Chapter 3

2878 Words
CAPÍTULO 8 De frente com a b***a e outras descobertas Eis os motivos da festa que hoje pretendo realizar convosco: Fausto, um atrevido mortal, que como vós contesta o Eterno e, pela força de seu espírito, quer tornar-se digno de morar conosco no Inferno, descobriu a arte de multiplicar com facilidade milhares e milhares de vezes os livros, esse perigoso entretenimento dos homens, propagadores da demência, dos enganos, da mentira e do terror, fonte do orgulho e mãe da trágica dúvida. Friedrich Maximilian Klinger, O Discurso de Satã DIÁRIO: 04 de fevereiro de 1979 Apesar do meu mau humor rotineiro, acordei deveras disposto. Senti o aroma da manhã enquanto observava algumas nuvens encobrindo o sol. Vi da janela do meu apartamento os transeuntes passando como formigas que trabalham para suas rainhas em troca de alimento e moradia, uma cena robótica e cansativa de olhar, quase hipnotizante. Mas apesar do aroma fresco dessa manhã algo me perturbou, uma neblina estranha que pairou naquele cenário cinzento salpicado de prédios. Por causa da ferrugem, fechei com certo esforço a janela da minha sala, livrando meus olhos da neblina. Neste exato momento, estou na cozinha, escrevendo e bebendo um copo de água como café da manhã. Sinto um odor estranho, muito semelhante ao do gás de cozinha, mas não possuo nenhum bujão de gás no apartamento. Olhando novamente para a data no meu diário, 04 de fevereiro, e com certa tristeza, lembrei que esta é a data do meu aniversário. O que comemorar? Sozinho, doente, sem comida e agora com 49 anos? Sinto saudades de Hortolândia, do meu amigo Ruivo e do meu antigo apartamento. Sou um prisioneiro nesta maldita cela chamada solidão. Estou cansado e não é só um cansaço físico, mas também mental. Não sei mais o que fazer neste maldito lugar, pois tudo perdeu o sentido e não sei em quem mais acreditar. Se o demônio Qayin faz tantas atrocidades com os seres humanos desde tempos imemoriais o que Deus faz para nos ajudar? Apenas nos olha lá de cima e nos vê como formigas, assim como fiz minutos atrás da janela do meu apartamento? Ou nos deixa à mercê desse demônio para lutarmos com unhas e dentes e mostrarmos que somos guerreiros? Só que guerreiros mortos não tem nenhum valor. Nenhum dos nomes fichados conseguiu derrotar esse ser demoníaco. Às vezes me pergunto quantos mais o enfrentaram. Quantos nomes estariam em sua lista? Quem sou eu para tentar enfrentá-lo? Não vejo mais nenhuma expectativa de vida para mim: sem esposa, sem filhos, sem dinheiro e cheio de problemas. Talvez a melhor escolha seja o fim. O cinto de couro que há muito tempo não me serve será muito mais útil noutro lugar. Por um motivo desconhecido não fui possuído por Qayin, mas mesmo assim ele venceu, pois hoje será meu fim. DIÁRIO: 04 de fevereiro de 1979 Sim, não me suicidei, muito pelo contrário, GANHEI A VIDA, mas ainda não sei muito bem o preço que pagarei, visto que nada é de graça. Ah, você deve estar perdido, sem saber do que estou falando. Tentarei contar em detalhes o que ocorreu nestas quase cinco horas. Acredito que fossem umas 8h da manhã quando iniciei os preparativos para o meu suicídio: eu me enforcaria com um cinto, e a estas horas deveria estar dependurado na cozinha. Mas alguns segundos antes de realizar meu plano, alguém veio me visitar. Antes de contar quem era essa visita, ressalto que não aumentarei nem diminuirei os fatos ocorridos. Logo pela manhã, assim que parei de escrever no diário, senti que o estranho odor tinha aumentado, o que não interferiu em meu plano de suicídio. Subi em uma cadeira, entrelacei uma das extremidades do cinto de couro em meu pescoço e transpassei uma ponta da outra extremidade num cano de ferro próximo do teto. Quando me preparava para pular da cadeira, um homem completamente nu entrou pela porta da cozinha. Fiquei pasmo, assustado e arrepiado, pois este homem era possuidor de um tom de pele anormal, avermelhada, e o mais estranho eram as marcas negras em seu corpo e rosto, semelhantes às tradicionais tatuagens. Eram estranhas letras ou, quem sabe, uma língua estrangeira que fugia ao meu conhecimento. Seu corpo era bem definido, parecendo ter sido esculpido