu com doçura.
— Boa tarde, minhas queridas. Eu sou a enfermeira Helena. Vim cuidar da mamãe e dos bebezinhos.
A voz suave e firme, ao mesmo tempo, invadiu o quarto como um bálsamo. Havia algo no tom dela que trazia calma, como uma avó que sabia exatamente o que estava fazendo. Lena e Nice imediatamente relaxaram os ombros.
— A senhora que é a enfermeira? — perguntou Nice, abrindo espaço para ela entrar.
— Sim, meu bem. Fui contratada pelo senhor Drill. Trabalhei trinta anos aqui neste hospital, especialmente na UTI neonatal. Estava prestes a me aposentar — ela olhou para Brittany com carinho — mas o seu pai me convenceu a encerrar minha jornada lá um pouco antes... para começar uma nova aqui com vocês.
Brittany, que ainda estava sentada na poltrona de amamentação, ergueu os olhos com surpresa e emoção. A mulher caminhou até ela com passos tranquilos, se abaixando um pouco para que ficassem à mesma altura.
— Você é Brittany? — perguntou com ternura. — Se você permitir, eu vou ajudar a cuidar dos seus filhos. Mas não só isso... quero te ensinar a cuidar de você também.
As lágrimas começaram a escorrer sem que Brittany percebesse. A enfermeira Helena estendeu a mão com delicadeza, sem invadir seu espaço.
— Eu sei que está tudo muito recente, minha flor. Que você passou por momentos intensos. Mas agora, você não está mais sozinha. Eu estou aqui, tá? — ela sorriu com os olhos marejados. — Eu sou mãe, sou avó, e posso compartilhar com você um pouquinho da minha experiência, se você deixar. Vou te ajudar a organizar horários, a descansar, a se alimentar com calma. Seus bebês dependem de você, sim... mas eles também precisam que você esteja inteira. Fortalecida. E isso significa aprender a dosar, a dar espaço com carinho, e a cuidar de si mesma.
Brittany chorava mais agora, em silêncio. Aquelas palavras acertavam em cheio algo dentro dela. Algo que estava desmoronando e reconstruindo ao mesmo tempo.
Helena segurou sua mão com gentileza.
— Não chore, meu bem. Chorar também faz parte do processo. É muita coisa para um coração só... mas agora você vai ter apoio. Você vai conseguir descansar. A gente vai cuidar de tudo direitinho, você vai ver.
Lena e Nice se aproximaram.
— Nós vamos embora agora, Brit. Mas amanhã a gente volta, tá bom? — disse Lena, emocionada. — Você vai estar em boas mãos. Olha o carinho dessa mulher.
— A tia T mandou dizer que qualquer coisa é só ligar — completou Nice. — E ela vai continuar mandando comidinha para você todos os dias.
Brittany soltou um riso entrecortado pelas lágrimas, ainda segurando a mão da enfermeira.
— Obrigada a todas vocês.
— Então... — disse Helena, limpando com um lenço as lágrimas que ainda escorriam — eu posso ajudar você?
Brittany apenas balançou a cabeça afirmativamente, os olhos úmidos brilhando em gratidão. Ela não conseguia falar, mas aquele gesto bastava. A enfermeira sorriu, firme e doce:
— Então vamos começar a cuidar direitinho dessa mamãe maravilhosa.
Helena sorriu com doçura, mas manteve a firmeza na fala:
— O que vamos fazer se chama método canguru. É uma prática cientificamente comprovada, recomendada pelo Ministério da Saúde e pela OMS, que consiste no contato pele a pele entre o bebê e a mãe — ou o pai — por tempo prolongado, especialmente para bebês prematuros ou de baixo peso.
Ela fez uma pausa e completou:
— Quando o bebê fica sobre o peito da mãe, ele sente os batimentos cardíacos dela, o calor corporal, a respiração, e isso faz com que o corpinho dele responda melhor. Diminui o estresse, regula a temperatura, melhora a respiração, estabiliza a frequência cardíaca e até acelera o ganho de peso.
Brittany ouvia atentamente, com os olhos úmidos.
— Os estudos mostram que o método canguru reduz em até 50% os riscos de complicações, como infecções e apneia. E mais: ele estimula a produção de leite materno, ajuda o bebê a sair da UTI mais rápido e fortalece o vínculo emocional com a mãe, o que vai ser muito importante no desenvolvimento psicológico deles no futuro.
— E não tem contra indicação? — sussurrou Brittany.
— Nenhuma. Desde que o bebê esteja estável e com os sinais vitais controlados, como já estão os seus, podemos começar. A única exigência é higiene e calma. Você precisa estar emocionalmente disposta, e hoje, pelo que estou vendo, você está dando o primeiro passo.
