Lívia ainda estava parada, imóvel à beira da cama, tentando controlar a respiração. Pensava em como daria o primeiro passo sem que suas pernas desabassem. Pensava na família, no templo, em Lucas.
E no estranho que agora era, pelas leis da ilha, seu marido.
Foi então que ela sentiu.
Uma mão quente pousou de leve sobre seu ombro — firme, mas gentil.
O toque a atravessou como um choque, fazendo seu coração disparar.
Lívia virou-se devagar, quase com medo do que encontraria.
Seu olhar encontrou olhos verdes. Profundos, atentos... avaliadores.
Ele a observava como quem tenta decifrar um enigma que acabou de cair no colo.
Por um instante, o mundo pareceu se silenciar.
Simon inclinou a cabeça, e um sorriso lento, tranquilo, se formou em seus lábios — um sorriso carregado de uma segurança que ela não tinha, mas que, de alguma forma, a estabilizava.
— Bom dia esposa.
A palavra deslizou da boca dele com naturalidade, quase com humor, mas havia algo mais ali — algo como aceitação. Como se ele não estivesse apenas brincando com o título, mas reconhecendo-o de verdade.
Lívia sentiu a garganta travar.
Ela abriu a boca para responder, mas não saiu som algum. Apenas piscou, tentando absorver o fato de que aquele homem — tão diferente de tudo que ela imaginara — era agora o companheiro que a deusa lhe destinara.
Simon ergueu ligeiramente as sobrancelhas, como se achasse a reação dela adorável.
— Parece surpresa — disse ele, ainda sorrindo, voz baixa e calma. — Não precisa ter medo. Eu prometo não mordo pela manhã.
O tom leve dele contrastava com o caos dentro dela.
Lívia desviou os olhos por um segundo, respirando fundo para não desmoronar.
E quando voltou a olhar para ele, Simon continuava ali observando-a com curiosidade genuína, como se quisesse entender cada pensamento que passava por trás daqueles olhos castanhos.
Aquela era a primeira troca real entre eles.
E seria apenas o começo de um dia — e de um destino — que mudaria a vida dos dois para sempre.
Lívia baixou os olhos imediatamente, como se a simples força do olhar dele fosse demais para sustentar. O peito apertava. Ela precisava dizer algo — qualquer coisa — mas as palavras se recusavam a sair. Explicar significava desafiar o que já estava feito, e ela não tinha coragem suficiente para afrontar a deusa... nem a tradição.
Simon a observou em silêncio por alguns instantes, a mão ainda repousando em seu ombro. Havia algo diferente no comportamento da esposa — não era vergonha, nem timidez... era hesitação.
Ele franziu levemente a testa, inclinando-se para tentar captar o rosto dela.
— Você esperava outra pessoa? — perguntou ele, com a voz calma, mas carregada de uma curiosidade afiada.
A pergunta atravessou o ar como uma flecha.
Lívia sentiu o coração parar por um segundo.
Era aquilo.
A chance de dizer a verdade.
A chance de assumir que tudo estava errado.
"Sim", ela deveria dizer.
"Eu entrei no quarto errado."
"Eu estava prometida a outro."
Mas seus lábios só tremeram. A tradição ecoava dentro dela como correntes invisíveis: A escolha na escuridão é a escolha da deusa.
E se a deusa a guiara até ele?
Ela abriu a boca e fechou.
Simon soltou uma exclamação curta, quase um riso sem humor.
— Imagino que sim — murmurou ele, sem raiva, apenas constatando um fato. — Esse tipo de acordo secreto de deixar marcas nas portas, sempre dá errado.
Os olhos dela se ergueram devagar, surpresos.
— V-vo-você sabe? — sussurrou.
Simon deu um leve sorriso torto, como se aquilo fosse quase óbvio.
— Claro. — Ele recostou-se, passando a mão pelo próprio cabelo. — É contra as regras, por uma razão. A cerimônia só funciona quando ninguém tenta burlar o destino. Quando tentam a deusa encontra um jeito de corrigir.
Corrigir.
A palavra bateu em Lívia com força.
— Se você entrou no meu quarto — continuou Simon, olhando diretamente para ela — e não no quarto do homem que escolheu antes então isso é justiça. É equilíbrio. Você veio para onde devia vir.
A firmeza tranquila na voz dele fez algo gelar dentro dela.
Ele falava como se fosse óbvio.
Como se tudo tivesse sido guiado.
Como se não houvesse erro nenhum — apenas destino.
E naquela segurança irritantemente calma, Lívia finalmente fez a conexão.
O sorriso dele.
A confiança.
A forma direta de falar.
O lenço preto.
O lenço do rapaz considerado difícil, temperamental, impossível de agradar.