por um grande artista, lembrando muito a famosa obra de Michelangelo Buonarroti, intitulada “David”. O mais esquisito é que m*l conseguia encarar seus olhos estranhos: luminosos, vitrificados e medonhos. Sua face apresentava sarcasmo, e seu caminhar parecia tão leve que a impressão era que flutuasse. Não demorou muito para eu entender que aquele era o bíblico e milenar Qayin. O fato mais intrigante era que aquele ser estava na minha cozinha me encarando com um sorriso desprezível. Um turbilhão de ideias invadiu meu cérebro atordoado: ele tentaria me possuir? Estava ali apenas para assistir de camarote ao meu suicídio ou para mostrar que estava ciente das minhas investigações? O fato foi que, há uns três metros de distância, com apenas um leve gesto e sem me tocar, o demônio arrebentou o cinto de couro que estava em torno do meu pescoço. Foi aí que tive plena consciência de que era Qayin. Num reflexo, saltei da cadeira e a arremessei com toda força contra o demônio, que mesmo sendo atingido permaneceu intacto e com o mesmo ar de deboche. Naquele momento me senti um verdadeiro i****a. “Afinal, quem diabos é você?”, perguntei confuso. Ele vociferou com sarcasmo: “Diabos?”, e continuou a falar: *”Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras... Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias! (...) Com um pouco de saliva cotidiana Mostro meu nojo à Natureza Humana. A podridão me serve de Evangelho... Amo o esterco, os resíduos ruins da planície E o animal inferior que urra nos bosques É com certeza meu irmão mais velho! (...) Quis compreender, quebrando estéreis normas, A vida fenomênica das Formas, Que, iguais a fogos passageiros, luzem... E apenas encontrou na ideia gasta, O horror dessa mecânica nefasta, A que todas as coisas se reduzem! (...) Brancas bacantes bêbedas o beijam. Suas artérias hírcicas latejam, Sentindo o odor das carnações abstêmias, E à noite, vai gozar, ébrio de vício, No sombrio bazar do meretrício, O cuspo afrodisíaco das fêmeas. No horror de sua anômala nevrose, Toda a sensualidade da simbiose, Uivando, à noite, em lúbricos arroubos, Corno no babilônico sansara, Lembra a fome incoercível dos lobos. (...) Provo desta maneira ao mundo odiento Pelas grandes razões do sentimento, Sem os métodos da abstrusa ciência fria E os trovões gritadores da dialética, Que a mais alta expressão da dor estética Consiste essencialmente na alegria. Continua o martírio das criaturas: – O homicídio nas vielas mais escuras, – O ferido que a hostil gleba atra escarva, – O último solilóquio dos suicidas - E eu sinto a dor de todas essas vidas Em minha vida anônima de larva!” 4 Depois de ouvir o recital, desisti dos planos de investir contra ele, enquanto pensava em Deus, afinal, por que ele não interferia naquele momento? Senti-me desprotegido, frágil... Caminhando em minha direção, o demônio pressionou gentilmente seu polegar esquerdo sobre o meu peito, pôs a mão direita sobre minha cabeça e, com eloquência, iniciou um ritual murmurando palavras desconexas numa diabólica oração. Ele parecia estar em transe. Senti meu sangue gelar nas veias e as mandíbulas completamente emperradas. Para aumentar o desespero, Maverick apareceu atrás da criatura, e, mesmo sem olhar para trás, Qayin sentiu sua presença. Estranhamente, parecia conhecê-lo: “O que faz aqui, ser odioso?”, disse a criatura. Temendo que Qayin investisse sua fúria contra o p***e Maverick, agarrei-o pelo pescoço num gesto insano. Foi aí que percebi que não só a sua aparência mas também a consistência pareciam à de David de Michelangelo. Sem muito esforço, Qayin me empurrou violentamente sobre a mesa da cozinha, causando vários ferimentos em meu dorso. A presença de Maverick deixou a criatura assustada, como um animal acuado. Então eles começaram a discutir em uma língua que jamais ouvira, e foi neste momento que Suzetti apareceu. De animal acuado a criatura virou fera, investindo toda a sua força contra os dois e arremessando-os contra a parede. Suzetti estava muita ferida. Mesmo assim, levantou-se e investiu contra o demônio. Naquele momento, presenciei a cena mais terrível de toda a minha vida: com a mão esquerda, ele segurou Suzetti pelo