Ela sorriu, e Brittany retribuiu com uma lágrima escorrendo.
— Você vai ser a primeira incubadora humana dos seus filhos. Vai dar o calor, o amor, a segurança que eles precisam agora para crescer. Com o tempo, vamos fazer o método com todos os três. Um por vez, com o tempo ideal para cada um. E eu estarei ao seu lado em cada segundo.
Helena sorriu para Brittany com ternura e disse:
— Eu não sei se você percebeu, mas às vezes, quando os bebês estão nas incubadoras e você não está por perto, a gente os coloca em umas redinhas suspensas, parece até um bercinho dentro da incubadora, viu?
Brittany arregalou os olhos, surpresa.
— Sim, eu vi... mas não entendi o que era.
— Aquilo é chamado de rede terapêutica ou aninhamento neonatal. É como se fosse um colinho improvisado. Ele ajuda os bebês a se sentirem mais protegidos, como se ainda estivessem dentro da barriga. Isso os acalma, regula os batimentos cardíacos, e até melhora o desenvolvimento dos bracinhos, das perninhas e do sistema nervoso.
— É sério?
— Muito sério. Faz parte do cuidado humanizado que a gente tem com eles aqui. E agora que você está mais presente, podemos ir mesclando o método canguru com o aninhamento. Tudo para que eles cresçam fortes, equilibrados e seguros.
Brittany sorriu entre lágrimas, emocionada.
— Eles estão recebendo amor até quando eu não estou... Eu nem sei como agradecer.
Helena tocou levemente em sua mão.
— O agradecimento vem no rostinho deles. Eles estão reagindo bem, meu bem. E agora, com você mais forte, vai ser ainda melhor.
O método canguru é uma técnica usada com recém-nascidos prematuros ou de baixo peso, que consiste em manter o bebê em contato pele a pele com o peito da mãe (ou pai), em posição vertical.
Benefícios comprovados:
Regulação térmica e respiratória do bebê.
Estabilização da frequência cardíaca.
Redução do estresse e do choro.
Melhora do sono e do ganho de peso.
Aumento do vínculo afetivo.
Estímulo à produção de leite materno.
Redução do tempo de internação.
Nome técnico do que você viu: "Ninho ou rede posicionadora para prematuros" (também chamado de "aninhamento" neonatal ou "rede terapêutica")
Objetivo: simular o útero materno para oferecer conforto, segurança e organização postural ao bebê prematuro que ainda não está pronto para o método canguru ou que está sem a presença da mãe.
Como funciona:
A redinha ou ninho é feita com tecidos flexíveis, esterilizados e seguros, suspensa dentro da incubadora com fixadores.
O bebê é colocado dentro dela em posição fetal, com apoio nas costas e nas perninhas, como se estivesse sendo abraçado.
Isso ajuda o bebê a:
Se sentir protegido, como se estivesse ainda no útero.
Evitar movimentos descoordenados (chamados de reflexos desorganizados).
Desenvolver músculos e articulações corretamente.
Dormir melhor e ganhar peso com mais eficiência.
Importante: esse método é muito usado quando a mãe não pode estar presente por longos períodos — exatamente como aconteceu com a sua nora. É uma solução acolhedora e carinhosa da equipe neonatal
Análise técnica – Diagnóstico e conduta terapêutica para Britney
Com base no histórico de Britney, podemos esboçar um perfil psicológico/psiquiátrico inicial, que será aprofundado na narrativa:
Possíveis Diagnósticos:
1. Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) – impulsividade, instabilidade emocional, medo de abandono e dificuldade em manter relacionamentos estáveis.
2. Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) – preocupação excessiva, tensão muscular, insônia, explosões emocionais.
3. Trauma Complexo (CPTSD) – resultado de abuso emocional prolongado na infância, especialmente no relacionamento com a mãe (fria, ausente ou narcisista).
4. Síndrome do Impostor + Baixa autoestima — se sentia insuficiente mesmo com conquistas, o que gerava arrogância defensiva e comportamento tóxico.
Conduta Terapêutica Indicada:
Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (TCC) para trabalhar pensamentos disfuncionais, sentimentos de culpa, autoimagem e padrões de comportamento prejudiciais.
Terapia de Esquemas, que é uma vertente da TCC para traumas de infância e crenças negativas enraizadas.
Acompanhamento psiquiátrico leve com medicação compatível com a lactação — a Fluoxetina Flora é um bom começo.
Grupos de apoio a mães solo, para socialização positiva e ressignificação da maternidade.