Seu marido.
Ela engoliu seco.
Simon a observou atentamente, percebendo o instante exato em que ela ligou os pontos.
— Então você sabe quem eu sou agora — disse ele, com um arquejo leve de satisfação. — O homem do humor r**m e do lenço preto.
Lívia apertou as mãos no colo, sentindo a confusão se misturar com uma estranha sensação de inevitabilidade.
Ela viera parar justamente no quarto do homem que jamais escolheria.
E, mesmo assim, ele falava como se ela pertencesse ali desde o início.
Simon se recostou na cabeceira da cama, sem deixar seu olhar sair da mulher a sua frente. Não esperava que a jovem que se entregou com tanta paixão a ele, já estivesse comprometida com outro. Mas, agora não tinha mais volta e ele não estava disposto a abrir mão da mulher que a deusa entregou assim para ele.
Talvez, seus pais tenham razão e a deusa nunca erra.
Uma batida firme ecoou pelo corredor, seguida pela voz profunda de um sacerdote:
— Casais, apresentem-se. Chegou a hora de irem ao templo.
Lívia levou um susto, quase pulando da cama. Simon apenas ergueu as sobrancelhas, resignado.
— Parece que nosso tempo acabou — murmurou ele. — Temos que ir.
A frase, tão simples, apertou algo no peito dela.
Temos.
Eles agora eram um "nós".
Sem ter tempo para pensar, Lívia correu até o canto do quarto, buscando o vestido branco que havia caído no chão durante a noite. Suas mãos tremiam enquanto ela o vestia às pressas, tentando ignorar o nó em sua garganta. Simon, ao contrário, movia-se com uma tranquilidade irritante, vestindo a camisa clara que estava pendurada perto da janela, ajeitando o tecido com naturalidade, e pegando a calça jogada aos pés da cama e vestindo com calma.
O chamado dos sacerdotes se repetiu no corredor, mais alto desta vez.
— Todos os casais, por favor. A cerimônia de apresentação irá começar.
Quando Lívia finalmente conseguiu prender a última alça do vestido, Simon estendeu a mão para ela, como se fosse óbvio que deveriam sair juntos. Ela hesitou por um segundo — não por medo dele, mas pelo que encontraria lá fora.
Ainda assim, colocou a mão na dele.
A porta se abriu.
O corredor estava cheio de casais recém-formados, alguns sorrindo, outros tímidos, outros visivelmente desconfortáveis. A luz suave do dia refletia nas paredes brancas e criava sombras longas no chão.
Simon caminhava com passos firmes. Lívia tentava manter o olhar baixo, mas seus olhos vasculhavam o ambiente instintivamente.
E então ela viu.
A porta imediatamente ao lado se abriu, quase ao mesmo tempo que a deles.
E Lucas saiu.
Por um instante, Lívia sentiu o ar abandonar seus pulmões. O coração bateu tão forte que doeu. Ela abriu a boca, pronta para chamar seu nome.
Mas então viu a mão dele.
Unida à mão de uma mulher.
Uma mulher de cabelos longos, loiros, perfeitos.
Judith.
A irmã dela sorria. Um sorriso grande. Satisfeito. Orgulhoso.
E Lucas?! Lucas estava feliz.
Ele não apenas aceitava aquela união — parecia encantado com ela. Falava algo ao ouvido de Judith, que corava como se fosse uma noiva apaixonada.
A cena atingiu Lívia como um golpe físico.
Seu estômago revirou.
O chão pareceu oscilar.
Uma náusea amarga subiu por sua garganta.
Simon percebeu a rigidez súbita do corpo dela e seguiu seu olhar.
Seus olhos verdes estreitaram levemente ao ver o casal ao lado. Não disse nada — não ainda — mas a forma como seu maxilar tensionou denunciava que ele entendeu tudo em questão de segundos.
Lívia recuou meio passo sem perceber, o coração completamente despedaçado.
Judith então se virou, encontrando o olhar de Lívia.
E sorriu.
Um sorriso pequeno, triunfante, que dizia sem palavras:
"Ele é meu"
Lívia sentiu as pernas fraquejarem.
E Simon, vendo isso, aproximou-se um pouco dela — não tocou, não segurou, apenas se posicionou ao lado, como se quisesse oferecer estabilidade sem invadir.
Uma presença firme.
Os sacerdotes começaram a conduzir os casais para a saída.
Lívia engoliu o choro.
Engoliu a dor.
Engoliu tudo o que havia dentro dela se quebrando.
E caminhou ao lado do homem que era agora seu marido... enquanto assistia sua irmã desfilar ao lado do homem que ela mesma acreditava ser o amor da sua vida.
...