crânio e esmigalhou sua cabeça, deixando o corpo e***********o caído no chão. Maverick se levantou e investiu mais uma vez contra o demônio. Quando viu que ele se preparava para destruir seu crânio, como um relâmpago Maverick abriu a camisa e mostrou um símbolo em forma de pentagrama tatuado no peito, fazendo a criatura arregalar seus olhos inumanos. Num gesto de desespero, Qayin se jogou contra a janela fechada da sala causando um estrondo ensurdecedor, espalhando estilhaços pelo chão. Apesar da dor intensa, caminhei rapidamente até a janela para ver a queda do demônio, mas a criatura desaparecera como num passe de mágica. Ajoelhado, Maverick olhava para Suzetti. Não notei tristeza em seu olhar, mas sim muito cansaço. Apesar da minha experiência como detetive, não conseguia me acostumar com as cenas de morte. Ao olhar novamente para os restos de Suzetti, senti ânsia e vomitei, e o vômito causou uma nova dor. Sentia como se os ossos deslocados arranhassem minhas entranhas. Percebendo meu desespero, Maverick segurou minha mão e disse baixinho ao meu ouvido palavras desconhecidas. Depois que me senti melhor, comecei a lembrar dos fatos ocorridos e notei que a cena na sala do meu apartamento foi semelhante aos piores filmes de horror. Maverick se sentou ao meu lado e começou a falar coisas em que jamais acreditaria se há alguns minutos não tivesse passado pela terrível experiência de ficar frente a frente com a b***a. Logo no início da conversa ele me fez um alerta: tome conta da sua alma, pois o demônio fará de tudo para roubá-la, já que ele te deu um grande poder. DIÁRIO: 04 de fevereiro de 1979 Espero que você não se choque com o que direi, mas Maverick confessou que era o bíblico Lameque, o homem que assassinou Qayin e o mandou para a morada dos seus pais. Ou seja, ele foi o segundo assassino da história da humanidade. A diferença foi que assassinou o m*l encarnado em forma de homem. Seu gesto, por incrível que pareça, acabou trazendo benefícios para Qayin, pois como espírito ele adquiriu o poder de andar nas trevas ou na terra quando bem entendesse e de se apresentar em sua forma real como matéria sólida, mesmo sendo apenas espírito. Maverick disse que Qayin é o demônio mais ardiloso e sanguinário de todos, por nunca ter ficado ao lado de Deus como os outros demônios, que são anjos caídos. Ele me explicou que existem três categorias de anjos: os que estão ao lado de Deus, os que estão no inferno e os que estão na terra – as últimas duas categorias podem ser intituladas anjos caídos. Maverick contou que ao assassinar Qayin, livrou sua cidade da perversidade de seu fundador. Assim, quando faleceu e abandonou a matéria, elevou-se ao plano dos anjos de Deus, mas por ter cometido assassinato decaiu para a terra. Ele também pode possuir corpos, mas somente os de pessoas que faleceram recentemente. Espantado com a confissão, perguntei se o corpo que estava usando agora era o de um defunto e a resposta foi positiva. “Quando possuo um corpo que faleceu recentemente, ele se regenera e passa a ganhar vida novamente”, disse ele. No caso daquele corpo que estava usando, seu dono Maverick morrera devido a uma parada cardíaca por overdose. Ele ainda disse que o mais difícil em possuir um corpo era acabar com o seu vício, pois até hoje, mais de um ano depois de possui-lo, ainda não tinha conseguido acabar com o vício do consumo das drogas. Além de Lameque existem outros anjos caídos, mas o nome de um g***o que ele pronunciou me chamou a atenção: “Black Angels”, o g***o que me salvou da morte e me acolheu por alguns dias... É muito estranho imaginar que anjos curtem rock e usam drogas, mas, como ele disse, eram de uma categoria diferente, abaixo do nível dos que estão ao lado de Deus e acima dos que estão ao lado de Lilith e Samael nos confins do inferno. Lameque pegou uma Bíblia e pediu para que eu lesse Gênesis 4:23-24. Li o versículo e notei que se referia a ele, estampando-se um alargado sorriso na face do rapaz: Gênesis 4:23-24 E disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me; escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete. Para piorar a confusão em minha mente, Lameque disse que o travesti Suzetti também era um dos anjos caídos e que seu nome real era Ieialel. Ele tinha nascido anjo e era mais antigo do que o próprio Qayin. Seu pecado foi ter sido enganado pelo querubim Samael e, juntos, terem criado uma política que ia contra as ideologias do Criador: não seguir ordens e punir severamente os seres humanos por qualquer tolice que cometessem. Eles queriam se sobrepor aos mandamentos do Supremo. Furioso, Deus expulsou do paraíso milhares de centenas de anjos que apoiaram essa ideia, incluindo Samael, o líder da revolução que se tornou o maioral no inferno. Por não ser tão perverso e por ter sido confundido por Samael, Ieialel teve um castigo menor: permanecer eternamente na terra sendo guarda-costas dos seres humanos e enfrentar as forças de Samael e de seus lacaios. Foi a partir daí que passou a possuir os corpos daqueles que faleciam recentemente, tornando-se amigo e companheiro de Lameque em várias batalhas travadas contra as forças do m*l. Depois da explicação tudo começou a fazer sentido, inclusive o olhar sereno que Lameque lançou para o cadáver de Suzetti, pois não foi Ieialel quem faleceu na briga, mas um corpo que já perdera a vida antes. Bom, penso que agora você acreditará com mais facilidade no que vou dizer: trinta minutos após o ocorrido, um homem obeso, de uns 130 quilos, calvo, apresentando alguns ferimentos na parte superior da cabeça, usando óculos escuros com uma das lentes quebradas, calça e jaqueta de couro preta, descalço de um pé e o outro calçando um coturno, apareceu na porta da frente da minha sala. Era Suzetti, ou melhor, Ieialel, já com o seu novo corpo, um homem que acabara de ser atropelado em uma rua próxima do nosso prédio. Lameque sorriu ao ver o amigo. Parecia que se conheciam apenas pelo olhar ou por alguma espécie de aura que circundava os seus corpos. Seria mentira se não dissesse que nos abraçamos como três amigos milenares. Eu não sentia mais a terrível dor dos ferimentos, muito pelo contrário, estava me sentindo bem como nunca me sentira antes. Lameque e Ieialel sorriram e procuraram um espelho pelo p***e apartamento, achando alguns cacos no chão do banheiro. Ieialel estendeu o pedaço de espelho como se me oferecesse um grande presente e pediu que me olhasse nele. Para minha surpresa, quem estava refletido no caco era um homem de aparência bem mais jovem e saudável. Ieialel disse que Qayin possivelmente estava tentando fazer com que eu me tornasse o seu arauto, ou seja, uma espécie de e*****o com poderes, mas Maverick entrou no apartamento e acabou atrapalhando o ritual do demônio. Mesmo assim, acabei me tornando um imortal. Eles disseram que minha aura estava completamente diferente e que meu corpo seria o mesmo para sempre. Aquele foi um grande presente, mas não sei até quando a alegria irá durar. Lameque disse que um dos piores castigos é ser eterno e ter a plena consciência disto, pois os espíritos dos humanos também são eternos e trocam de corpo quando eles falecem, mas na forma de humanos não possuem a consciência do ato. O tempo não existe para os imortais. Hoje sou um novo homem, mais jovem, forte e saudável. A única coisa que d****o fazer pelas próximas três décadas é curtir a vida ao máximo, depois pensarei no resto. Com a vida que eu estava levando não duraria muito tempo e se Qayin não interrompesse meu plano de suicídio, não estaria escrevendo agora. Contei meus planos para Ieialel e Lameque, que me compreenderam e disseram para eu tomar cuidado com o demônio, porque ele poderia estar em qualquer lugar onde eu estivesse e que jamais me deixaria em paz. Eles também estariam sempre próximos, e Lameque me aconselhou a procurar os Black Angels, oferecendo um cartão do g***o, com telefone e endereço. Eles me forneceriam toda a assessoria de que eu precisasse, fosse dinheiro, aconselhamentos ou mesmo um bom advogado. OBS.: Algo que gostaria de ressaltar é que, segundo Ieialel e Lameque, os anjos caídos possuem qualquer corpo recém-falecido, seja de homens, mulheres, idosos, crianças, drogados, homossexuais, empresários, músicos, cientistas etc. 4 Augusto dos Anjos, Eu, Monólogo de uma Sombra (editado em 1912)
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